Ninguém solta a mão

A comunidade LGBTQIA+ resiste para manter direitos diante de onda reacionária

Sempre que sai com sua mulher, a historiadora Aline Oliveira, 26, recebe olhares tortos e/ou agressões verbais. Gritaria, julgamentos e discursos morais. No entanto, isso nunca a impediu de desfrutar uma relação de "papel passado" - o casamento com Gabriela ocorreu em uma tarde ensolarada de dezembro último, na Casa 1, em São Paulo, ao lado de outros 39 casais.

Aline confessa que o matrimônio não estava nos planos. A mudança veio em meados de 2018, quando ela viu no site da Câmara Federal a discussão em torno da definição de família e uma consulta pública aberta no site do Senado Federal que questionava se o casamento entre pessoas do mesmo sexo deveria ser vetado ou não.

A campanha eleitoral começou na sequência, com a propaganda política gratuita no rádio e na TV e o furacão de fake news nos grupos de WhatsApp. "A partir disso, os conflitos políticos ficaram maiores, gerando mais debates sobre as questões LGBTs. Fiquei mais preocupada de talvez não conseguir oficializar (o casamento) depois", afirma a historiadora.

O casamento foi celebrado após a vitória de Jair Bolsonaro, que em sua carreira parlamentar chamou a atenção por declarações homofóbicas e preconceituosas em geral. A promoção do capitão reformado a "mito" contribuiu para duas percepções na comunidade LGBT, que já eram compartilhadas por Aline: o aumento da hostilidade contra as minorias e o temor que direitos conquistados em 41 anos de militância no Brasil pudessem ser perdidos.

GERAÇÕES

"Há uma intensificação de um discurso que estimula a violência contra nós", afirma Symmy Larrat, primeira presidente travesti da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), entidade fundada em 1995. "Não é diretamente o Bolsonaro que nos ameaça, mas são as pessoas que o seguem e um conglomerado fundamentalista, que se acham no direito de discriminar nossas vidas", completa a ativista, pra quem o crescimento do medo alimenta a narrativa de que a população LGBT pode ser agredida e assassinada.

Uma pesquisa da organização de mídia Gênero e Número reuniu dados sobre a violência contra LGBTs no contexto eleitoral e pós-eleitoral. Segundo o levantamento, 87% dos entrevistados ficaram sabendo de violências cometidas contra pessoas LGBTs conhecidas ou próximas durante o segundo semestre de 2018. Mais da metade (56%) das travestis, homens e mulheres transexuais afirmaram ter sofrido violência mais de três vezes durante as eleições.

Em números oficiais, ainda não é possível mensurar o tamanho da violência contra pessoas LGBT desde o período eleitoral, pois os dados mais recentes são de junho de 2018, quando um levantamento do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, indicou que 13.190 pessoas LGBT haviam sofrido algum tipo de violência no Brasil desde 2011. Questionado sobre a atualização dos dados, orçamento e programas vigentes voltados para a população LGBT, o Ministério não respondeu até a publicação deste TAB.

ORGULHO HISTÓRICO Da revolta de Stonewall à construção da maior Parada do mundo em São Paulo
Brasil
Mundo
1969
Stonewall: Movimento de reação da comunidade LGBT frente à violência policial acontece em 28 de junho
1970
Kay Tobin Lahusen / The New York Public Library Primeiras edições da Parada LGBT acontecem em Nova York, Los Angeles, Chicago e São Francisco
1972
Suécia é o primeiro país a permitir cirurgia de redesignação sexual e hormonioterapia para pessoas transexuais
1977
AP Harvey Milk (1930-1978) é o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia (EUA)
1978
Reprodução Fundação do grupo Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, primeiro grupo brasileiro que defendia os direitos das pessoas LGBT
Reprodução Lançamento do jornal O Lampião da Esquina
Divulgação/Facebook Ilga Fundação da ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexo) no Reino Unido
1980
Juca Martins/Olhar Digital Primeiro Encontro Brasileiro de Homossexuais (RJ): Grupo participou do movimento do 1° de maio daquele ano com uma comissão nos atos no ABC. Em 13 de junho acontece o primeiro protesto contra prisões de pessoas LGBT (Operação Limpeza) no Teatro Municipal
1981
Reprodução Formação do Grupo de Ação Lésbica-Feminista
1983
Reprodução Eclosão da epidemia de AIDS no Brasil
Reprodução Primeiro protesto de mulheres lésbicas no Ferro's Bar em São Paulo após as mulheres serem expulsas e impedidas de vender o jornal ChanacomChana no local. O episódio ficou conhecido como Stonewall brasileiro
1984
Parlamento Europeu defende direitos das pessoas homossexuais em diretrizes para os países membros do bloco
1985
Conselho Federal de Medicina (CFM) declara que a homossexualidade não é uma patologia
1988
Redemocratização do país: Nova Constituição inclui artigo que proíbe discriminação por sexo e gênero
1989
Keld Navntoft?AFP / Getty Images Dinamarca é o primeiro país a aprovar união estável entre pessoas do mesmo sexo e realiza a primeira cerimônia do tipo no mundo
1990
OMS (Organização Mundial da Saúde) declara que homossexualidade não é patologia
1992
Fundação da ASTRAL - Associação das Travestis e dos Liberados
1995
Primeira tentativa de legalizar união civil entre pessoas do mesmo sexo - PL 1151 de Marta Suplicy
Reprodução 17° Conferência da Associação Internacional de Gays e Lésbicas acontece no Rio de Janeiro e é seguida de uma passeata, considerada a primeira Parada do Brasil
Fundação da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais)
1996
Plano Nacional de Direitos Humanos inclui os direitos dos homossexuais e apoia programas de prevenção à violência contra homossexuais
1997
Primeira Parada GLT de São Paulo
Conselho Federal de Medicina autoriza realização de cirurgia em pessoas transexuais
1999
Conselho Federal de Psicologia aprova a resolução 0199 que veda o tratamento da homossexualidade como patologia (proíbe a "cura gay")
2001
Holanda é o primeiro país a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção
2004
Governo Federal lança o programa Brasil Sem Homofobia para promover políticas públicas para pessoas LGBT
2006
Divulgação Clodovil Hernandes é eleito, foi o primeiro deputado federal abertamente homossexual do Brasil
2008
Reprodução SUS passa a oferecer cirurgia de redesignação sexual para pessoas transexuais
Ricardo Stuckert/PR I Conferência Nacional LGBT acontece para definir políticas públicas para a população
2010
Divulgação Jean Wyllys é eleito e se torna um ativista dentro da Câmara pelos direitos das pessoas LGBT
2011
STF aprova união estável homoafetiva
2013
Conselho Nacional de Justiça aprova resolução que obriga cartórios a realizar casamento entre pessoas do mesmo sexo
2016
Roberto Stuckert Filho/PR Presidente Dilma Rousseff assina decreto que reconhece a identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais e permite uso do nome social no âmbito da administração pública federal
2018
Getty Images/iStockphoto OMS declara que a transexualidade não é patologia
Conselho Federal de Psicologia aprova resolução que veta tratamento da transexualidade como patologia
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autoriza uso do nome social sem necessidade de cirurgia de redesignação sexual
2019
Reprodução Polícia de Nova York pede desculpas por repressão em Stonewall
STF aprova criminalização da LGBTfobia, crime será equiparado ao de racismo
pular

Segundo a antropóloga Regina Facchini, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a postura reacionária frente à conquista de direitos das pessoas LGBT acontece desde pelo menos os anos 1990, quando começa um processo de reconhecimento do direito de cada indivíduo exercer sua orientação sexual enquanto direito humano e da importância de políticas públicas para essa população.

"Essas coisas não nasceram agora, mas estão num momento muito agudo. É resultado de um longo processo político", afirma Facchini. "O fenômeno Bolsonaro e a ascensão da direita acontecem paralelamente. É uma luta de forças políticas, de convenções e formas de olhar para o mundo", completa.

A população LGBT é muito carente de coisas básicas. Estamos lutando por uma legislação que possa impedir as pessoas de nos agredir. Isso não deveria nem ser discussão na sociedade

Maria Eduarda Aguiar, primeira advogada trans a ter o nome social em sua carteira da OAB-RJ e representante da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais)

É LEI, MAS...

Na tentativa de amenizar o problema e criar políticas públicas de proteção, o STF (Supremo Tribunal Federal) aprovou em 13 de junho a criminalização da LGBTfobia. Por 8 votos a 3, os ministros determinaram que práticas homofóbicas e suas variáveis podem ser punidas por meio da Lei de Racismo.

Assim como o direito à união estável aprovado em 2011 pelo STF, a criminalização da homofobia entrou no rol de direitos obtidos por meio de um processo de judicialização das pautas LGBT. Para advogados da causa, há uma fragilidade nas conquistas por meio do poder judiciário, uma vez que as decisões não têm o poder de lei.

"Desde 1978 as primeiras bandeiras do movimento já eram o combate à violência. A discussão da criminalização que está na ordem do dia no STF mostra como o combate à violência é uma pauta permanente", afirma Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Eu me sinto ameaçada quando um presidente diz na posse que vai combater ideologia de gênero, uma coisa que nem existe

Maria Eduarda Aguiar, advogada militante

A judicialização das pautas ocorre, segundo Paulo Iotti, advogado e ativista, por causa do conservadorismo do Congresso Nacional. "Desde 2010 há essa consciência de que, a cada nova eleição, o legislativo fica mais conservador", afirma.

O movimento em si, no entanto, nunca foi além de debates no parlamento, diz Iotti. "Os poderes políticos nunca nos deram muita atenção, nunca ficaram engajados em políticas públicas. Teve o Brasil sem Homofobia, mas pouquíssima coisa saiu do papel", completa. Para ativistas, o direito ao uso do nome social e ao casamento são duas das conquistas mais ameaçadas no momento.

A BUSCA POR DIREITOS Interesse na rede sobre temas ligados à cidadania LGBT bate recorde em 2019
Os números representam o índice de interesse de busca numa escala de ai de 0 a 100, onde 100 representa o interesse máximo de busca

CÉLULAS DE APOIO

Uma das consequências da luta pela permanência de direitos observada pela comunidade é a união das pessoas LGBTs em pequenos grupos ativistas, rodas de conversa e redes de apoio. "O que eu vi foram grupos se formando, independentes de qualquer suporte do estado, com certa autonomia e autogestão, criando possibilidades de cuidado e estratégias políticas autônomas", afirma a psicanalista Joana Waldorf, criadora do projeto Roda(da) Diversidade, um espaço de conversa e discussão em São Paulo sobre vivências da população LGBT.

A Casa 1, onde Aline e Gabriela oficializaram a união em um casamento coletivo, abriu as portas em 2017. A residência serve de moradia para 20 pessoas e, além de organizar atividades culturais, abriga uma clínica social que oferece terapia e consultas médicas para mais de 200. O espaço surgiu como uma típica organização da sociedade civil, algo que sempre engatinhou quando se falava da causa LGBT.

Quando constato que 90% dos meus moradores e moradoras são negros e negras, fica muito gritante a questão do racismo cultural. Quando vejo que as gays afeminadas são na maioria das vezes violentadas e expulsas de casa, dá para perceber muito forte as questões de machismo e sexismo

Iran Giusti, jornalista e organizador da Casa 1

Giusti enxerga hoje sua atuação como uma espécie de dissidência do movimento. "A gente começou há pouco tempo a falar sobre interseccionalidade. A gente não conseguia falar sobre machismo, misoginia dentro da comunidade LGBT, como a gente ia falar sobre pautas de mulheres lésbicas e bissexuais, como a gente ia falar de pautas trans?", questiona ele, abordando a necessidade de outras perspectivas além das narrativas patriarcais.

Para ele, o movimento tem começado a fazer autocríticas e tentado se reposicionar diante de tanta diversidade. "A gente passa a lutar junto com o movimento negro, com o movimento das mulheres. A gente passa a entender que são grupos minorizados em várias frentes e entender que todas essas questões atravessam a questão de orientação afetiva, sexual e de identidade de gênero".

PARA ENTENDER A HOMOFOBIA O Brasil é o país do mundo que mais pesquisa na rede sobre esse preconceito e suas causas
Os números representam o índice de interesse de busca numa escala de ai de 0 a 100, onde 100 representa o interesse máximo de busca

A tendência, dizem os integrantes da comunidade, é que o movimento pise de novo no chão e volte a tomar as ruas. Neste ano, a Parada LGBT de São Paulo, considerada a maior do mundo, deverá retomar um tom mais politizado. O evento, que teve sua primeira edição em 1997, reúne cerca de três milhões de pessoas na Avenida Paulista, segundo a APOLGBT (Associação da Parada do Orgulho LGBT). "Existem ironias na pauta LGBT brasileira, uma delas é que a maior Parada LGBT do mundo é a do Brasil, um dos países mais homofóbicos do mundo", afirma a drag queen Gloria Groove. "É uma ironia triste, né? Mas me faz refletir muito", completa.

Com mais de 190 milhões de visualizações em seus vídeos no YouTube, a cantora é uma das principais vozes da música pop brasileira e também da comunidade LGBT no Brasil. Ela comanda neste ano um dos trios elétricos da Parada.

Eu não gosto de ter medo, porque o medo tem efeito paralisante e eu não acho que eu estou paralisado em lugar nenhum

Gloria Groove, cantora e ativista LGBT

"Para mim, é histórico estar à frente disso. Em cima do trio, eu sinto um peso político de estar falando por tanta gente e o orgulho de conseguir levar uma pauta mais pra frente, que é a minha vida, minha vivência", diz Groove. "Sinto que eu e a Pabllo Vittar estamos sendo voz ativa mais do que nunca e isso vai entrar pra história, que a gente está fazendo tudo isso enquanto o país é tomado por uma onda conservadora", completa.

Por mais que seja um momento de festa, o espaço da Parada é político, diz Claudia Regina, presidente da APOLGBT. "É um momento lúdico porque chama a atenção. Perceberam nas primeiras paradas que um carro de som, uma drag fazendo graça ameniza até dor, porque a gente vive uma condição muito complicada", afirma. "A ideia da parada é de, com alegria e comemoração do orgulho, nós temos orgulho de ser quem somos, mas estamos falando das nossas reivindicações. A Parada não é contra o governo, mas é pelos nossos direitos", completa.

EM NOME DA IGUALDADE A evolução nos últimos 15 anos das buscas mais relevantes para a comunidade LGBT na luta por equidade de direitos
Os números representam o índice de interesse de busca numa escala de ai de 0 a 100, onde 100 representa o interesse máximo de busca Fonte: Google Trends

ARMÁRIO QUEBRADO

A história da Parada em si se mistura com os 40 anos da história do movimento LGBT no Brasil, que teve início no final dos anos 1970, em plena ditadura militar (1964-1985). "Na época, a polícia caçava as travestis como se fossem bichos das savanas. A gente fugia da luz dos postes, porque assim eles nos descobriam. Eles gostavam de cortar nosso cabelo ou arrancar nossas perucas. Tinha colegas que trabalhavam só para pagar as perucas que perdiam", conta Thaís de Azevedo, orientadora socioeducacional no CRD (Centro de Referência e Defesa a Diversidade) há 11 anos. Hoje o local é o único ponto de apoio mantido pela Prefeitura de São Paulo, e atende, em sua maioria, LGBTs em situação de rua e travestis que trabalham pelo centro da cidade.

Em 2019, o tema da Parada será os 50 anos da revolta de Stonewall. A intenção é relembrar o quanto é importante lutar. "Essa parada é muito singular, tem uma pegada de rebeldia reivindicar esse momento de resistência nesse contexto de um governo que coloca em xeque os direitos da população LGBT", observa o professor Quinalha.

Ninguém vai querer voltar para o armário. Por mais que tenhamos medo, os ataques aumentam a nossa resistência

Claudia Regina, presidente da APOLGBT-SP

As imagens eternizadas de Stonewall, porém, escondem vozes que estiveram na linha de frente de todo o processo da revolução gay, como o caso das travestis Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, uma negra e uma latina. Só recentemente, por meio de livros e documentários, elas tiveram reconhecimento na luta. Como sinal de um apagamento sistemático, que o próprio movimento LGBT não conseguiu lutar contra, Johnson morreu afogada em 1992, por circunstâncias nunca totalmente reveladas. Rivera viveu até 2002, não sem antes viver como sem-teto em Nova York.

Um silenciamento que arrancou travestis e transexuais da linha de frente da luta - e que parece ensurdecedor no Brasil. Nós somos o país com maior número de assassinatos de transexuais no mundo. Mas somos também o país que mais busca no mundo pelas palavras "travesti" e "transexual" em sites de pornografia.

Um paralelo que Thaís de Azevedo carrega na pele. Em pouco tempo de conversa, a orientadora socioeducacional logo pergunta: "Não vai perguntar minha idade? Eu adoro falar minha idade". Não é para menos: Thaís é uma travesti de 70 anos e entendeu sua condição trans ainda adolescente, na rua. "Das minhas amigas nenhuma sobreviveu", lamenta. Hoje, a expectativa de vida das travestis e das mulheres transexuais é de apenas 35 anos. Com a sua idade, ela fica animada ao falar sobre a nova geração: "Existe uma dificuldade em manter as ações afirmativas, mas não sei o que aconteceu que ficou mais procurado. Hoje, as trans estão na música e fazem sucesso", comenta.

VISIBILIDADE DAS LETRAS

A busca pela visibilidade nessa sopa de letrinhas é o que move cada uma das letras de forma autônoma. O I, assim como o T, também tem começado a ganhar uma voz própria desde 2015, com a criação da Página Visibilidade Intersexo, gerenciada por Ernesto Denardi, Dionne Freitas e Eris Haru. Desses encontros e conversas, nasceu a Abrai (Associação Brasileira de Intersexos). Antes, a militância não estava ausente apenas na sigla: ela sequer existia no Brasil.

Essa demora tem várias razões. Uma delas é o preconceito. O intersexo é aquele que nasce sem um alinhamento total entre o sexo morfológico, físico e hormonal, que é típico do endosexo (divisão entre macho e fêmea), portanto, foge do binário, um dos pontos centrais das retóricas anti-LGBT. Mas não só por quem faz campanha contra o movimento.

"Tem muita militância que não gosta de tocar no assunto do sexo biológico, só da construção sexual. Que é importante, mas não explica tudo", afirma a intersexo e transexual - sim, as duas coisas coexistem - Dionne Freitas, 29, que é terapeutaocupacional e coordenadora da Área de Intersexuais da Aliança Nacional LGBT e na Regional Paraná da ABRAFH (Associação Brasileira de Familias HomoTransafetivas). "Já ouvi de dentro de movimento: 'Não vamos discutir isso porque é uma questão de doença'", completa.

A principal demanda dos Is é combater as cirurgias consideradas mutiladoras em bebês intersexuais, em sua maioria, estéticas e normatizadoras. Freitas não passou pelo processo e descobriu que tinha um hipogonadismo primário aos 13 anos. Aos 20, foi constatado que tinha genoma com X a mais, além do XY, o que a enquadrava no intersexo, e não no endosexo. Todo o processo foi acompanhado pelos vizinhos - e da pior maneira possível.

"Eu era apedrejada toda vez que saia na rua. Levava cusparada, me chamavam de aberração, principalmente pelas senhoras evangélicas", conta. Por causa do nome masculino no RG, teve dificuldade de obter ajuda da polícia quando sofreu três tentativas de estupros coletivos de meninos que queriam saber como era seu genital: "Disseram que menino não era estuprado."

Ela crê que o movimento está encontrando seu caminho para ouvir e atender todas essas vozes. "Nós temos singularidades, mas temos especificidades que precisam ser discutidas", observa. "Quando defendemos o intersexo, defendemos todos os LGBT. Nós mostramos para sociedade que o sexo não é binário, que existe macho e fêmea, mas não é só isso. Tem uma diversidade sexual dentro do sexo biológico, e se a própria natureza é diversa, imagina a identidade de gênero, imagina as orientações sexuais", diz.

Para a antropóloga Facchini, é hora de retomar a capacidade das pessoas de conviver, de respeitar e exercitar a empatia: "O movimento LGBT tem que se portar como um ator político em favor da possibilidade de viver junto. A luta é contra o ódio", afirma.

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