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Bernardo Machado

Sim, eles já estão na política: nuances da eleição de LGBTIs em 2020

Colunista do UOL

28/11/2020 04h01

Recentemente a política brasileira foi palco de muitas disputas em torno da população LGBTI+. Certos congressistas na Câmara e no Senado passaram a não apenas obstruir iniciativas de leis favoráveis a essa população, como também a propor novas leis que restringem direitos, na avaliação do professor Gustavo Santos, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), em artigo de 2016.

Em 2020, contudo, notamos uma expressiva votação e eleição de candidaturas abertamente LGBTI+ para as casas municipais. "Em 2020, o número foi o maior já registrado, 502 pleitearam algum cargo eletivo" explica João Filipe Cruz, doutorando em sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e integrante do Núcleo de Sociologia, Gênero e Sexualidade (NÓS/USP) que, em parceria com o Grupo Interdisciplinar de Raça e Política (GIRA/USP), realizou pesquisa entre essas candidaturas às eleições municipais para vereança em São Paulo.

Nas últimas semanas, o noticiário nacional tratou com atenção o assunto. Mas alguns temas parecem ter escapado das análises. A longa relação de pessoas LGBTI+ com a política institucional recebeu poucas linhas e o tom de celebração (necessário) pode ter eclipsado algumas nuances do processo eleitoral.

História

Se em 2020 as vitórias parecem anômalas, elas significam, na realidade, um investimento na mudança de percepção social que se desenrolou desde os anos 1970, quando o movimento LGBTI+ emergiu no Brasil. Particularmente em 1980, surgiram as primeiras candidaturas com a temática da homossexualidade para a disputa eleitoral e ativistas passaram a atuar junto às instâncias partidárias de esquerda. O então deputado estadual João Batista Breda, do (PT-SP), tentou obter a reeleição em 1986 com uma plataforma "assumida", como classificou Gustavo da Costa Santos em um artigo sobre o assunto. Nesse mesmo ano, no Rio de Janeiro, o ativista Herbert Daniel se candidatou a deputado federal declarando sua sexualidade e defendendo os direitos dos portadores de HIV, como narrou o pesquisador James Green na biografia dedicada ao militante. Nenhum dos dois conseguiu se eleger. As derrotas fizeram surgir uma espécie de estigma de que "homossexual não votaria em gay".

As dificuldades não cessaram, tampouco a vontade de ingressar em espaços políticos institucionais. Em 1992, a vereadora Kátia Tapety foi a primeira travesti a ser eleita a um cargo público no Brasil no município de Colônia do Piauí que, na época, contava com 7.414 habitantes. Tapety foi reeleita três vezes e se tornou vice-prefeita em 2004. Em 1996, dez pessoas assumidamente LGBTs se candidataram à vereança no país — uma travesti, uma lésbica e oito gays —, em diferentes partidos (seis pelo PT, e as outras pelo PDT, PFL, PSTU e PGT, o Partido Geral dos Trabalhadores). Sobre o assunto, o Grupo Gay da Bahia organizou um encontro com as candidaturas que, em conjunto, elaboraram um manifesto pela defesa da participação direta de pessoas LGBTI+ além de um conjunto de pautas, como a aprovação de leis anti-discriminação e contra a violência homofóbica. Por sinal, o Datafolha de intenção de voto de 1996 constatou que 57% das pessoas entrevistadas "votariam normalmente" em "candidatos homossexuais". Apesar da declarada vontade, houve muita resistência para obtenção de cargos.

De toda forma, o aumento no número de candidaturas para eleições locais (prefeitura e vereança) de pessoas abertamente LGBTs foi bastante expressivo, conforme conta a pesquisa do projeto LGBTI+ e eleições: em 1996, foram 10 candidaturas; em 2004, somou-se o mesmo número; em 2008, 81 candidaturas (um aumento de 8 vezes); em 2012 foram 173 (aumento de 113%); em 2016, 256 candidaturas (crescimento de 126%) e em 2020 atingiram 502 (incremento de 96%). Os números, contudo, escondem a variedade de posições desse conjunto político.

Diversidade interna

Em 2020, a pesquisa LGBTI+ Eleições identificou três perfis de pessoas que se candidataram ao pleito local, conforme conta a socióloga Vanilda Chaves: "há as candidaturas que trazem a questão LGBTI+ como central; existem também outras candidaturas para as quais a questão LGBTI+ não é central, mas presente (seja porque focam em outras pautas ou porque a dimensão LGBTI+ aparece 'transversalmente'); e existe também as candidaturas que simplesmente não abordam a questão LGBT". Tais posturas variam mas geralmente estão associadas à postura ideológica de quem pleiteia os cargos.

Se hoje é possível sinalizar uma certa correlação entre partidos de esquerda e as pautas LGBTI+, nem sempre foi assim. O movimento LGBTI+ enfrentou resistência entre a esquerda brasileira nos anos 1970 e 1980, acusado de defender um desvio burguês, conforme salientou o pesquisador James Green durante palestra recente para a Fundação Escola de Sociologia e Política/SP. Após muito embates nos partidos políticos progressistas, as posturas mudaram e, atualmente, na medida em que se caminha em direção à "direita" no espectro ideológico, mais raras se tornam as candidaturas LGBTI+, embora não sejam inexistentes.

No município de São Paulo, 17 dos 33 partidos políticos apresentaram candidaturas LGBTI+. A origem política varia: "As/os candidatas/os LGBTI+ de partidos de esquerda costumam ter atuação mais 'orgânica' nas agremiações partidárias, além de trajetórias de atuação militante em movimentos sociais e/ou experiências de trabalho com políticas públicas", comenta João Filipe Cruz. Mesmo assim, não se pode ignorar a presença de candidatas/os LGBTI+ em partidos de centro e de direita, pondera o pesquisador; nesse caso, são pessoas que "costumam ser ativistas (com ênfase individual) que também possuem atuação na sociedade civil organizada, ainda que em menor proporção, e em outras bases".

Mais da metade das candidaturas LGBTI+ em São Paulo, por exemplo, segundo dados do TSE, obtiveram verba entre zero e R$ 46.856,57, apontou a pesquisa LGBTI+ Eleições. Quando estão partidos de direita, esses sujeitos narram outros desafios, comenta Cruz. "Há dificuldade para se apresentar como candidatos/as legítimos/as para representar a comunidade. Na avaliação destas/es candidatas/os, é necessário mostrar que a pauta LGBTI+ não é 'monopólio da esquerda' e também lidar com o que elas/es percebem como 'preconceito contra LGBTs liberais'."

Outras nuances

Embora se possa falar que houve um "boom" de candidaturas LGBTI+ em 2020, esse número ainda é muito baixo, ponderam Filipe Cruz e Vanilda Chaves. "Neste ano, em todo o Brasil, houve 518.328 candidatas/os concorrendo a 58.208 vagas nas Câmaras Municipais, sendo que 502 foram LGBTI+, o que representou aproximadamente 0,097% do total de candidaturas". Já as 90 pessoas eleitas em todo o território nacional, segundo dados do Vote LGBT, correspondem a apenas 0,15% das cadeiras ocupadas, indicando uma sub-representação total.

É importante também destacar como, por muitos anos, alguns setores do próprio movimento LGBTI+ ficaram marginalizados. "Até 2014, no Brasil, as candidaturas LGBTI+ eram em sua maioria candidaturas de homens gays cujo perfil não destoava tanto do 'político profissional' - homens cis, com nível educacional médio ou alto, em idade produtiva e com profissões que permitiam dispor de tempo livre para a vida política", explica João Filipe Cruz. A partir de 2016, entretanto, o cenário começou a se alterar: "das 256 candidaturas LGBTI+ identificadas naquele ano, 94 eram de pessoas trans. Já em 2020, das 502 candidaturas identificadas, 294 foram de pessoas trans, o que representa 58% do total de candidaturas LGBTI+", avalia o sociólogo. Nesses termos, a pesquisa realizada propõe pensar em uma "virada trans" na política: "pela primeira vez, as candidaturas trans compõem a maioria das candidaturas LGBTI+, mas não só isso: travestis e homens e mulheres trans foram eleitas/os em diversas cidades e em algumas capitais do país com votações históricas".

Sob outro aspecto, vale atinar para os cargos que as candidaturas de pessoas abertamente LGBTI+ conseguiram acessar ao longo dos anos. Desde o retorno democrático, a quase totalidade de postulantes tentou cadeiras nas casas legislativas. No intervalo entre 2000 e 2014, entre as candidaturas LGBT que lograram sucesso eleitoral (22), 20 delas (91%) foram eleitas para o cargo de vereador, e 14 delas (63,6%) foram eleitas em municípios localizados fora dos grandes centros urbanos, escreve Gustavo Santos. Tal aspecto demonstraria uma "certa descentralização das candidaturas LGBT no Brasil" e uma "posição relativamente marginal das candidaturas LGBT no campo político brasileiro", comenta o cientista político da UFPE. Afinal de contas, o cargo na Câmara de Vereadores é entendido como o mais "baixo" na hierarquia das carreiras políticas.

Para Vanilda Chaves, "é uma boa estratégia começar pelo legislativo municipal, pois é uma forma de se fazer conhecido entre o eleitorado. Assim, uma vez eleita, a pessoa pode pleitear cargos em outros níveis". De toda forma, fica evidente como a população LGBTI+ ainda está sub-representada em grande parte das casas legislativas municipais e ainda não obteve espaço adequado em todas as esferas de poder nacional.

Para contornar esses desafios, uma das táticas tem sido as candidaturas coletivas. "No Brasil, saltamos de 13 candidaturas coletivas em 2016 para 257 em 2020 (de acordo com um levantamento da FGV)", explica Cruz. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, duas pessoas trans foram eleitas em mandatos coletivos, Carolina Iara (da Bancada Feminista) e Samara Sosthenes (do Quilombo Periférico), ambas pelo PSOL. Conforme sugere o sociólogo, o fenômeno indica como o modelo tem sido empregado por membros de grupos marginalizados como uma via de acesso à política institucional: "em princípio, as candidaturas coletivas parecem permitir maior participação, transparência e diversificação dos temas abordados".

Futuros horizontes

O crescimento de candidaturas e de mandatos obtidos por pessoas abertamente LGBTI+ para os cargos de vereadoras/es é indício de uma mudança social considerável e merece ser comemorada. Contudo, conforme ponderam João Filipe Cruz e Vanilda Chaves, é preciso aguardar o pleito de 2022. "Precisamos saber se essa é uma tendência geral, que também valerá para outros cargos como deputado estadual e deputado federal." Mesmo os mandatos coletivos, como via de acesso à política institucional precisam ser avaliados com cautela, afinal, "há o risco de que no cotidiano legislativo algumas vozes e demandas possam acabar 'sufocadas' dentro desses mandatos conjuntos", concluem os cientistas sociais.

A democracia brasileira ganha com o aumento de representatividade de parte de sua população, mas como aprendemos em anos recentes, o sistema democrático não está garantido, deve ser fiscalizado e sempre atualizado por nossas práticas políticas.