26 mil vestígios sem nome

Escassez de dinheiro e de pessoal qualificado explica alto número de restos mortais não identificados nos IMLs

Amanda Rossi, José Dacau e Saulo Pereira Guimarães Do UOL, em São Paulo e no Rio teste

Amostras de sangue e de saliva, ossadas, arcadas dentárias, fios de cabelo e outros exemplares biológicos formam um acervo de 26 mil restos mortais não identificados nos IMLs (Institutos Médicos Legais) e laboratórios forenses do Brasil.

O dado foi levantado em 2021 junto às unidades da federação pelo Comitê Gestor da Política Nacional de Buscas de Pessoas Desaparecidas — subordinado aos Ministérios da Justiça e da Mulher, Família e Direitos Humanos.

A "notória escassez de insumos e pessoal técnico qualificado para realização de serviços de identificação forense" é um dos motivos para o alto número de restos mortais sem identificação no Brasil, diz documento do CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos) de setembro de 2021.

À época, o órgão citou os 26 mil casos e pediu a "imediata adoção de providências para identificação de restos mortais por seus respectivos Institutos Médico Legais".

O número considera restos mortais descobertos em quaisquer circunstâncias, seja em valas clandestinas ou a céu aberto, fruto de crime ou não. É ainda possível que uma mesma vítima tenha mais de um resto mortal armazenado para análise.

Não se sabe qual é o ano de início da contagem desses 26 mil casos. Cada estado tem uma data de início de levantamento diferente e não informada ao comitê.

Além disso, o número engloba apenas casos em que foram colhidas amostras de DNA ou separados fragmentos do corpo antes do enterro. Há ainda um número não sabido de cadáveres que foram sepultados como desconhecidos no Brasil, sem coleta prévia de material para passar pelo exame genético. Nesses casos, seria preciso obter autorização legal para fazer a exumação.

Portanto, esses 26 mil restos mortais são apenas a parte conhecida de um volume muito maior de pessoas que morreram e não foram identificadas no Brasil. Até hoje, não existe uma determinação nacional que obrigue a coleta de DNA de cadáveres desconhecidos antes do sepultamento. Há somente normas estaduais. Em São Paulo, por exemplo, só entrou em vigor em 2016.

26 mil restos mortais não identificados é um diagnóstico gravíssimo. Nós estamos acumulando essas não identificações há anos, sem um esforço efetivo para resolver o problema. Eu fico imaginando a dor das famílias de desaparecidos de ouvir esse número."

Promotora Eliana Vendramini, que coordena o Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecido) do MP-SP (Ministério Público de São Paulo)

"Precisamos reduzir o passivo dos restos mortais que estão não identificados nos IMLs. [Precisamos] fortalecer a nossa atividade de perícia no país, com ferramentas tecnológicas, para poder otimizar essa redução do passivo", afirmou o secretário nacional de Segurança Pública, Carlos Renato Paim, em webinário sobre o tema, no último dia 17 de fevereiro.

SEM REGISTRO

Os 26 mil restos mortais incluem tanto casos que ainda não passaram por análise genética como aqueles que já foram incluídos na RIBPG (Rede Integrada de Bancos de Perfis Genético), um banco de dados com informações de DNA utilizado para esclarecer crimes e identificar pessoas desaparecidas no país, ligado ao Ministério da Justiça e às Secretarias de Segurança Pública estaduais.

De cada dez casos, oito estão fora da rede. No total, quase 21 mil restos mortais. Dessa forma, não têm qualquer chance de identificação no momento. Já passaram por outras tentativas de reconhecimento, malsucedidas, só restando como alternativa o exame de DNA.

"O fato de o Brasil não ter, até hoje, um projeto centralizado de identificação por DNA [de restos mortais] para cruzar com os dados de desaparecidos é um problema de ausência de política pública", afirma Graham Willis, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Universidade de Cambridge.

O número de casos incluídos na RIBPG é público. Já a quantidade de restos mortais que cada unidade da federação ainda tem por incluir não foi informada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que recebeu esses dados do Comitê Gestor da Política Nacional de Buscas de Pessoas Desaparecidas.

Mas alguns estados compartilharam as informações com o CNDH. Entre eles, São Paulo, que tem 7.314 casos pendentes de processamento, o maior número do país — por outro lado, o estado tem só 354 casos cadastrados no banco de DNA. Já o Amazonas tem 1.617 restos mortais aguardando análise — e 576 já processados.

Pela Lei de Acesso à Informação, o UOL questionou todas as unidades da federação sobre o total de restos mortais ainda não incluídos no banco de DNA. Até o fim de março, só dez responderam. Na Bahia, são 1.462 casos. Em Minas, 1.100. No Rio, 933.

Arte/UOL Arte/UOL

SP: SEIS ANOS PARA ANALISAR TUDO

Após ser pressionado pelo CNDH a processar as amostras antigas, São Paulo respondeu com um relato das dificuldades que enfrenta. Segundo o estado, existe "atualmente uma perita dedicada ao 'Projeto Desaparecidos', estando ela com todas as atribuições".

"Cada perito do IC (Instituto de Criminalística) consegue analisar por ano, no máximo, mil amostras de sangue ou cartões FTA (que armazenam DNA colhido por meio de sangue e saliva de cadáveres). Quando se trata de amostras ósseas ou dentárias, o número cai para 350", continua a resposta enviada por São Paulo.

Dessa forma, com apenas uma perita dedicada à área de desaparecidos, a estimativa é que o IC levaria seis anos para processar todos os itens não identificados do acervo paulista.

"Para que houvesse maior celeridade, seria necessário o aumento do quadro de peritos dedicados a esta atividade", explicam representantes do órgão no texto. Dados da Polícia Técnico Científica de São Paulo mostram que 15% dos cargos de perito criminal estão vagos.

O IC calculava em cerca de R$ 548 mil o custo para fazer o processamento de DNA apenas das amostras de sangue e de saliva, já que só os reagentes usados para cada caso custavam R$ 100. Já a análise genética de ossos e dentes custaria mais R$ 400 mil.

São Paulo não é o único a enfrentar dificuldades. No Amazonas, todos os equipamentos do Laboratório de Genética Forense do IML foram doados pelo governo federal. Já em Rondônia, faltam médicos legistas e odontolegistas.

A Paraíba pretende zerar sua lista de 479 itens até o fim de 2023, ao custo de R$ 180 mil. O valor é aproximado, já que muitos insumos são importados e variam com o câmbio. O Rio Grande do Sul planeja identificar 82 restos mortais até agosto. O Rio de Janeiro, 250 casos até dezembro.

Goiás pretende zerar sua lista de cerca de 450 itens não identificados até junho de 2022, por R$ 40 mil. O estado é o único identificado pela reportagem com mais restos mortais na RIBPG (592) do que fora. Segundo a Superintendência de Polícia Técnico-Científica de Goiás, a identificação é prioridade no estado e tem ajudado na solução de crimes.

IDENTIFICAÇÃO DE DESAPARECIDOS

A inclusão dos restos mortais no banco de DNA é uma esperança para famílias de pessoas desaparecidas. "É o início de um trabalho, mas vai ser feito. Precisa ser feito", diz a promotora Vendramini. Por outro lado, não há nenhuma estratégia para obter amostras de DNA de cadáveres que já foram sepultados sem coleta anterior.

Uma vez que as informações genéticas forem processadas e havendo identificação, as famílias poderão alterar a certidão de óbito para constar o nome da vítima. Também poderão receber informações sobre qual foi o destino dado aos restos mortais — se ainda estão armazenados nos IMLs, se foram para um ossário, se estão sepultados em cemitério.

No Brasil, as medidas de combate ao desaparecimento ainda são tímidas. Não é possível, por exemplo, acessar na internet um cadastro com nomes e fotos das pessoas que estão desaparecidas. O aplicativo do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública disponibiliza uma listagem precária, que exibe apenas 50 nomes por busca, sem foto.

Já o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos, criado pelos Ministérios Públicos em 2017, conta com 83 mil nomes atualmente, mas os casos não estão disponíveis para consulta pública.

Uma lei de 2019 criou o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, que ainda não foi implantado. "A expectativa é que no segundo semestre de 2022 esteja disponível a primeira versão funcional do sistema", informou o Ministério da Justiça.

Outra lacuna que precisa ser resolvida é o processamento de amostras genéticas das famílias de desaparecidos, que também são inseridas no banco de DNA. É uma etapa fundamental, já que a identificação genética ocorre quando há uma coincidência entre o resto mortal e uma amostra de referência, que pode ser tanto da vítima como de sua família.

O número é pequeno em relação ao total de cidadãos que sumiram. Em março, havia na rede apenas 6.087 casos.

Há esforços para melhorar a situação. O Comitê Gestor que levantou o número de 26 mil restos mortais sem identificação foi criado no âmbito da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, instituída em 2019 e focada na resolução e prevenção dos desaparecimentos.

Em 2021, o Ministério da Justiça organizou uma campanha para coletar material genético de familiares de desaparecidos e conseguiu mais de 2.000 amostras. Como resultado, 42 famílias localizaram os restos mortais de parentes desaparecidos.

Em um dos casos, uma mulher de Brasília encontrou o corpo do filho desaparecido dez anos antes. O homem tinha 30 anos quando desapareceu de uma clínica de recuperação em Santo Antônio do Descoberto (GO). Em novembro de 2021, teve os restos mortais identificados após sua mãe fornecer inclusive o cordão umbilical para análise genética.

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