20 ANOS DE ESPERA

Desaparecido em 1989, Luiz só foi sepultado em 2009; família foi ameaçada para parar pressão por investigação

Amanda Rossi Do UOL, em São Paulo teste

Na última vez que Luiz Miranda foi visto com vida, a expressão no seu rosto era de pavor. Com as mãos ao alto, o motorista de 21 anos foi revistado por um homem armado que vestia colete preto, como os usados pela Polícia Civil, em um viaduto movimentado de São Paulo. Em seguida, Luiz desapareceu. Por duas décadas, seus restos mortais ficaram guardados em um saco azul no IML (Instituto Médico Legal) Central de São Paulo, à espera de confirmação da identidade e sepultamento.

Era início da tarde de 14 de dezembro de 1989, quando o Fiat Fiorino que Luiz dirigia foi abordado por dois homens armados no bairro da Mooca. O motorista e seu patrão, o estilista Arnaldo de Abreu, 38, foram obrigados a desembarcar. Algemados, foram colocados na caçamba do veículo e levados para local desconhecido.

Um congestionamento se formou no viaduto. O homem de colete policial que revistou Luiz fazia sinal com as mãos para pedir que os demais carros continuassem passando. Parecia uma abordagem policial. Mas não havia nenhuma viatura no entorno.

Naquela altura, o cenário da violência no Brasil era outro. Ainda não haviam sido criadas as milícias nem muitas das facções que dominam o conflito armado hoje no país. A ditadura militar havia recém acabado e, em três dias, os brasileiros votariam em segundo turno na primeira eleição presidencial direta da redemocratização.

A forma de violência que mais assustava São Paulo eram os sequestros. Dias antes, em 11 de dezembro, o empresário Abilio Diniz havia sido levado por criminosos e seu cativeiro era procurado intensamente pela polícia. Por isso, em um primeiro momento, as famílias de Luiz e Arnaldo acharam que eles também haviam sido sequestrados.

"Preciso das autoridades para encontrar meu filho. Ele é tão importante quanto Abilio Diniz", dizia uma cartolina segurada pelo pai de Luiz em frente ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Entre o Natal e o Ano-Novo de 1989, o pai protestou no local para cobrar por investigações sobre — o que acreditava ser — o sequestro do filho. Em greve de fome, dormia no gramado diante da entrada do prédio.

"Só saio daqui quando a polícia começar a investigar, com interesse igual ao caso do empresário Abilio Diniz, o sequestro do meu filho", disse, na época, para jornalistas.

O pai também mostrou para os repórteres o registro de uma ligação feita para o Copom (Centro de Operações Policiais Militares) às 14h55 do dia 14 de dezembro. Uma testemunha viu as vítimas serem colocadas na caçamba da Fiorino, achou a cena suspeita e pediu para a polícia averiguar. Mas, apenas dois minutos depois, às 14h57, a busca policial foi "cancelada por ordem superior".

Outras duas testemunhas se apresentaram na polícia depois de verem o protesto do pai de Luiz nos jornais. Eram trabalhadores que passavam pelo local enquanto as vítimas eram algemadas. Na ocasião, eles criticaram o local "impróprio" do que julgaram ser uma operação policial, gerando trânsito. Um deles fixou o rosto de Luiz: "Tinha uma expressão de medo, estando apavorado e tenso".

O protesto do familiar de Luiz também ganhou a atenção do então governador Orestes Quércia, que o recebeu no palácio. Depois disso, o DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa) entrou no caso.

LINHAS DE INVESTIGAÇÃO

Apesar de o relato das testemunhas indicar que motorista e estilista haviam desaparecido após uma abordagem policial, a investigação seguiu uma linha completamente diferente.

"Estamos investigando a ligação de Luiz com pessoas da indústria de roupas envolvidas no uso de cocaína. Tudo indica que o crime foi praticado a mando — e, possivelmente, de traficantes de tóxicos", disse o delegado Paulo Roberto Siquetto, da Delegacia de Pessoas Desaparecidas, em entrevista para o jornal O Estado de S.Paulo, em janeiro de 1990.

Outra versão apresentada pela polícia na época falava de uma briga entre Arnaldo e um concorrente da moda. Nada era dito em público sobre os indícios de violência policial.

"Eles [polícia] não foram a fundo. Não sei se era porque tinha alguma coisa de envolvimento [policial]. Eram tantas versões, que a gente acaba desacreditando em todas e acreditando em todas. Eu achei um descaso, mas quem sou eu pra brigar com eles. E eu tinha que tocar minha vida para frente", diz Elaine de Abreu, mulher de Arnaldo na época. No ano do desaparecimento, os filhos do casal tinham 8 e 10 anos.

O UOL pediu para a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para consultar o inquérito do caso. Instaurado em 1989, foi encaminhado para o Tribunal de Justiça de São Paulo, em 1995, não como homicídio, mas "crime contra a liberdade pessoal". Não foi apontado nenhum culpado.

Mas a secretaria, que é responsável pelas polícias paulistas, não liberou a consulta. Alegou que, após 20 anos, "os documentos são eliminados". Já o Judiciário arquivou o inquérito. A reportagem pediu o desarquivamento, que precisou ser autorizado por um juiz.

Os documentos mostram que três diferentes delegados passaram pelo caso. O último chegou a escrever que "existe realmente a possibilidade da participação de policiais". Por isso, determinou que as testemunhas fossem encaminhadas para "a chefia geral de todas as carreiras policiais no âmbito da Polícia Civil e junto ao comando da Polícia Militar, para que realizem reconhecimento junto aos álbuns fotográficos dos integrantes da referida corporação". Ao final, viram apenas imagens de investigadores da força civil, não reconhecendo ninguém.

Já no relatório final do caso, o mesmo delegado omitiu a apuração sobre violência policial. "Foram tomadas três linhas de investigação, sendo a primeira assalto, a segunda ciúme relacionado à confecção (onde as vítimas trabalhavam) e a terceira uso de entorpecentes por uma das vítimas. Porém, nenhuma destas restou solucionada."

"A gente não sabe com quem está mexendo. Pelo lado do rapaz [Luiz], a família mexeu [no caso] e acabou tendo consequências desagradáveis. Foram bem penalizados", diz Elaine, hoje com 60 anos.

AMEAÇAS E ATENTADOS

Em fevereiro de 1990, a polícia fez a reconstituição do arrebatamento de Luiz e Arnaldo. Luiz foi representado por um de seus irmãos, à época com 20 anos. No dia seguinte, o rapaz sofreu uma tentativa de homicídio. Estacionava o carro que pertencera a Luiz em frente ao comércio do pai, quando outro veículo passou na rua e, de dentro dele, foi disparado um tiro.

Três meses depois, o irmão de Luiz dirigia na marginal Pinheiros quando homens encapuzados o renderam, algemaram e o colocaram em outro veículo. Primeiro, o rapaz apanhou. Depois, ouviu dos criminosos: "Já batemos bastante, agora vamos brincar diferente". Seu rosto e peito foram cortados com uma lâmina de barbear.

"Esse é um recado para você e para seu pai", disseram os encapuzados. Para validar a ameaça, passaram a detalhar a rotina da família. Inclusive, dos dois irmãos mais novos de Luiz, na época com sete anos. Disseram onde as crianças estudavam e quais eram os nomes dos coleguinhas que se sentavam ao lado delas na sala de aula.

Cerca de 20 km depois, já na marginal Tietê, o rapaz foi liberado, ainda algemado e apenas de bermuda. O caso foi imediatamente registrado na delegacia.

"Não sabe dizer o que estaria acontecendo para gerar tamanha violência contra o filho desaparecido e o seu outro filho (que sofreu atentado). Tudo evidencia um grande interesse em ocultar algo grave", segundo testemunho do pai de Luiz na polícia.

"Quando do sequestro (do filho na Marginal Pinheiros), ficou efetivamente demonstrado que os sequestradores sabiam exatamente sobre todos os movimentos da família. O filho está traumatizado. A execução dos fatos demonstra um possível envolvimento de policiais", prosseguiu o pai.

A polícia jamais garantiu a segurança da família, que, em pânico, decidiu parar de pressionar por investigações. Alguns anos depois, saiu de São Paulo para recomeçar a vida em outra cidade.

Após mais de três décadas, os parentes de Luiz ainda não se recuperaram do trauma. Procurados pela reportagem, pai e irmãos da vítima não quiseram tocar no assunto. Para preservá-los, o UOL omitiu seus nomes e o local onde vivem. Até hoje, os negócios da família são nomeados com o apelido de Luiz — que também não será revelado.

UM LEÃO NA MOOCA

Uma das três testemunhas que viram Luiz e Arnaldo serem arrebatados também recebeu telefonemas em tons de ameaça. Em tese, só a polícia poderia saber seu nome e seus dados, que estavam sob sigilo.

Ao telefone, a voz era sempre a mesma. Sugeria que a testemunha parasse de colaborar com a polícia. Em uma das chamadas, se apresentou como delegado no Ipiranga.

Em depoimento para a polícia, a testemunha disse que, nas ligações, "pôde ouvir perfeitamente bem, como se fosse ruído de fundo, o rugir de algum felino de grande porte". Certa vez, "a voz que ameaçava dirigiu-se a uma terceira pessoa dizendo: 'tira a fera daqui'".

Não foi a única menção ao felino durante a investigação do caso. Logo após o desaparecimento de Luiz e Arnaldo, a família do estilista recebeu uma sugestão de advogado para ajudar no caso. Foram até o escritório, que ficava na Mooca, mesmo bairro onde as vítimas desapareceram.

Enquanto aguardavam pelo profissional, os parentes de Arnaldo ouviram o que parecia ser um rugido. Um homem não identificado surgiu e disse que o leão estava com fome, convidando a família para ver o animal se alimentar. Nos fundos do escritório, havia, realmente, um leão enjaulado. O homem comentou ainda que, "se precisasse que alguém confessasse alguma coisa, era só pôr de frente com o leão".

Além do leão, havia no escritório cachorros de grande porte, entre eles um fila. Ao encontrar a viúva de Arnaldo, o advogado disse que os cães "podiam até deixar alguém adentrar naquele recinto, mas que, para sair, ninguém sairia". Também citou uma instituição no Ipiranga, informando ser corregedor. Os parentes de Arnaldo relataram ainda que viram no escritório uma pessoa vestindo o colete preto da polícia e portando arma de fogo.

O advogado era Waldir Sinigaglia. Chamado para depor em 1994, confirmou que de fato teve um leão, depois doado para a Polícia Militar. Disse não saber nada sobre o desaparecimento de Luiz e Arnaldo. Não foi questionado se teria ameaçado uma das testemunhas. Um filho do advogado disse para o UOL que o pai realmente teve um cargo de corregedor no Foro do Ipiranga.

Mais de uma década depois, Sinigaglia foi acusado de manter relações espúrias com agentes públicos. Em 2008, o Ministério Público Federal o denunciou por participar de um esquema para que uma desembargadora proferisse decisão favorável a bingos. Em 2010, o Ministério Público de São Paulo o denunciou por pagar "uma grande soma em dinheiro para que [policiais civis] tolerassem o funcionamento das máquinas de jogo em São José dos Campos". O advogado morreu neste ano.

CORPOS ENCONTRADOS EM GUARULHOS

Em janeiro de 1990, depois da greve de fome do pai de Luiz dar ignição às investigações, um investigador de polícia descobriu que dois corpos haviam sido encontrados em Guarulhos, Grande São Paulo, apenas uma semana após o arrebatamento na Mooca. Os corpos tinham marcas de tiro na cabeça. Sem mais investigações, foram enterrados como desconhecidos em Guarulhos mesmo.

Para averiguar se eram Luiz e Arnaldo, a polícia determinou que os corpos fossem desenterrados e encaminhados para análise do Núcleo de Antropologia do IML de São Paulo. Naquela época, o exame de DNA era raro. O estudo dos ossos e das arcadas dentárias davam as principais pistas para o reconhecimento.

Familiares de Luiz e Arnaldo acompanharam a exumação dos corpos e disseram não reconhecê-los. "Pela altura, porte físico e tipo de cabelo, nenhum destes cadáveres desenterrados aqui é do meu filho", disse, na época, o pai do motorista para a imprensa. Mas, naquele momento, após cerca de três semanas do encontro dos corpos, o estágio de decomposição estava avançado.

Em maio, o Núcleo de Antropologia encontrou indícios de que um dos corpos era, sim, de Luiz: "No exame odonto-legal, o cirurgião dentista que cuidou de Luiz Miranda reconheceu como de sua autoria duas restaurações encontradas no crânio periciado". O mesmo ocorreu com Arnaldo.

Fazia apenas dois dias que o irmão de Luiz tinha sofrido o segundo atentado, levando a família a deixar o caso. O pai do motorista continuou acreditando que o filho poderia estar vivo. Teria perdido a memória após o sequestro e, a qualquer momento, poderia lembrar quem era e voltar para casa.

20 ANOS NO IML DE SP

Em 2007, o irmão de Luiz decidiu romper o recolhimento da família e foi buscar informações no Núcleo de Antropologia do IML. Estava com 37 anos. Já Luiz, se estivesse vivo, teria 39.

"Sofreu duas tentativas de homicídio. Sendo uma [delas] um dia após a reconstituição do crime [desaparecimento de Luiz]; a outra ao sair da Delegacia Antissequestro, quando ficou sabendo que já se tinha o nome dos envolvidos. Na segunda tentativa, houve uma ameaça de que era para parar com as investigações. Diante disso, a família parou", registrou o IML.

Na instituição, o irmão de Luiz foi recebido por Edilene Junqueira. Funcionária do órgão desde 1993, é a pessoa central no atendimento às famílias de desaparecidos. Dona de uma memória espantosa, conecta informações que ouviu sobre as vítimas com circunstâncias de encontro de cadáveres analisados no Núcleo de Antropologia, ajudando a acelerar as investigações.

No caso da maior vala clandestina de São Paulo, em Pedreira, com 27 corpos achados entre 2020 e 2021, um perito mandou para o WhatsApp de Edilene fotos de documentos encontrados no local. Na hora, ela lembrou que havia atendido a família de um desaparecido com o mesmo nome. Em outro caso, recebeu uma correntinha que estava no pescoço de um cadáver e recordou que aquele mesmo objeto havia sido descrito por parentes de outra pessoa sumida.

Mas, dessa vez, a memória de Edilene não podia ajudar — o caso era anterior ao seu ingresso no IML. No livro de ata dos casos antigos do Núcleo de Antropologia, encontrou os corpos desenterrados em Guarulhos no início de 1990. Um dos registros tinha o nome de Luiz marcado a lápis — devido à suspeita levantada pela análise da arcada dentária. Já quando há confirmação de identidade, o nome é reescrito com caneta azul.

Logo depois, Edilene descobriu que a ossada seguia armazenada no Núcleo de Antropologia. Uma amostra do resto mortal foi extraída para exame de DNA. Pai e mãe de Luiz também coletaram sangue. Sete meses depois, em março de 2008, saiu o resultado. "Podemos concluir pela inclusão de paternidade e maternidade com probabilidade de 99,9999975% de que (nome da mãe omitido pela reportagem) e (nome do pai) sejam os pais biológicos da ossada."

A partir daí, a família enterrou de vez a expectativa de reencontrar Luiz vivo. "O desaparecimento é algo que só começa a cicatrizar com a identificação", diz Edilene.

A certidão de óbito foi alterada para substituir "desconhecido nº 2260/1989" por Luiz Miranda. Em dezembro de 2009, os restos mortais foram finalmente entregues à família e sepultados em um ossário na zona leste de São Paulo. Naquele exato mês, completaram-se 20 anos do homicídio — o prazo de prescrição do crime.

Já os restos mortais encontrados junto aos de Luiz seguem sob a custódia do Núcleo de Antropologia. No livro de atas, o nome do estilista Arnaldo de Abreu continua escrito a lápis.

Valas clandestinas

Escavações e cachorros encontram 201 corpos em SP e RJ

Mais capítulos da série

Mortes invisíveis

Levantamento feito pelo UOL revela 201 corpos em valas clandestinas em SP e no Rio; maioria das vítimas não foi identificada, dificultando as investigações e favorecendo o crime.

Ler mais

26 mil vestígios sem nome

Escassez de dinheiro e de pessoal qualificado explica alto número de restos mortais não identificados nos IMLs de todo o país, mantendo uma ferida aberta para as famílias das vítimas.

Ler mais

Sumidos à força

Boletins de ocorrência de desaparecimento revelam ações do crime organizado e indícios de homicídio, mas polícia trata familiares de vítimas com desdém e deboche.

Ler mais

Desova na água

De 2016 a 2021, o estado do Rio localizou mais de 350 encontros de corpos em rios, praias e outras áreas alagadas. O número inclui vítimas de quadrilhas, que usam espaços para dificultar descoberta de homicídios.

Ler mais

Caso enterrado

Investigação de vala clandestina em SP intercepta áudios sobre 'tribunal do crime' do PCC, mas tem sequência de erros que pode levar a arquivamento dos processos e deixar famílias sem resposta.

Ler mais
Topo