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Matheus Pichonelli

Felipe Neto: desserviço é esperar vida adulta para (não) ler os clássicos

Montagem com Machado de Assis - Arte/UOL
Montagem com Machado de Assis Imagem: Arte/UOL

Colunista do TAB

26/01/2021 04h01

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Felipe Neto provocou celeuma, no fim de semana, ao oferecer do nada uma espécie de consultoria gratuita sobre a base curricular do ensino brasileiro. O influencer escreveu no Twitter que forçar adolescentes a lerem livros do Romantismo e Realismo brasileiros é um desserviço das escolas para a literatura. "Álvares de Azevedo e Machado de Assis NÃO SÃO PARA ADOLESCENTES! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco."

Dois dias e quase 20 mil retuítes com comentários depois, o post ainda gerava fricções entre as versões contemporâneas do realismo digital brasileiro.

Como sempre, o país que se reúne em rede se dividiu, e dessa vez nem foi para chegar a algum acordo sobre biscoito ou bolacha, cloroquina ou ciência, mito ou charlatão. Os que já não apreciavam leituras sem aviso prévio de "contém ironia" (obrigado, Rita Soares) respiraram aliviados por ganharem costas largas na queda-de-braço contra os professores do Ensino Médio.

Já os que estão lá para desfilar o notório saber vociferaram. Por sorte ninguém resgatou a polêmica a respeito das andanças oblíquas e dissimuladas de Capitu.

Cheguei à polêmica com certo atraso — umas duas décadas, mais ou menos. No começo dos anos 2000, quando tinha 18 anos recém-completados, adoraria ouvir alguém perto dos 40 me dizer que não tem hora melhor para desbravar os clássicos do que aquela curva final da adolescência.

Eis a única conclusão possível de alguém que, aos 38, passou a manhã assistindo tutorial no YouTube sobre montar e desmontar minha lavadeira de alta pressão adquirida no Mercado Livre. Era a projeção ao avesso do que imaginava para o futuro: um adulto estendido numa rede, onde deveria intercalar café e conhaque entre duas pilhas de livros ao alcance das mãos. Uma com os clássicos do Romantismo; outra, do Realismo.

A realidade, porém, era um misto de curiosidade e admiração com a capacidade técnica do Serjão e do Odair, youtubers das causas urgentes, em encaixar e desencaixar as peças da VAP no vídeo gravado no quintal de suas casas (agradeço a eles pela pressão alcançada).

Meus heróis já foram outros.

Exatos 20 anos atrás, numa cidade sem livrarias de referência, descobri numa gôndola empoeirada de supermercado uma edição solitária de "Grande Sertão: Veredas" a preço irrisório. Como não tinha dinheiro, pedi aos meus pais que colocassem a obra-prima de João Guimarães Rosa no carrinho como quem pede uma caixa de chocolate antes do almoço.

"Você acha mesmo que vai ler tudo isso com tanta coisa pra estudar?", perguntou meu pai.

Insisti. Aquele livro tinha se tornado objeto de desejo por culpa do professor André Luiz Guerra, que numa aula de literatura do cursinho sobre "Primeiras Estórias" — uma das muitas aulas em que lambia os dedos ao descrever o universo literário brasileiro com um manjar a ser devorado —, adentrou indevidamente no território de Riobaldo Tatarana e Diadorim, que não estava na lista das leituras obrigatórias de vestibular. A aula terminou com uma discussão acalorada sobre quem foi mais longe, se Guimarães Rosa ou Machado de Assis. (Houve quem lutou até o fim por Clarice Lispector ou Graciliano Ramos).

Embora não soubéssemos, tínhamos todo tempo do mundo antes de ele começar a escassear.

De "nonada" à "travessia", cheguei ao fim do livro antes que o cheiro de novidade daquelas páginas se dissolvesse numa prateleira qualquer. Comecei a leitura no carro e terminei na edícula dos fundos da casa dos meus avós, onde desbaratava o calor da região de São José do Rio Preto com um ventilador de teto e uma janela aberta que anunciava quando era dia e quando era noite.

Era a pior hora para ler o Grande Sertão. Era a melhor hora.

Naquele cubículo eu tinha tudo o que mais sentiria falta na vida adulta: tempo e solidão (ela nem sempre é razão para desespero). Não tinha ainda operadora me telefonando com propostas para turbinar meu plano de dados. Não tinha notificação a respeito da última querela no Twitter. E eu ainda não precisava me sentir culpado por me isolar do mundo enquanto uma criança de sete anos espera do pai um pouco de atenção e disposição para jogar futebol, pedalar, ligar o videogame ou botar no canal do youtuber de games que passa o dia fugindo da Granny.

Já não me gabo por ter entrado madrugada adentro em companhia de um filósofo jagunço que me levou ao sertão e apontou a expansão do universo. Me gabo, nas conversas com os amigos, por conseguir travar e destravar minha própria VAP e mostrar o resultado do trabalho numa manhã de domingo. Na vida adulta, nosso quintal regado a água e pressão é nosso teto da Capela Sistina de ponta-cabeça.

Se alguém me perguntar o que ganhei com aquele livro, além dos vícios de querer imitar os neologismos de Guimarães Rosa, não saberia bem explicar. Este não é um texto sobre literatura. É sobre administração do tempo.

Desconfio que não tem idade melhor para desbravar os clássicos do que aos 20 anos ou menos. Depois disso a vida se torna uma aula aplicada de economia da atenção.

Diante dos primeiros fios de cabelo branco, guardo na estante o que deixei pra depois em busca da chamada "hora certa", hoje projetada numa velhice tranquila que me leve à Rússia dos grandes romancistas do século 19. Até lá, chegar ao fim de um dia de labuta, incluindo o trabalho invisível relacionado à casa e ao filho, e conseguir assistir meia hora de série antes de capotar já é vitória.

Portanto, jovens, envelheçam, mas antes leiam tudo o que tiver em mãos. Não deixem para ler depois o que pode desgraçar sua cabeça hoje. Essa última frase contém ironia.