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Trombadas

Os ferros afiados de Clebison

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

29/07/2021 04h01

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Você diz se eu não fosse pessoa? Não fosse rapaz, marceneiro, assim que nem eu sou? Bom, se era pra ser outra coisa diferente eu queria ser madeira. Um cumaru igual ao pai da gente. Forte, firme, mais duro que pedra. Nada destrói. Nem chuva, nem vento, nem sol, nem terra, nem cupim. Nem a cachaça. Cumaru usa em estrutura, construção, assoalho, beira de piscina, sustentação. Mas, se tiver prática e paciência, dá móvel também. Uma mesa de ripa de cumaru vai a vida todinha e ainda chega nos filhos e nos netos. Não. Pra ser cumaru falta um muito. Preciso endurecer, ficar mais rígido. Ainda sou uma emburana, acho que. Conhece emburana? Chama emburana no norte, aqui no sul vocês nomeiam cerejeira. Madeira molezinha, de casca fina, perfumada, boa pra fazer santo, canoa de brinquedo, cama, armário. Você molda como quer, só uma faquinha dá conta. O melhor dela é que ela é igual na inteireza toda, sempre lisinha, não muda de cor do miolo pra beira. Uniforme, como se diz. E, mesmo molezinha, é bem resistente. Mas é difícil ver emburana nesses lados. Eu vi só uma vez. Um dia apareceu uma viga pra nós e o cliente achou esquisito que eu abracei ela. Mas eu abraço madeira. Abraço pra sentir ela: o peso, o perfume, a lisura, as trincas. Quando abracei a emburana veio aquele cheirinho doce e lembrei da nossa mãe. Emburana é madeira de coração bom igual a nossa mãe, né Moisés? Esse é o Moisés, meu irmão mais velho. Ele que me trouxe em São Paulo tá pra dois anos.

Nasci em Rondônia. Nossos pais eram agricultores lá. Plantavam café pro fazendeiro e recebiam 2% da colheita como pagamento. Eles trabalhavam e o homem não, porque ele era o dono da terra. Nossa casa era de madeira bem fininha, lembro. E eu gostava da época do caju: pegava as castanhas, assava na lata e vendia em pacotinho. Eu era feliz porque era criança, mas a vida era boa, não. Nosso pai até conseguiu ter um boi e uma vaca, pra tentar começar uma criaçãozinha dele. Mas, de cada três bezerros que nasciam, dois tinham que ser do homem. A nossa comida a gente comprava dele também, porque só ele conseguia ir no mercado da cidade, que era distante. Então ficou ruim e a família toda mudou pro Maranhão por questão de dias melhores, pra dizer.

Foi no Maranhão que começou a história com madeira. O nosso pai, que é analfabeto mas tem umas ideias boa da disgrama, foi construir e reformar armas pros índios que viviam no mato. Arco e flecha nada! Isso é antigo demais pra eles. Arma de fogo mesmo. Rifle, espingarda. Às vezes eles pagavam com dinheiro, às vezes com comida: macaco, veado, paca, jacaré. Desse tempo no Maranhão, o que mais lembro é disso, da comida. O jacaré nossa mãe cortava a cabeça e os olhos dele continuavam abrindo e fechando. Tem gosto misturado de frango com peixe. O macaco era duro, pelo menos o que a gente comia, que era o macaco-capelão, mas bem cozido descia bem. E às vezes comia jabutizinho também, porque nem sempre tinha bicho maior. O pai entrava no mato, ficava quatro, cinco dias atrás de caça e voltava sem nada. Aí a gente almoçava farinha com água e jantava farinha com sal. Me dá tristeza grande pensar nisso. A nossa mãe deixava de comer pra sobrar pra nós. Acontecia de ter só um passarinhozinho na mesa e ela mentia: "Tô sem fome".

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Agora, quando sinto agastado, ou cansado, eu penso no Maranhão. Penso assim, Clebison, seja forte, porque você já comeu farinha com água e quem já comeu farinha com água não pode vergar que nem bambu. Só que aí a agastura vira raiva e eu não sei o que fazer. Porque as pessoas aqui em São Paulo destroem comida. Magoa a gente. Tem um programa de televisão que o homem põe biscoito, pão, banana, até castanha de caju na água pra ver se flutua ou afunda. Você já viu esse programa? Eu vi e me subiu na garganta um azedo igual de quando a gente serra o angelim. Segurei pra não chorar.

No Maranhão também não estava bom. Juntamos as coisas e mudamos pro Piauí, onde meu avô, pai do nosso pai, deu uma casinha pra nós. Dois cômodos, bem pequeninha, a gente tinha que abaixar pra entrar, mas foi a primeira casa de tijolo que morei. No Piauí era melhor. Fiz escola até o primeiro ano do ensino médio e depois comecei a ajudar o nosso pai mais Moisés na marcenaria. As nossas irmãs, Gislaine e Gisleine, permaneceram nos estudos, por isso são as mais inteligentes da família. Eu sou mais do trabalho, mesmo. Aprendi as coisas com nosso pai e continuo aprendendo com o Moisés. Ele diz que ainda tenho a mão pesada, então só dá pra trabalhar com madeira bruta, maciça. Peroba, canelinha, cambará, eucalipto. Pra lidar com MDF, essa paçoca de madeira que faz armário de cozinha, sabe?, que é mais delicado, preciso praticar.

O que eu mais gostava no Piauí é que tinha bastante coisa pra fazer sem dinheiro: rio pra nadar, lagoa pra pescar, pedra pra subir no alto, pasto pra correr. Com R$ 100 a gente cortava madeira direto no mato. Trazia nas costas, serrava, aplainava e fazia mesa e cadeira de monte. Em São Paulo a madeira é de reúso, vem da demolidora retinha, bonitinha, mas R$ 100 compra um pedaço tão pequeno que mal dá um banquinho. Aqui nem água a gente bebe sem pagar. Outro dia me disseram que tem um lugar mais pro interior onde cavaram um tanque no chão, um açude pequeninho assim, encheram de peixe e aí cobram de quem quer ir pescar lá. Esse negócio me embaraçou a mente. Sair pra pescar tendo certeza de que vai pegar o peixe? Isso lá é pescaria? Compra logo no mercado, né? No meu caso, o bom da pescaria é não ter certeza de nada. Tem dia que dá peixe, tem dia que não dá. E dos dois jeitos é bom. Mas cada um se diverte como consegue.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu, nos dias de hoje, me divirto jogando no celular. Moro nessa casinha ao lado do serviço, não gosto de farra, de bebida, essas coisas. Quase não saio. Quando não tô serrando madeira eu tô jogando online. É um joguinho de sobrevivência chamado "Free Fire". São cem inimigos contra seu time. O último que fica vivo, vence. Você pode ficar escondidinho esperando todo mundo morrer, é uma maneira de jogar. Mas eu vou pra cima. Não é só brincadeira, faz a gente pensar, sabia? Tem duas coisas que esse joguinho me fez pensar por esses dias. Uma boa e a outra ruim.

Vou falar primeiro a coisa ruim. É que no meu time sempre estava uma menina que conheci no Piauí quando era criança. A gente era próximo, tinha uma amizade muito boa. Quando vim pra São Paulo, jogar no celular ficou sendo a hora de falar com ela todos os dias, mesmo longe um do outro. Mas aí ela casou e agora vai ter bebê e não joga mais. Como me senti? Com dor. Que nem aquele tronco de eucalipto, tá vendo ele? Todo rachado, deve ter uns cem anos. Tá inteiro, vai continuar inteiro se não queimar ou pegar chuva, mas essas trincas fundas não tem mais como tirar.

A coisa boa do joguinho agora: à noitinha, quando vou pra cama e penso nele, eu fico me perguntando qual a diferença de sobreviver e viver. É complicado, vou tentar explicar. Quando eu morava no norte eu sobrevivia, certo? Matava um calanguinho que fosse pra comer e não morrer. Mas, ao mesmo tempo, era mais livre. Fazia várias coisas, ia aos lugares com as minhas pernas, não precisava de quase nada, tudo que era bom tinha lá.

Já aqui no sul eu não me preocupo com comida. O patrão na marcenaria me ensina a comprar bitcoin. Já consegui tirar R$ 5 mil de lucro. Mandei R$ 3 mil pra nossa mãe comprar umas vaquinhas, guardei R$ 1.000 e com os outros R$ 1.000 fui no supermercado gastar em alimento. Trouxe até doce de leite. Faz três meses e o nosso armário continua cheio, Moisés tá de prova. Então, aqui em São Paulo eu vivo, mas sou mais preso, porque nada aí fora me interessa muito.

Fazendo as contas no lápis fica assim:
Sobreviver = - comida + liberdade
Viver = + comida - liberdade

Daí que não acho jeito de juntar as partes boas, viver com liberdade. Acho que em São Paulo não dá não. Talvez noutro lugar, no Mato Grosso onde nossa mãe mora agora, num sítio com riacho, plantação. Onde está a parte boa disso tudo? Ter esses pensamentos, esses raciocínios, é a parte boa, entendeu? Acho que, apesar de tudo, São Paulo enfraqueceu aquele bruto que tinha dentro da gente. Tô mais conhecedor. E aí, quando for a hora de ir embora, eu vou melhor de que cheguei.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Sim, eu tô aqui mas meu coração não é daqui. Ele é do mato. Fazer marcenaria dá alegria pro meu coração do mato. Sou agradecido por ter esse ofício. Tanta gente que trabalha no que não gosta. Eu tenho amor no que faço. E o nosso pai ensinou que não tem coisa mais importante que isso. Por exemplo, outro dia um cliente encomendou uma casinha de coelho. Eu fiz um palácio de coelho, com andares, varanda, o homem não acreditou quando viu. Fiz como se fosse uma casa pra mim. É amor mesmo. Porque passar uma madeira na serra é a coisa mais gostosa que tem. Ver a serragem voar, sentir o cheiro das madeiras, cada uma tem o seu. Só que tem afiar os ferros, isso é importante também. Quando os ferros estão bem afiadinhos, cortando cumaru como se fosse margarina, tudo dá certo, tudo é suave e alegre. Parece música.

Mas você me desculpa que agora eu preciso voltar pro serviço. Chego já, Moisés! Só um minuto! Pra encerrar, que a conversa foi boa, viu?, eu queria dizer outro pensamento que tive: é que a coisa mais importante da madeira, a maior de todas, é que ela não precisa de enfeite pra ser bonita. Cada madeira é ela, tudo.

A vida da gente devia ser assim.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Clebison da Silva Nascimento, 20 anos

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.