EM NOME DE NZAMBE

Pastora brasileira acolhe imigrantes africanos em cultos na periferia de São Paulo

Thiago Borges (texto e fotos) Periferia em Movimento, para o TAB, de São Paulo

"Senhor, envie o Espírito Santo para agir na Polícia Federal. Age, Senhor, sobre os policiais que pegaram os documentos da nossa irmã." Com a mão sobre a cabeça de Chancy Dida Outoleya, 27, a pastora Ivone Santana Fernandes, 48, faz uma oração.

Chancy, que é da República do Congo, teve o passaporte apreendido em 1º de dezembro, quando tentava embarcar para a Alemanha para visitar a irmã. A PF alegou que o visto provisório que ela apresentava era falso; depois, que não era ela a pessoa na foto do documento. Ao ser impedida de viajar, amargou um prejuízo de R$ 11 mil.

Para complicar, ela ainda teve o celular furtado recentemente. Agora, só intervenção divina na causa. "A importância de Deus na minha vida é muito grande. Ele me abençoou muito", diz ela.

Orações pragmáticas são bem comuns na Igreja Apostólica Brasil África, fundada em 2019 por Ivone no Parque Regina, periferia da zona sul de São Paulo. Atualmente, a congregação funciona na casa onde moram Paulo Ataíde, 32, e suas duas filhas. Paulo é evangelista da igreja e braço direito da pastora. Em sua ausência, assume a função de direcionar o grupo.

A pequena residência tem um quarto, cozinha e sala de estar. É nela que, nas noites de quinta-feira, um grupo de 10 a 15 pessoas se reúne para orar e louvar ao Deus cristão. Muitos não conseguem participar semanalmente por questões de trabalho ou saúde. Quase todos são negros e cerca de metade é imigrante africano.

Dida deixou sua terra natal, o Congo-Brazzaville (outra denominação do país usada para se diferenciar da vizinha República Democrática do Congo), e tentou entrar nos Estados Unidos. Como teve o visto negado, rumou para o Brasil em 2018, onde o marido conseguiu emprego como operador de máquinas.

Formada em jornalismo, hoje trabalha como cabeleireira, função que aprendeu na Galeria do Reggae, um prédio comercial na região da República, no centro de São Paulo, que concentra salões e pontos comerciais de imigrantes.

Dida é funcionária de Laurette Abeley, 33, que saiu há 10 anos de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo. Foi por meio dela que Dida soube da igreja da pastora Ivone. Naturalizada brasileira, Laurette mora com os filhos pequenos na Cohab José Bonifácio, na zona leste da capital. O marido, também congolês, migrou para a Austrália. Assim como Dida, Laurette é evangélica desde criança. Após chegar ao Brasil, frequentou igrejas formadas exclusivamente por africanos até que, em 2019, conheceu a pastora Ivone. "O Espírito Santo me convenceu a participar daqui", conta.

Todas as quintas, Laurette atravessa a cidade de ônibus até a estação Itaquera e segue pela Linha 1-Vermelha para o trabalho na República. À noite, embarca novamente no metrô até descer na estação Vila das Belezas, da Linha 5-Lilás. A maioria dos fiéis africanos mora na zona leste da cidade e viaja mais de 40 quilômetros para assistir aos cultos. Para amenizar o problema, a pastora Ivone procura um salão com capacidade para 100 pessoas que fique perto do metrô, mas o aluguel gira em torno de R$ 2.000 por mês, o que inviabiliza a mudança de local.

Os frequentadores que chegam à estação precisam caminhar 20 minutos, incluindo vencer uma ladeira íngreme, ou pegar um carro de aplicativo para chegar às reuniões. Ao passar pelo portão, são mais de 20 degraus até a casa de Paulo, no segundo andar do imóvel. Nos dois dias em que a Periferia em Movimento acompanhou os cultos da Igreja Brasil África, os fiéis africanos chegaram atrasados do trabalho, o que não os impediu de serem acolhidos com refeições e orações.

Em um desses dias, Laurette estava cansada. Tossia e sentia dores pelo corpo. Foi difícil subir a escadaria. Na oração, a pastora Ivone disse que Deus mostrava "buracos no pulmão" dela e que ela deveria se tratar. A pastora também teve outra revelação divina: sentiu que o "espírito da covid-19" rondava as mulheres que trabalhavam na Galeria do Reggae, querendo fazer mal a elas. Por isso, era importante que se vacinassem. Foi a deixa para Laurette e outra frequentadora, Yvonne Mwamba, se manifestarem. Ambas não tinham tomado sequer a primeira dose. "Pois Deus está mandando vocês se vacinarem", orientou a pastora.

Yvonne chegou à Igreja Brasil África em 2020, também por meio de Laurette. Formada em contabilidade, há 7 anos ela saiu de Kinshasa para continuar os estudos no Brasil, mas não conseguiu prosseguir. Aqui, aprendeu a trançar cabelos. Como a situação financeira não tem sido fácil, a pastora Ivone também ora por dias melhores: "Derrama o cliente sobre a sua filha, Senhor!"

Yvonne fez jejum entre meia-noite e 18h, durante sete dias, para alcançar essa vitória. Na pequena sala, de joelhos dobrados no chão, ela e outros fiéis fazem suas preces. Os pedidos feitos por brasileiros se misturam às orações em lingala, idioma de origem bantu falado na região do rio Congo.

"Nzambe", palavra utilizada para designar Deus, é repetida constantemente. É essa língua que permite às congolesas compreenderem a pregação da pastora. Originárias de antigas colônias da França, elas não entendem bem o português. Quem faz as vezes de tradutor é o angolano Victor Kiala José, 34, que, além de lingala, fala português, já que seu território foi ocupado por Portugal.

Um dos fiéis mais devotos da Igreja Brasil África, Kiala José testemunhou em um dos cultos acompanhados pela reportagem. No louvor, contou ter sido aprovado no período de experiência no trabalho como recepcionista em uma loja no Brás, região central da capital. Até se fixar em um emprego no Brasil, foram cerca de quatro anos desempregado.

Estudante de relações internacionais em Luanda, capital de Angola, Kiala José vislumbrou em 2016 a oportunidade de continuar os estudos e trabalhar aqui. Ele já tinha dois irmãos vivendo na Holanda e um na Inglaterra. Mas migrar não garantiu estabilidade e a família em Angola precisou mandar-lhe dinheiro. Ele só não voltou para o país de origem porque "Deus revelou que aqui era seu lugar". A promessa divina começou a se cumprir em 2019, diz, quando conheceu a pastora Ivone.

Em Angola, era frequentador da Assembleia de Deus, mas, ao chegar a São Paulo, chegou a participar de cultos em outras igrejas até encontrar lugar na Brasil África. A principal diferença, diz, é a flexibilidade na hierarquia, com possibilidade de maior participação dos fiéis.

Batizado pela pastora Ivone nas águas da represa Guarapiranga, em 2020, ele pede em suas orações pela naturalização. Com visto provisório que precisa ser renovado de ano em ano, ele aguarda a avaliação definitiva do Conare (Comitê Nacional de Refugiados).

Assim como as orações, as revelações de pastora Ivone são muito esperadas por fiéis da igreja. Ela explica que é usada desde a adolescência como "ferramenta do Espírito Santo" para alertar sobre os riscos que as pessoas correm, decisões que devem tomar e coisas boas ou ruins que podem acontecer a elas.

Sua conversão ocorreu após uma série de fatalidades. Segunda mais nova de uma família de oito irmãos, ela morava no Jardim Elisa Maria, na zona norte de São Paulo, até o pai ser assassinado. Como a mãe era alcoólatra, o conselho tutelar separou a família. Alguns irmãos foram morar com parentes em outro estado, enquanto ela e outras irmãs foram para um colégio interno.

Aos 13 anos, Ivone perdeu o braço direito em um acidente com a máquina de lavar industrial da escola. Compadecida, uma tia evangélica do Jardim Catanduva, na zona sul, levou as meninas para casa. Nessa época, Ivone passou a frequentar a Assembleia de Deus, onde foi batizada e diz ter sentido um "chamado" dos céus. Em pouco tempo, virou missionária.

Eram os anos 1990, quando as periferias de São Paulo viviam uma epidemia de violência, e nessa época ela conta ter recebido sua primeira revelação. "Fui orar para uma moça que tinha câncer e ela se curou", recorda-se. A história se espalhou e Ivone passou a ser requisitada para pregar em diversos lugares, das periferias de São Paulo até Vinhedo (SP), Uberlândia (MG), Belo Horizonte (MG) e cidades do interior da Bahia e de Santa Catarina.

Depois de conhecer o atual marido em uma das visitas, Ivone se casou, teve 3 filhos e parou com as viagens. Ainda assim, muita gente procurava a pastora em sua própria casa. Por isso, Ivone transformou a residência em um espaço de oração. Na época, sem trabalho fixo, ela dependia de doações. Hoje, por ser uma pessoa com deficiência, recebe do governo o Benefício de Prestação Continuada.

Apesar de há muito tempo ter a função de pregar, orar e aconselhar indivíduos - o que igrejas protestantes é chamado de ministério --, para Ivone, a abertura de um templo físico era necessária para concentrar seu público. Isso aconteceu apenas em 2018, com uma unidade da Assembleia de Deus em Taboão da Serra (SP), onde reside até hoje. Porém, após divergências, a pastora e seu grupo se desligaram da igreja. Ivone e seus fiéis, entre eles o evangelista Paulo, iniciaram um processo para abertura de uma nova sede.

Além de jejuns, ceias e retiros, eles participaram em 2019 de uma vigília no Monte da Luz, local de oração muito frequentado por evangélicos em Embu das Artes (SP). Foi lá que Ivone conheceu Guilherme Kiapila, um imigrante angolano que chegou ao Brasil em 2009 e se tornou pastor. Antes de migrar para a França, o pastor conectou Ivone a outros africanos em São Paulo. Em revelação divina, Ivone conta ter sido levada a pregar para imigrantes e fundou a Igreja Apostólica Brasil África.

Na pequena sala de sua casa, o evangelista Paulo muda a sintonia da novela para o YouTube, onde busca louvores para o culto. Enquanto canta, a pastora conversa com fiéis atrasados pelo WhatsApp e busca no Google o trecho da Bíblia para sua pregação.

A igreja não foca em costumes, como separar homens e mulheres, determinar vestes e cortes de cabelo ou pregar que o matrimônio deve durar até a morte. Segundo ela, o comportamento de cada fiel deve ser testemunho de sua fé. Por isso, também se incomoda com parte de quem diz representar os evangélicos, especialmente parlamentares. Ela entende que é importante ocupar espaços políticos, porque isso também é testemunhar a fé, mas que, ao não defender interesses do povo que sofre, esses políticos acabam manchando a atuação de pastores comprometidos com a "obra do Senhor".

Para Paulo, a relação com imigrantes africanos é uma missão que atende a esses preceitos. "A gente, enquanto líder espiritual, tem que lutar para que governo naturalize qualquer imigrante africano porque isso é uma recompensa à escravidão [que ocorreu no Brasil]", defende.

Além dos cultos, a pastora visita fiéis e aconselha mulheres vítimas de violência doméstica. Durante a pandemia, a Igreja Brasil África distribuiu cestas básicas, brinquedos e itens de higiene e limpeza na comunidade, em articulação com associações de moradores e outras entidades religiosas, como um centro espírita e a Sociedade Santos Mártires, vinculada à Igreja Católica.

Durante a apuração desta reportagem, Ivone corria para garantir mais cestas que seriam doadas antes do Natal. Com toda a juventude dedicada à evangelização, ela só retomou os estudos nos últimos anos. Pretende fazer faculdade de serviço social, o que vê como complemento à obra missionária. Ela faz ginástica, uma forma de cuidar do corpo que usa para percorrer ruas e vielas, dar testemunho e pregar. "Ser pastor é servir a Deus, ter sua espiritualidade, mas também viver o presente. Ter sua vida, sair e curtir também é testemunho da obra de Deus."


*A Periferia em Movimento é uma produtora independente de jornalismo de quebrada com sede em São Paulo. Saiba mais: www.periferiaemmovimento.com.br

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