GRAFITEIROS DO SENHOR

Pichadores evangélicos usam o spray e a Bíblia para falar de Deus nos muros de Salvador

Gilson Jorge (texto) e Rafael Martins (fotos) Colaboração para o TAB, de Salvador

Da laje da casa de Antonio Carlos Santana de Jesus, 35, é possível observar as ruas, becos e vielas de São Caetano e Liberdade. Dá para ver, inclusive, as paredes coloridas da sede do bloco Ilê Aiyê. A poucos metros dali, Cala, como é conhecido, desenhou uma mensagem com o Salmo 125: "Os que confiam no Senhor serão como o Monte de Sião, que não se abala, mas permanece". O dono consentiu.

Cala vive na Fazenda Grande do Retiro. Bairro de caminhos duros, é lugar onde forasteiro não deve transitar sem a companhia de um guia local, sob o risco de ser assaltado. Cala gosta de ser essa pessoa que informa aos visitantes por onde andar.

Dos perigos das ruas soteropolitanas ele entende. Desde a adolescência picha muro no centro de Salvador. Quando está com uma lata de tinta spray nas mãos, seu maior inimigo é a polícia ou os vigilantes. Já apanhou quando, junto de amigos, pichava o alto de um prédio comercial.

Mas, desde que se converteu, há 11 anos, o inimigo é apenas um. Satanás.

Cala, que largou a escola depois de concluir o 2º ano do ensino médio, nunca foi muito de estudar. Com o batismo na Assembleia de Deus, começou a encher de livros religiosos a pequena sala de casa. No imóvel de dois quartos, uma mureta baixa faz a divisão entre a cozinha e a sala.

"Entendi que era necessário estudar as Sagradas Escrituras para melhor entendê-las", diz ele. São 251 exemplares de obras sobre teologia, biografias, poesia e história, tudo relacionado à fé, além de 35 Bíblias de distintas edições e traduções. Embora não entenda outro idioma, faz questão de ter em casa um original do Novo Testamento em hebraico, outro em grego, e um Antigo Testamento em aramaico. Na hora da leitura, recorre à tradução online.

Na letra da lei, pichar é andar errado, flertar com o perigo. A atividade pode ser enquadrada na lei de crimes ambientais. Para grafiteiros e pichadores evangélicos, entretanto, escrever nos muros é válido e uma forma de rejuvenescer a pregação da palavra de Deus. É usar a cultura de rua para passar a mensagem de fé, sem abandonar a linguagem coloquial que aprenderam no mundo. Cala conta que, certa vez, o pastor da igreja o viu pichando e não falou nada.

Casado, pai de uma filha de oito anos, ele encara a pichação como uma arte com propósito. Entre Salvador, o interior da Bahia e Sergipe, Cala conhece nove pichadores que se declaram evangélicos, embora não haja consenso sobre quem de fato segue os preceitos bíblicos.

Nem todos os grafiteiros de fora da igreja permaneceram. Cala perdeu companheiros que se envolveram com o crime e acabaram mortos pela polícia ou por facções do tráfico de drogas.

Esta é uma violência que se oculta atrás da aparente alegria de viver na periferia de Salvador. Na Fazenda Grande do Retiro, onde Cala mora, tem gente que passa o domingo dançando no meio da rua, ao som do pagode que sai em volume máximo dos amplificadores. Mas também tem gente que só sai de casa para o trabalho e evita circular nas ruas, com medo da violência.

Antes de entrar para a igreja, Cala vivenciou a rixa entre pichadores. Às vezes saía encrenca entre grupos rivais conhecidos como gangues, por causa de uma frase colocada por cima de uma pichação preexistente. Até então, não era preciso escrever frases inteligíveis. O mais importante era que se soubesse quem escreveu e de que coletivo fazia parte.

O primeiro desenho na rua de Cala veio em 1999, no próprio bairro, depois de observar o irmão mais velho e o primo fazerem pichos pela cidade, o que despertou nele a curiosidade. À época, os dois integravam a gangue Bactérias de Parede, conhecida pela sigla BP.

Aos 14 anos, ao sair para a rua Mello Moraes, beco onde sempre morou, viu uma pichação que lhe interessou e começou a reproduzir no caderno os traços do desenho que viu na rua. Estava pronto para pegar o spray. Ao ver o desenho feito por ele, o irmão sentenciou que ele estava pronto para ser um BP.

Em uma cidade como Salvador, onde os cultos afro-brasileiros estão intimamente ligados à cultura de rua, o desafio de conciliar fé, respeito e companheirismo entre os grafiteiros é ainda maior. Cala já discutiu com uma irmã em Cristo que tinha decidido fazer pichações com mensagens pejorativas sobre imagens de orixás.

Frequentador de uma igreja evangélica no município de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, o grafiteiro Sílvio Ribeiro dos Santos, 39, conhecido como Tivo, afirma que não teria problema em desenhar um orixá por encomenda. Ele conversou com TAB enquanto dava retoques no mural da Rua Gilvan Fernandes, uma via estreita que dá acesso ao bairro de Portão.

Tivo, que já foi pichador, se considera uma pessoa aberta. Tem amigos "de todos os segmentos", como diz. "Tenho um sobrinho homossexual que diz que a Bíblia o condena. Eu respondo com uma pergunta: quem vai lhe provar isso? É o homem falho que vai te condenar?".

Assim como o apóstolo Paulo, que mudou o nome original (Saulo) após a conversão, o nome pelo qual os grafiteiros evangélicos são conhecidos também é importante. Sílvio, no início da carreira, assinava como Bonde. Mas, para não ser confundido com uma facção criminosa, passou a usar Tivo, o lúdico apelido da época de infância.

Seu amigo Emerson da Mota Soares, 36, era o Buda, referência ao cabelo raspado que usava quando mais jovem em homenagem ao avô budista. Influência forte em sua infância, o homem abriu mão da fartura para levar uma vida austera, no centro de Salvador. Após a conversão, Emerson passou a se anunciar nos muros como EMC.

Emerson estudou no Colégio Central, escola pública que viveu uma efervescência cultural nos anos 1960 — teve entre os seus alunos os artistas Glauber Rocha, Raul Seixas, João Ubaldo Ribeiro e o ex-governador Waldir Pires. Nas décadas de 1990 e 2000, o colégio tornou-se um dos epicentros da cultura hip-hop na cidade, com grandes murais de grafite, pichações por todos os lados e os alunos praticando o traço com desenhos de caneta nos bancos do transporte público.

"O centro da cidade era o foco da pichação, mas eu via que aquilo ali não prestava. Comecei a desenhar e esboçar uma arte. Fui para o grafite", conta ele.

EMC afirma que conquistou o respeito dos parentes e até os levava para acompanhar sua performance em eventos públicos. Não era desordem. Mais difícil foi convencer o patriarca, um policial militar que via aquilo como vandalismo.

"A arte de rua já está indo até para as empresas, para as casas", destaca o grafiteiro, que obtém alguma renda trabalhando como artista.

Junto com o amigo Tivo, EMC fez há três anos um mural na entrada da rua Gilvan Fernandes, no bairro de Portão, em Lauro de Freitas. Ao lado do desenho, aparece a frase "Agindo Deus, quem impedirá?" (Isaías 43, versículo 13).

Quando se encontra nas quebradas com jovens cristãos que fazem pichação, Emerson dá uma dica. "Não é só escutando a Palavra de qualquer pessoa que você vai descobrir o que Deus quer falar com você. Tem que analisar nas Escrituras."

Além de ser cristão, EMC trabalha como vigilante de uma igreja evangélica em Lauro de Freitas. Curiosamente, parte de suas tarefas é evitar que a rapaziada faça pichações e grafites nas paredes do templo. Aliás, em fevereiro, Emerson flagrou um pichador que o conhecia como EMC no momento em que ele começava a riscar o portão da igreja.

"Conversei com ele, e ele parou. Procuro não ser agressivo. Eu conheço a maioria dos grafiteiros e pichadores de Salvador. Ali minha atividade é cuidar do patrimônio, e eu tenho que ser profissional."

Assim como a escolha de usar ou não drogas e desenhar ou não orixás, a decisão de ser grafiteiro evangélico baseia-se num verso da Bíblia, cuja aplicação depende da interpretação de cada um. "Todas as coisas me são lícitas, Mas nem todas convêm (1º Aos Coríntios, capítulo 6, verso 12). Cala, por exemplo, sentiu-se tacitamente autorizado depois que o pastor o viu fazendo um grafite e não lhe repreendeu. Segue seu caminho.

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