Clique para humilhar

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Não basta ter cuidado com aquilo que você publica online. Curtir, compartilhar e retuitar também podem prejudicar muita gente. Na roleta russa da internet, esse tipo de interação já arruinou vidas e levou a condenações na Justiça. Está com o dedo no gatilho? Então pense bem antes de clicar.

Texto Juliana Carpanez
Design René Cardillo

Você conhece a história de alguém que se deu mal por causa de algo que publicou - ou foi publicado - na internet. Pode ser aquela foto constrangedora do funcionário. Um comentário muito idiota, dificilmente dito em voz alta. Tem também o vídeo íntimo, gravado em um momento de empolgação, e o print daquela conversa no WhatsApp, quase tão secreta quanto o tal vídeo. Se a criação desse conteúdo exige cautela, o mesmo vale para quem curte e compartilha o material. Oh, yeah. Seu riso ou gesto de indignação, traduzido naquele joinha com jeitão inocente, pode contribuir para arruinar vidas. Em alguns casos, até acabar com elas.

A acusação é forte e você tem todo o direito de achá-la exagerada. Há também quem argumente que o autor mereça essa superexposição, equivalente ao tamanho de sua besteira. O problema é que, no tribunal chamado internet, as regras não são claras. Um mesmo conteúdo pode passar despercebido ou gerar reações das mais indignadas. E qualquer um pode parar no banco dos réus por um descuido tão pequeno quanto um tuíte. Independentemente do crime, a sentença vai de leve (um ou outro "kkk") até o grau avançado de hostilização, incluindo aí ameaças de morte. Com o agravante de toda essa história ficar registrada na rede para sempre.

A prática de humilhar publicamente leva o nome de shaming (envergonhar, em português), uma subdivisão do já conhecido bullying. A ação tem crescido na internet e ganhou destaque com o recente lançamento do livro "So You've Been Publicly Shamed" (Então Você foi Publicamente Humilhado, em tradução livre), do jornalista inglês Jon Ronson. É dele o tapa na cara dos internautas: quando o shaming é feito a distância, como drones remotamente controlados, ninguém tem a dimensão dos danos causados. E essas mesmas pessoas ignoram a força do poder coletivo. "O floco de neve nunca se sente responsável por causar a avalanche", compara Ronson, batendo agora na outra face. Ai!

Você pode nunca ter tido a intenção de praticar shaming. Mas sejamos honestos: o sensorzinho da maldade está em plena atividade quando se compartilha a desgraça alheia. É ou não é? Claro que existe gente disposta a constranger e ridicularizar qualquer criatura viva do planeta, mas não foram eles que colocaram o vídeo íntimo daquela desconhecida no seu grupo do WhatsApp. Atribuir essas atitudes a pessoas declaradamente mal-intencionadas seria eximir nós e nossos amigos do mal que circula em nossas próprias timelines. Se o conteúdo está lá, é porque esse bando de gente "de bem" o compartilha. E também o consome, fazendo a engrenagem girar.

Ao comentar recentemente como foi massacrada após envolver-se com o ex-presidente dos EUA Bill Clinton, a hoje ativista social Monica Lewinsky, 41, apontou para a existência de um mercado online movimentado pela humilhação pública: quanto mais vergonha, mais cliques. Monica se considera a primeira pessoa a perder a reputação pessoal de forma quase instantânea, em escala global, com o empurrão da internet. Ela admite seus erros, mas classifica a reação como sem precedentes. "Essa pressa por julgar promovida pela tecnologia cria multidões de atiradores de pedras virtuais. " No evento onde falou sobre o preço da vergonha, emocionou o público e foi aplaudida de pé. Mas na internet, sem o olho no olho, foi só tiro, porrada e bomba.

"É uma ferida aberta que nunca vai fechar"

A jornalista Rose Leonel teve suas fotos íntimas divulgadas por um ex-namorado após o fim da relação. Ela conta como essa exposição, sem prazo de validade, devastou sua vida e a de seus familiares

É fácil cair no óbvio quando se busca as motivações para o shaming: comportamento de manada ("todos fazem, vou fazer"), o manto de coragem que nos cobre diante do computador e a desinibição típica do ambiente online. Mas as razões vão além. Some a velocidade da comunicação na internet à disponibilidade do computador e do celular, sempre à mão. O resultado é uma interação extremamente ágil e impulsiva: você vê, clica. Concorda, curte. Ri, compartilha. Detesta e também compartilha. Nesse ritmo, não cabem pausas para refletir nem avaliar o peso de cada clique.

Há ainda quem veja a possibilidade de fazer justiça, compartilhando para denunciar. Trata-se de um erro. Primeiro, porque o fazem sem geralmente confirmar os fatos ou os verdadeiros culpados. Depois, porque espalham ainda mais o conteúdo (trata-se de humilhação pública, mesmo se o alvo não estiver naquele grupo do WhatsApp). Por último, num ambiente cheio de mal-entendidos, pode não ficar clara a verdadeira intenção do alerta. "Em casos delicados, é importante explicitar sua opinião ao repassar o conteúdo. No Direito, não dá para se eximir da responsabilidade dizendo que não sabia de algo", afirma Renato Opice Blum, professor do curso de Direito Digital corporativo do Insper (Instituto de Pesquisa e Ensino).

Na busca por culpados, dá também para apontar a cultura de zoeira (aquela que "never ends"). Não são poucos os sites que fazem curadoria de barbeiragens virtuais e há grupos no Facebook dedicados ao shaming: os alvos vão de animais bagunceiros a passageiros mal-educados. Se não houver página específica, uma hashtag resolve. Pode ser quase uma piada interna ou um tema abrangente, como família e até a seca na Califórnia - este último, com foco nos supostos esbanjadores de água. Como o conteúdo está associado ao humor, muitos consomem para rir.

São várias as razões que levam a constranger. E muita exposição por parte dos internautas: cada post é um flash. Assim, fica fácil encontrar a próxima vítima do shaming, que não precisa nem ser famosa (olha só: pode até ser você!). No mar formado por desconhecidos, os papéis e as intenções de cada um não são bem definidos. Dá para zoar, ser zoado; humilhar, ser humilhado; curtir, ser curtido. Nessa roleta russa, aquele mesmo fã dos seus vídeos de gato pode ser o responsável por disparar o gatilho, alertando ao mundo sobre a bobagem que você publicou. Se isso acontecer, torça para continuar sendo alguém desconhecido.

O economista norte-americano Adam Smith, 38, tinha a intenção de protestar em agosto de 2012, quando filmou sua interação com uma atendente do restaurante Chick-fil-A no Arizona. A rede vinha sofrendo boicotes por ser contra o casamento gay. Smith, casado com uma mulher e pai de quatro filhos, juntou-se a uma onda de manifestações promovida online e confrontou a funcionária Rachel Elizabeth no drive-thru ao pedir um copo d'água grátis (cortesia do estabelecimento). Ele foi hostil e gravou tudo com o celular. Rachel ouviu tudo e ainda lhe desejou um bom dia. Quando Smith colocou seu protesto no YouTube, passou de juiz a réu no intervalo de apenas uma noite. Prova de que o mundo dá voltas - inclusive o virtual.

Empregado na época como diretor financeiro, ele chegou a receber ameaças de bomba no escritório. Perdeu o emprego, o salário anual de US$ 200 mil e o equivalente a US$ 1 milhão em ações da companhia. Ficou dois anos e meio desempregado e passou a sustentar sua família com cupons de desconto, comuns entre a população desabonada nos EUA. Ele nega que a intenção fosse humilhar: disse ter acreditado que participar de um protesto organizado online era uma forma segura de se posicionar sobre algo polêmico. Não se arrepende do que disse. Mas avalia que errou ao exaltar-se durante o confronto e subir o vídeo quando ainda estava sob o efeito da emoção. Convicto, não conseguiu avaliar friamente sua atitude.

Adam Smith, economista

Em um programa de TV, Rachel disse que o perdoava. Mas a internet não esquece, e isso impediu Adam e família de seguirem em frente. "Foi brutal de uma forma que não consigo nem começar a descrever, exceto para dizer que parece não haver escapatória desse buraco tão escuro e profundo", afirma. Com tudo isso, diz ter mudado a forma como vê as pessoas, tornando-se alguém com mais compaixão e propenso a perdoar. "A maioria erra todos os dias. Mas os erros não estão no YouTube para todos assistirem, comentarem e julgarem", disse Adam Smith ao TAB. Além do aprendizado, a história rendeu o livro "Million Dollar Cup of Water: Discovering the Wealth in Authenticity" (O Copo de Água de Um Milhão de Dólares: Descobrindo Riqueza na Autenticidade, em tradução livre).

Vergonha alheia

O instituto Pew Research Center divulgou em outubro de 2014 seu primeiro estudo sobre assédio na internet. A pesquisa ouviu 2.849 usuários dos Estados Unidos

00% dos usuários já foram xingados na internet

00% já foram constrangidos de propósito na internet

00% já viram alguém ser xingado na internet

00% já viram alguém ser constrangido na rede

Adam Smith não respondeu legalmente pela tentativa de constrangimento, assim como não o fizeram aqueles que criticaram sua atitude. Mas Justiça e tecnologia vêm se conhecendo melhor, levando cada vez mais internautas para o banco dos réus (aquele de verdade, mesmo). Processos ligados a calúnia e difamação na internet, que surgiram no Brasil praticamente com o Orkut, hoje abrangem ações típicas do Facebook. Num caso julgado em 2013, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo condenou uma mulher por postar conteúdo indevido e outra por compartilhar as informações na rede. Multa por danos morais: R$ 100 mil, dividida entre as duas.

Passado o impacto do valor, é importante explicar que as acusadas entraram com recurso e o total caiu para R$ 20 mil (o caso segue na Justiça). Isso não torna menos emblemática a punição, que abriu jurisprudência para condenar quem espalha conteúdo digital, sem necessariamente produzi-lo. A vítima, um veterinário, havia castrado uma cadela no canil municipal de Piracicaba (SP) e entregue o animal para seus responsáveis. A saúde do bicho deteriorou e uma das mulheres publicou informações não comprovadas "denegrindo a imagem, honra e conduta profissional" do veterinário. A outra compartilhou e comentou os posts.

Foi esse o recado que o juiz Marcos Douglas Veloso Balbino Da Silva passou em sua decisão. "Infelizmente, as rés [...] utilizam as redes sociais do conforto de seus lares ou trabalho como verdadeiro tribunal de exceção. Acusam, denunciam, condenam e aplicam a pena, sem pensarem na repercussão de seus atos para os acusados. " Também afirmou que a autora dos compartilhamentos é protetora de animais, exercendo influência sobre pessoas ligadas à causa. Tinha portanto o dever de averiguar o caso antes de divulgá-lo, mas as acusações nunca foram comprovadas.

Monica Lewinsky Hoje ativista social, ela defende um ambiente digital com mais segurança e compaixão

Segundo Mauro Merci, advogado do veterinário, seu cliente cogitou mudar de cidade quando foi hostilizado na escola dos filhos. Monica Lewinsky contou que seus pais a faziam tomar banho de porta aberta e temiam que a filha fosse, literalmente, humilhada até a morte. Adam Smith, do protesto no drive-thru, admitiu que quis morrer. E o estudante norte-americano Tyler Clementi levou o constrangimento ao extremo em 2010, quando, aos 18 anos, jogou-se de uma ponte. Isso porque seu colega de quarto anunciou via Twitter o encontro íntimo de Tyler com outro homem.

Controlando remotamente a webcam de seu computador, esse colega conseguiu espioná-los e chamou outras pessoas da universidade para verem a cena. Onde está seu "curtir" agora?

Em maior ou menor grau, todas essas pessoas ganharam fama com a internet. Foram apresentadas ao mundo como criaturas pixeladas ou "uma mulher bidimensional", conforme a autodescrição de Monica Lewinsky. Não há contexto para suas histórias de vida e sim destaque para uma única característica - e não necessariamente aquilo que você exibe no perfil do LinkedIn. As acusações foram disponibilizadas para quem quisesse vê-las em qualquer lugar, a qualquer momento. Para completar, aqui não funciona o código informal do "chorou, parou": o alcance do conteúdo é ilimitado, mas a reação da vítima não acompanha essa distância.

Tyler Clementi, estudante

Não à toa, esse assunto está frequentemente associado ao suicídio. Ana Luiza Mano, psicóloga do NPPI (Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática) da PUC-SP, explica a relação. "Suicídio é a ausência de qualquer outra possibilidade. Quando se está cercado o tempo todo por acusações na internet, parece não haver escapatória. A sensação é massacrante", afirma.

Fran Santos, 20, diz ter buscado em sua filha pequena as forças para continuar - moradora de Goiânia, ela ficou conhecida nacionalmente em 2013 por causa do vídeo íntimo em que aparece fazendo sinal de ok. Perdeu o emprego e teve de parar de estudar. Diante da enorme repercussão, criou-se o movimento de apoio #forçafran. Mas muitos usaram esta mesma hashtag para fazer graça, publicando selfies com o tal ok. Se o ex-parceiro foi responsável por vazar o vídeo, ele contou com um exército de internautas que transformaram em meme a dor de uma mulher. Em 2014, o empresário - com quem se relacionou sem compromisso por três anos - foi condenado a cinco meses de trabalho comunitário.

"A sensação é de raiva, por saber que em pleno século 21 as pessoas agem com tanta hipocrisia e falta de amor ao próximo", contou em entrevista por e-mail. Ela ainda não conseguiu arrumar emprego, porém voltou a estudar. E diz que hoje, quase dois anos depois de ter sua intimidade devastada, a situação está melhorando. "Mas nada será como antes", afirma.

Sexting

A ONG brasileira Safernet registrou um aumento significativo nos pedidos de ajuda para casos envolvendo exposição de conteúdo íntimo. Trata-se da principal queixa entre quem procura aconselhamento na ONG, seguida de ciberbullying

São muitos os grupos com foco no combate ao bullying, inclusive a fundação Tyler Clementi, criada pela família do jovem estudante morto. Você não precisa se juntar a elas nem levantar bandeiras. Já ajuda consideravelmente se deixar de consumir e, principalmente, compartilhar conteúdo ofensivo. Caso a intenção seja denunciar, o alerta deve ser feito diretamente para organizações e autoridades específicas. Um pouco de compaixão e empatia quando se usa a internet também são bem-vindas - para Monica Lewinsky, isso a salvou.

Compaixão foi a arma escolhida pela jornalista dos EUA Cassandra Fairbanks, 30, quando viu a foto de um gordinho desconhecido circulando pela internet. Postada anonimamente no fórum 4Chan em março, a imagem tinha a seguinte legenda: "Vi este espécime tentando dançar na semana passada. Ele parou quando nos viu rindo". O conteúdo horrorizou um grupo virtual do qual ela faz parte, com mais de 2.000 mulheres de Los Angeles (EUA). Elas decidiram encontrar a vítima - depois de discutirem se isso não a exporia ainda mais -, com a proposta de fazer uma festa onde o "dancing man" pudesse dançar. No dia seguinte, Cassandra recebeu uma foto de Sean O'Brien, que vive em Londres, segurando uma saudação para ela e para todo o Twitter.

Envergonhado, Sean O'Brien parou de dançar quando fotografado. A imagem viralizou e um grupo de mulheres ofereceu uma festa para o então desconhecido.

Na festa em Hollywood, Sean dançou ao som do DJ Moby. Monica Lewinsky prestigiou o evento, que deu origem ao movimento antibullying Dance Free Movement.

Criou-se então uma campanha online para levar Sean aos EUA e também arrecadar US$ 20 mil (cerca de R$ 62,3 mil) a serem doados para grupos antibullying. A viagem de cinco dias foi paga pelo departamento de turismo de Los Angeles. Os organizadores e participantes da festa fizeram tudo voluntariamente (inclua aí a discotecagem do badalado DJ Moby) e a arrecadação atingiu o dobro do esperado (US$ 40,8 mil; cerca de R$ 127 mil). Cassandra diz esperar que tudo isso inspire as pessoas a agirem, caso vejam algo errado acontecendo. "A bondade é contagiosa", afirma.

Na noite de 23 de maio, em Hollywood, Sean recebeu tratamento de celebridade na festa realizada em sua homenagem. O legado do evento vai muito além das centenas de fotos postadas em redes sociais: foi criado o movimento Dance Free, para combater o bullying e encorajar que pessoas de todo o mundo dancem da forma como quiserem. Sean, dizem, curtiu.

Juliana Carpanez

Editora de UOL Tecnologia. Após este TAB, começou a pensar duas vezes antes de compartilhar - e não apenas antes de postar.

tabuol@uol.com.br

Esta reportagem também contou com apoio de:

Maryah Kay, edição de vídeo.

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