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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lockdown em Araraquara: o dia em que a (minha) terra parou

Araraquara na primeira tarde após lockdown total - Matheus Pichonelli/UOL
Araraquara na primeira tarde após lockdown total Imagem: Matheus Pichonelli/UOL

Colunista do TAB

22/02/2021 12h27

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Na frente da casa, tampas de garrafas e algumas bitucas de cigarro guardam resquícios de um universo temporariamente suspenso. Em um domingo normal, com ou sem pandemia, esse universo abriria as portas por volta das 9h — e não fecharia enquanto houvesse cliente debaixo do toldo surrado. Mas desde 15 de fevereiro os bares estão proibidos de funcionar em Araraquara, a 280 km de São Paulo.

Do início da quarentena, em março, até o último domingo (21), 171 pessoas já haviam morrido por covid-19 no município. Uma destas pessoas era da nossa família. Mais de dois terços dos óbitos foram registrados desde o fim do ano, quando a curva de contaminação explodiu, e as variantes da Inglaterra e de Manaus foram encontradas nos pacientes.

Um oceano e praticamente um continente inteiro separaram as pontas desse triângulo.

Se quisesse correr o risco de resumir (mal) a história, diria que meus pais — ambos com mais de 60 anos — estão trancados em casa pelas próximas 60 horas porque uma família de Manaus decidiu conhecer o Brasil em uma van, no fim do ano passado, e estacionou por aqui em janeiro após uma das passageiras, de 45 anos, passar mal. Em estado grave, ficou quase um mês em observação na Santa Casa da cidade.

Outros integrantes da van também manifestaram sintomas de Covid e foram internados em 11 de janeiro. Três dos passageiros, assintomáticos, precisaram dormir na van durante o período. O veículo ficou estacionado em frente à Unidade de Pronto Atendimento da Vila Xavier, onde cresci. A estadia só terminou em 22 de janeiro.

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Araraquara na primeira tarde após lockdown total
Imagem: Matheus Pichonelli/UOL

Em uma entrevista, o prefeito da cidade, Edinho Silva (PT), disse não haver ligação científica comprovada entre a van de turistas e o fato de a nova cepa brasileira, incidente no Amazonas, circular pela cidade. Mas enfatizou que ela é mais contagiosa do que as variações anteriores do vírus.

Com 100% das UTIs lotadas e o crescimento do índice de contaminação, a cidade entrou em lockdown na segunda-feira (15). Bares, lojas e restaurantes fecharam as portas. Seis dias depois, até supermercados e postos de gasolina foram proibidos de funcionar.

Se tinha uma boa hora para visitar a cidade onde nasci e vivi até os 18 anos, definitivamente não era neste fim de semana.

Em nossa defesa, ninguém veio para cá a passeio. Chegamos no sábado para uma missão: levar minha cunhada, de 17 anos, para prestar a segunda fase da Fuvest na cidade vizinha — Ribeirão Preto. O motorista titular, meu sogro, havia quebrado a canela dias antes e não podia dirigir.

A casa da minha sogra virou o ponto de embarque, de onde só saímos para pegar a estrada no dia seguinte.

O silêncio no bar ao lado, conhecido pela barulheira até altas horas, parecia contar toda a história de um vírus que há pouco mais de um ano foi identificado em Wuhan, na China, e bateu à porta de casa após atravessar o mundo e mudar a História, com H maiúsculo. Uma prova cabal de que se um morcego balança as asas do outro lado do Planeta um furacão se forma no nosso quintal.

No meio desse furacão, você sente um pouco de tudo — inclusive enjoo e ânsia de vômito pelo medo de ser flagrado circulando pela cidade sitiada, mesmo com uma inscrição de vestibular na mão. E se não for um motivo razoável para entrar e sair de casa? E se não for suficiente o argumento de que no banco de trás pode estar uma futura integrante do Supremo Tribunal Federal? (Minha cunhada quer cursar Direito. Pelas notas dos últimos anos, já ensaiamos o momento em que a chamaremos de ministra).

Araraquara na primeira tarde após lockdown total - Matheus Pichonelli/UOL - Matheus Pichonelli/UOL
Araraquara na primeira tarde após lockdown total
Imagem: Matheus Pichonelli/UOL

Até as 12h, quando o lockdown total entrou em vigor, era possível observar pelas ruas apenas o movimento de pessoas com máscara, a maioria idosos, indo e voltando para casa com sacolas na mão e o semblante de luto.

Apenas as badaladas do sino da igreja São Geraldo, no bairro onde estamos, produzia alguma familiaridade com um domingo comum. Em outros tempos, logo cedo, veríamos os atletas de fim de semana descerem a rua ao lado para o rachão no Clube 22 de Agosto. Veríamos famílias enchendo o porta-malas com esteiras e varas de pescar em mais uma manhã de calor a caminho do Náutico ou de algum pesqueiro perto daqui.

Veríamos também os ciclistas paramentados pedalando em direção a Bueno de Andrada, onde as famosas coxinhas douradas da crônica do Ignácio de Loyola Brandão se tornaram uma espécie de cálice sagrado a premiar quem completa o trajeto. (Nos condomínios que se proliferaram nos últimos anos, parques e áreas comuns foram fechadas. Em alguns, nem pedalar era permitido).

Ah, sim: em uma manhã normal de domingo, o dono do bar vizinho já estaria ouvindo os prognósticos para a rodada de fim de semana de algum cliente empolgado já na terceira garrafa.

Em vez disso havia apenas o sol, silêncio e integrantes das equipes de saúde, vestidos como astronautas, batendo nas portas de algumas casas.

O silêncio permitia ouvir até o farfalhar de folhas na calçada esvaziada. Andar pelo quarteirão é como andar pela cidade de madrugada. Uma madrugada à luz do dia. Com os carros e coletivos parados na garagem, era possível escutar com nitidez o canto de pássaros e as conversas dos vizinhos de muro.

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Araraquara na primeira tarde após lockdown total
Imagem: Matheus Pichonelli/UOL

Saímos da cidade antes do almoço. Não chegamos a ouvir a sirene da Cutrale, a gigante produtora de suco de laranja e símbolo maior da cidade, anunciando o lockdown total. Quando voltamos, apenas farmácias e hospitais tinham autorização para funcionar (algumas, ainda assim, fecharam).

Em Ribeirão, a velha-nova-realidade parecia nos levar a outro mundo, muito mais distante no espaço-tempo do que os 78 quilômetros de distância poderiam sugerir.

Tirando as máscaras, um visitante não desconfiaria que estávamos em um país em pandemia. O shopping estava lotado, e parecia uma péssima ideia esperar as cinco horas de prova em contato com tanta gente. Resolvemos dar um tempo no estacionamento coberto. Até que um veículo perdeu a direção da curva e encheu a lata do nosso carro parado. (A batida só riscou a lataria, apesar do susto. Como se diz lá na minha terra, quando chove merda não garoa).

Na volta, uma bola de fogo enorme no céu entre nuvens ajudava a lembrar por que a nossa cidade é conhecida como Morada do Sol. Como um corpo estranho, entramos na cidade sem encontrar resistência. Não havia policiamento nos locais onde circulamos até nossa casa provisória.

Aqui e ali era possível encontrar moradores de máscaras, desconfiados, conversando em frente de casa, homens sem camisa, alguns em cadeiras de praia e cachorro no colo. Vi uma mulher levando um prato de comida coberta de papel alumínio para alguém — um parente, um amigo que não abasteceu o estoque? Nunca vamos saber.

O cenário não fazia sombra à cidade que, mesmo aos domingos, vê a noite chegar com uma multidão a caminho da avenida Bento de Abreu, onde ficam as lanchonetes e carrinhos de lanche, e novos casais se formam há décadas no entorno do Teatro Municipal. Mesmo no quarteirão de casa, é estranho ver a semana terminar sem ninguém passar a mil em um Golf tunado, com funk ou sertanejo no talo.

Fica difícil não lembrar do filme e da música homônima do Raul Seixas: "O dia em que a terra parou".

Já na escuridão total, só as gotas de chuva competiam com o som da TV, onde a cidade era tema de uma extensa reportagem do Fantástico (mãe, estamos na Globo, e essa não é a boa notícia).

Quem chegasse desavisado à cidade imaginaria que ela fora evacuada antes de um bombardeio inimigo. Em vez disso, tinha acabado de ser dragada para dentro de suas casas com um toque de recolher. Como numa guerra, é o recuo estratégico para evitar a carnificina.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL