Ermitões urbanos

O perfil de uma geração que usa a tecnologia como escape para se isolar da sociedade

Ele trocou a noite pelo dia. Ia dormir ao amanhecer. Acordava às três da tarde. A janela seguia fechada. Assim evitava os familiares e a escola. A luz do sol nunca refletia na tela do computador. P., 15 anos, chegou a jogar 45 horas sem parar. A comida era deixada pela mãe numa bandeja na porta do quarto. Suas excreções corporais paravam em fraldas e lenços umedecidos que eram arremessados pela janela. Tudo para não deixar na mão seus companheiros no game Counter Strike.

R., 13 anos, colocou as duas pernas para fora da janela do oitavo andar. O pai o agarrou para evitar que ele se jogasse. Um minuto antes, o pai tinha jogado o monitor de R. contra a parede, irritado pelo filho ficar no game o dia todo.

A., 18 anos, sofreu bullying na escola e na faculdade. A família era instável. E ele escolheu ficar em seu cativeiro all-inclusive. Lá, ele se vê respeitado pelos companheiros de jogos online. “Eu me sinto bem. Sinto que sou bom.”

A vida de S., 19 anos, já estava definida pela família: iria herdar a profissão e a empresa. Além disso, teria de cuidar dos pais já idosos. Mas o jovem, primogênito de uma família de origem japonesa de São Paulo, preferiu se trancar no quarto e largar a faculdade. “Que futuro eu estou vendo? Nenhum.” Diante de uma existência programada e sem graça, melhor deixar ela passar.

Os eremitas urbanos foram identificados pela primeira vez no Japão na década de 1990. Acreditou-se, em princípio, que era um fenômeno local. Coisa de japonês. Mas os isolados se multiplicaram pelo mundo. Coréia do Sul, China, Austrália, Bangladesh, Irã, Omã, toda a Europa, Argentina e Brasil (como mostram os casos relatados acima).

No Japão, virou um problema social – segundo relatório de 2016 do ministério de Saúde, Trabalho e Bem-Estar de lá, são mais de 541 mil jovens de classe média e alta formação educacional vivendo em autodetenção. Eles têm entre 15 e 39 anos de idade. Já nos EUA, as consequências são políticas: nerds isolados nos porões das casas paternas inundaram com mensagens de ultradireita a campanha presidencial de 2016 e comemoraram a vitória de Donald Trump como se fosse a deles próprios.

No Brasil, há institutos em São Paulo, Rio e Porto Alegre que tratam esses casos. “As máquinas ficaram espertas, com os smartphones e as smart TVs, mas as pessoas não estão acompanhando. Os cérebros humanos não se alavancaram tanto quanto a tecnologia”, afirma o psicólogo Cristiano Nabuco, que faz parte do núcleo de dependência de internet presente no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, que já atendeu mais de 200 casos de dependência tecnológica desde 2011.

Não dá para culpar os games ou a internet. A tecnologia é só um escape, uma realidade paralela onde essas pessoas se sentem aceitas, respeitadas e valorizadas. Esses náufragos de seus próprios quartos são o resultado de uma combinação de fatores sociais e psicológicos. Cenário econômico com estagnação econômica, alto desemprego entre jovens e hipercompetitividade educacional e profissional contribui. Ambientes familiares que misturam pais ausentes, atarefados e permissivos incentivam. Os confortos modernos, com comidas e conexões rápidas, facilitam. Distúrbios psicológicos, como fobia social, depressão e ansiedade, podem servir de gatilho.

Diante da falta de perspectivas, esse jovem vira simultaneamente o carcereiro e o prisioneiro de si mesmo. Ele se tranca em uma eterna adolescência. Um relato de um ex-isolado, recém-empregado, apareceu no fórum do UOL Jogos: “Passei tanto tempo [dois anos] construindo uma personalidade virtual que agora acho desmotivante ter que viver uma vida real limitada.” Para a psicóloga Dora Goés, também do núcleo do HC, o retorno para a realidade é muito difícil. “Nunca se deve projetar o ideal de ego em 3D, em um avatar. Esses jovens dão todas as pistas que estão pedindo para pais conterem seus impulsos. Mas os pais acabam desenvolvendo uma codependência, superprotegendo os filhos. A família se adapta ao desadaptado.”

Eles são muito arredios. Muitos não falam nem com os pais e irmãos. Imagina então com psicológos ou jornalistas. Em alguns tratamentos, o contato inicial é online. Outras vezes, os pais prometem equipamentos novos para convencer os filhos a irem à terapia. “São como animais feridos. No consultório, tem que haver uma tática de aproximação. Eu elogio os games, crio uma identidade e uma confiabilidade com ele. Não adianta repetir o que a mãe fala: `Larga essa porcaria. Olha o que você está fazendo da sua vida´. O isolado vai ficar ainda mais hostil”, conta Nabuco.

O estereótipo do ermitão é um velho barbudo escondido em bosques ou grutas. Alguém que deixou a vida em sociedade atrás de experiências místicas, comendo folhas e raízes. Já o eremita atual vive um inferno consentido no meio das grandes cidades mantido com bebidas em embalagens longa vida e comida industrializada. Sua solidão não é nada espiritual ou bucólica: são dias entre caixas, sacolas, fios e telas. A própria pessoa vira um resíduo, tão descartável quanto tudo naquele mundo acolchoado e high tech.

“Todos os tipos de emoções negativas estão dentro de mim. A raiva da sociedade e dos meus pais, tristeza sobre minha condição, medo da rua e do futuro. Inveja de quem leva uma vida normal.” Assim Hide, um recluso japonês, descreveu o seu ócio atormentado. Além da dificuldade de comunicação após meses ou anos de enclausuramento, eles não conseguem falar nem mesmo deles próprios. É o que se chama transtorno da autorrepresentação. Eles não percebem quem são, afinal, não aconteceu o acúmulo de experiências que alimenta a memória e a identidade.

Não há um diagnóstico ou tratamento amplamente aceitos para o quadro, nem há o consenso se é uma síndrome ou um fenômeno associado a outros distúrbios. Para  ansiosos e deprimidos, é dado medicamento. Há terapia individual ou familiar (principalmente para adolescentes). No Japão, a ONG New Start criou um alojamento na cidade de Chiba para juntar os solitários e promover trabalhos comunitários. Mulheres são contratadas para tirá-los dos quartos, mas a reinserção pode durar até três anos. Os responsáveis falam que de 30 a 50% se reabilitam.

O isolamento acontece aos poucos, até ficar definitivo, até o quarto virar uma trincheira. Atrás da porta fechada, a única ação acontece na tela. E os games se sucedem: Counter Strike, World of Warcraft, League of Legends, Call of Duty. “A cada lançamento de sucesso há um novo descontrole dos impulsos desses jovens. Com oito minutos do novo jogo já é produzida a dopamina [neurotransmissor associado, entre outras coisas, a sensação de prazer]. Depois, o garoto fica horas atrás dessa mesma emoção. E cada vez ela demora mais para chegar”, relata Anna Lucia King, psicóloga do Instituto Delete, ligado a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

A experiência clínica aponta que a maioria das famílias é de classe média, afinal, é preciso estrutura para bancar a zona de conforto de quem largou a escola, o emprego e a vida social. O atingido é em sua grande maioria homem (três em cada quatro isolados), levando em conta que ainda hoje eles recebem mais pressão pelo ideal de sucesso profissional cultuado pela civilização moderna. Esse jovem prefere desembarcar desse roteiro previsível que a vida adulta lhe reserva.

Proporcionada em parte pela crise econômica mundial dos últimos anos e em parte pelos avanços tecnológicos, essa juventude indoor se espalhou pelo globo. Em 2008, foi relatado o primeiro caso de ermitão digital nos EUA, em estudo da Universidade de Michigan (um homem de 30 anos que encomendava delivery e urinava e defecava nas mesmas embalagens de comida). Em 2012, países como França, Itália e Espanha já contam com hospitais que monitoram a população isolada. No Brasil, os relatos surgem também nos últimos cinco anos. “E aumenta cada vez mais. Um dos fatores que estimulam é a atual economia fraca do país”, afirma Sylvia van Enck, também do núcleo do HC paulistano.

O psicólogo Tamaki Saito criou em 1998 o termo hikikomori (“isolados em casa”) ao publicar em livro os casos que tratou na área metropolitana de Tóquio. Em princípio, o próprio ministério japonês da Saúde, Trabalho e Bem-Estar apontou que os isolados não tinham distúrbios mentais (ainda hoje as doenças psíquicas são um tabu no arquipélago). Uns diziam que o problema era a recessão que abateu o Japão a partir de 1995. Outros, como a psiquiatra Hisako Watanabe, apontavam o atraso que representa a mentalidade kamikaze na educação e no trabalho do país (filhos se matando de estudar, pais se matando de trabalhar, e pouca convivência entre eles e em sociedade).

Para Saito, há um jogo familiar de pressão, culpa e perdão que desemboca nesse parasitismo doméstico. Por um lado, está o conceito de sekentei, a reputação pessoal diante da comunidade, tendo o pai como defensor desse valor. Por outro, existe a proteção materna, sintetizada no termo amae, que quer manter o filho crescido na casa dos pais toda a vida. A exigência social e a frouxidão familiar, com o pai ocupando um papel coadjuvante dentro de casa, segundo Saito, é o cenário propício para a multiplicação dos hikikomoris.

Seguindo essa lógica, o modelo japonês poderia ser classificado como uma sociedade patológica. Então como explicar quando o problema passou a ser observado em outros países, como França e Itália (com 80 mil e 30 mil afetados respectivamente, segundo estimativas locais)? A doença seria da própria sociedade atual, e se espalhando pelas metrópoles em um ritmo de epidemia.

A expressão “porões da política” ganhou um novo significado na última campanha presidencial dos EUA. Na típica casa de subúrbio norte-americana, o porão é o território cheio de tranqueiras e desabitado, ideal para seus filhos montarem as “battle stations”. Essas estações não servem só para tiros e explosões digitais dos games. A principal batalha em 2016 foi travada com memes de ultradireita invadindo as redes sociais.

Agrupados em fóruns como 4chan e Reddit, esses nerds escolheram como adversários os SJWs, os “social justice warriors” (guerreiros da justiça social), como eles chamam os ativistas dos direitos humanos, das minorias e do politicamente correto. Sem emprego, carreira, horário, gasto, obrigação ou namorada, esses adultescentes trollaram a campanha da democrata Hillary Clinton com mensagens racistas, xenófobas e machistas. Tão outsiders em eleições como Donald Trump, eles se identificaram com o desbocado e encrenqueiro candidato republicano e sua alt-right (direita alternativa). E comemoraram quando o meme humano chegou à Casa Branca.

Antes, eles já haviam feito campanhas (principalmente virtuais) contra empresas, grupos políticos, universidades e igrejas, usando ciberataques e flash mobs. Afastados da realidade das ruas, eles preferem adotar uma postura sarcástica, inconsequente e extremada em relação à sociedade atual.

Esse novo tipo de humano, que adota o autoconfinamento físico e a comunicação só por via digital, ainda é visto como uma anomalia social, mas as condições em que ele surgiu continuam e são uma tendência de longa duração (aumento da tecnologia, do conforto residencial, da concorrência profissional e da automação da vida). Cenários como esses já foram relatados por escritores como Issac Asimov e Michel Houllebecq. Os homens siderais do livro “O Sol Desvelado” (1957), do autor norte-americano de origem russa, e os neo-humanos de “A Possibilidade de uma Ilha” (2005), do autor francês, são personagens isolados e que só têm contato com os outros por meio de telas. Será que a ficção científica será premonitória outra vez?

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