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Bernardo Machado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A pandemia ignorada: fraude, manipulação e mentiras na área da saúde

Colunista do TAB

03/10/2021 04h01

Esquemas de corrupção impactam a qualidade de saúde de um país. É o que revela o relatório "The Ignored Pandemic" produzido pela organização Transparency International. Publicado em 2019, o título pode ser traduzido como "A Pandemia Ignorada" e reúne dezenas de pesquisas e de dados a respeito de como a corrupção nos serviços de saúde ameaça o direito ao cuidado. No momento em que o governo brasileiro acumula denúncias de corrupção, considero pertinente retornar a este conteúdo.

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O relatório descreve seis tipos diferentes de práticas corruptas. Três dizem respeito à forma como indivíduos — servidores públicos ou agentes do setor privado — atuam em benefício próprio.

Neste primeiro grupo estão o absentismo, prática na qual funcionários públicos se engajam em atividades privadas durante seu horário de trabalho. Há também o pagamento informal, atividade na qual o paciente paga prestadores de serviços de saúde para obter benefícios diferenciados que estão fora do escopo do atendimento. E o terceiro tipo corresponde ao favoritismo, isto é, quando servidores de saúde oferecem tratamento preferencial a pacientes com os quais têm conexões pessoais, às custas dos serviços prestados a outros pacientes.

Os outros três tipos de corrupção dependem, por sua vez, de uma rede mais intrincada de agentes e interesses. Nesse caso, há a corrupção na prestação de serviços como o pagamento de propina, a realização de procedimentos desnecessários, a cobrança excessiva de medicamentos, a prestação de serviços inferiores e os pedidos de reembolso de tratamentos falsos. A fraude diz respeito ao roubo de medicamentos para revenda, o desvio de suprimentos médicos e a substituição de materiais originais por outros inferiores. Por fim, a manipulação de dados inclui o faturamento fraudulento de bens ou serviços não fornecidos, a criação de pacientes "fantasmas", o apagamento de doenças de prontuários e afins.

Formas nacionais

Os casos no Brasil, se confirmados, serão enquadrados nesse último grande grupo. Afinal, desde o início da CPI da Covid, avolumam-se os indícios de corrupção na prestação de serviços, as fraudes na venda de medicamentos e a manipulação de dados em prol de interesses ideológicos, econômicos e eleitorais.

A letargia para a compra das vacinas da Pfizer sintonizou com a pressa em adquirir os imunizantes superfaturados da Covaxin. O Ministério da Saúde empenhou R$ 1,61 bilhão para adquirir 20 milhões de doses da farmacêutica com US$ 15 por dose (ou R$ 80,70 na época). As suspeitas se alocariam na corrupção no tipo quatro: a prestação do serviço. Afinal de contas, há indícios consistentes de descumprimento do prazo contratual, cobrança de valor elevado por vacinas, pressão atípica a servidores, teor omisso do contrato, tentativa de pagamento antecipado sem previsão contratual, entre outros aspectos nebulosos.

Ainda que a defesa do presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores reforcem que o pagamento não tenha ocorrido, temos dois aspectos a serem considerados. Em primeiro lugar, crimes de corrupção passiva se caracterizam a partir do momento em que o agente público solicita vantagem indevida ou aceita uma promessa de que receberá uma vantagem indevida. Dessa forma, a não realização de pagamentos não é imprescindível para que haja crime. Em segundo lugar, mesmo que não tenha havido pagamento pelas doses, a administração pública ficou necessariamente prejudicada pelo empenho do dinheiro (R$ 1,61 bilhão), o que comprometeu o próprio combate à pandemia. O desfalque contribuiu para a escassez de medicamentos, de vacinas e de outros suprimentos médicos.

Já o caso da Prevent Senior, se comprovadas as acusações, se encaixaria nos tipos cinco e seis: a fraude e a manipulação de dados. Segundo o dossiê publicado pelos médicos, a operadora subnotificava os casos de covid-19, realizava estudos com medicamentos sem eficácia comprovada, não informava pacientes e familiares a respeito do que era administrado e ainda forçava profissionais a trabalharem sem equipamento de proteção ainda que infectados pela doença.

Caso as denúncias sejam comprovadas, a contabilidade previa que o chamado "kit covid" seria mais barato do que o tratamento adequado. Isto é, a operadora de saúde tinha incentivos econômicos para administrar tratamentos sem necessariamente atender os critérios exclusivamente médicos. A CPI investiga se esta contabilidade financeira teve incentivos políticos e ideológicos do governo federal.

O investimento na corrupção

Sob o lema de "o Brasil não pode parar", o presidente Jair Bolsonaro e seu governo sugeriram uma dicotomia perversa: "saúde ou economia". Mas esta não parece ser a real dualidade presente no raciocínio do mandatário, mas sim "bem-estar da população ou vitória na eleição de 2022". Segundo o cálculo, seria impossível garantir o direito à saúde, assegurar uma economia em movimento e se tornar viável eleitoralmente. Para Bolsonaro, as medidas de proteção ao vírus danificariam a economia que, por sua vez, o tornaria inelegível.

O governo optou por economizar em e-mails para a Pfizer, esbanjar em acordos fraudulentos com a Precisa Medicamentos e incentivar a prescrição de medicamentos sem eficácia comprovada com adulteração de informações por operadoras de saúde. Houve, portanto, um investimento nas práticas corruptas — na prestação de serviços, na realização de fraudes e na manipulação de dados. Se a corrupção foi mote de escândalos no país nos últimos anos, não podemos deixar de salientar como essa corrupção sanitária, no atual governo, ceifou dezenas de milhares de vidas.

Às quase 600 mil vidas perdidas pela pandemia, minha homenagem. Às famílias e amizades de quem ficou, meus sentimentos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL