Vozes da metrópole

Como os novos imigrantes se entendem com uma São Paulo que nunca havia falado tantos idiomas

“A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”, escreveu Nelson Rodrigues em uma galhofa bem carioca, publicada em “O Globo” nos anos 60. Mas a história contemporânea de São Paulo aponta outra interpretação. Apesar de intimidadora, a maior metrópole brasileira tem sido há mais de um século um porto de chegada para lá de receptivo a estrangeiros.

O perfil de quem desembarcou na cidade mudou bastante nas últimas décadas. Ao mesmo tempo em que o fluxo europeu mingou, São Paulo finalmente fez jus a suas dimensões e virou a capital informal da América do Sul, atraindo cada vez mais povos vizinhos. Mas esse quadro vai além: a metrópole nunca recebeu tantas nacionalidades diferentes como nos dias de hoje. Em abril de 2016, eram 381.903 estrangeiros nos registros oficiais da Polícia Federal, ou seja, quase 4% da população total, estimada em cerca de 12 milhões de pessoas.

Com haitianos, bolivianos e sírios como emblemas da nova geração imigrante, São Paulo se abre para uma diversidade inédita de culturas. No entanto, o mote existencial dos novos habitantes continua o mesmo de sempre. No Museu da Imigração da cidade, um texto exibido em um mural de entrada diz que “o migrante é necessariamente alguém partido: uma vida permanece em sua origem, outra se lança num novo destino, incompleta”. Talvez nada melhor exemplifique essa divisão do que a língua. Ao mesmo tempo em que remete à identidade nacional, ela precisa se reciclar no Brasil, se reinventar, desbravando as armadilhas do português coloquial em nome da adaptação na terra escolhida. 

Dialeto brasileiro

A cabeça de Rawaa Al Sagheer se manifesta por meio da arte. Mas, com pouco mais de um ano no Brasil, a imigrante síria-palestina ainda não dialoga com sua nova terra de forma plena. Ela não domina o português e interage de forma limitada com os nativos. Passa a maior parte do tempo criando músicas ou vídeos em seu quarto, no bairro de Santo Amaro, onde mora com a família.

A internet ajuda Rawa a manter uma relação estreita e muito criativa com um amigo que mora na Jordânia. Foi ele quem escreveu o argumento de “Fingers”, o curta-metragem que a jovem dirigiu assim que chegou ao Brasil, sobre a importância da linguagem das mãos. “Quando eu cheguei a São Paulo não conseguia entender nada. Então eu entendia pelos movimentos do corpo, dos dedos. Os sons, altos e baixos, mais ou menos assim”, diz a imigrante, sobre a produção.

Rawaa trabalha agora em sua segunda empreitada audiovisual: um videoclipe sobre a condição de refugiados em uma terra desconhecida. Aprender português tem sido uma batalha, tanto nas aulas junto a outros estrangeiros, quanto na experiência das ruas. Mas a jovem de 20 anos está decidida a usar o novo idioma para virar a cineasta que deseja ser. “Penso em tudo que posso fazer em São Paulo. Porque não tenho país para retornar, para voltar. Todo o meu futuro está em São Paulo”, afirma.  

 

No começo de sua vida em São Paulo, Franklin Castro Pocoaca se assustou com a dificuldade imposta por uma experiência cotidiana. O imigrante boliviano foi a uma padaria durante uma folga e não conseguiu se entender com o atendente brasileiro: Franklin queria apenas tomar uma Fanta laranja, seu refrigerante favorito. A partir daí, decidiu usar elementos da cultura popular para se integrar.

Fã de “Chaves”, o boliviano de La Paz conhecia praticamente de cor os episódios do programa mexicano. No Brasil, os esquetes de Quico, Seu Madruga e companhia foram uma espécie de alfabetização alternativa em português. Franklin assistia ao humorístico exibido pelo SBT e, pouco a pouco, aumentava o repertório no idioma local.

Hoje Franklin atua como um líder da comunidade boliviana. Ele é dono de um centro de costura e também apresenta um programa para os bolivianos de São Paulo em uma rádio – que tenta se legalizar. Com a atração chamada “Buenos días, buen trabajo”, o imigrante que chegou em 1989 se esforça para ajudar compatriotas em necessidade. Em julho passado, organizou uma campanha para auxiliar famílias da Bolívia prejudicadas num incêndio de uma favela paulistana. “Eles perderam tudo. Queremos conseguir pelo menos máquinas de costura. Isso é tudo para um boliviano”, diz.

Monerest Berchette vai além da imagem clichê que o brasileiro tem do imigrante haitiano. Em pouco tempo em São Paulo, conseguiu um emprego numa área que domina e gosta, faz faculdade de Administração e já trabalha para colocar em prática o que considera seu grande desafio. “Estou me preparando para participar de um concurso público. Eu sei que eu vou passar”, conta.

Cozinheiro de um pub irlandês badalado dos Jardins, Monerest é representante da nacionalidade que mais cresce nos índices nacionais de imigração. Há dez anos o fluxo haitiano em direção para o Brasil era irrelevante nos balanços oficiais. Contudo, desde 2014, a pobre nação caribenha assumiu a liderança entre os países de origem dos estrangeiros que chegam por aqui.

O orgulho de sua cultura foi manifestado em um evento em que Monerest cozinhou “griot de porc” (porco frito com banana da terra) para brasileiros, em julho passado. Mas, sentimento nacional à parte, o haitiano não tem dúvidas de que seu futuro está em São Paulo – a mulher dele, grávida, dará à luz um paulistano. “Sonho para meu filho que vai nascer no Brasil, que é um país mais avançado, que ele não passe pelo que eu passei”, diz.   

 

Para Omana Ngandu Petench, São Paulo significa a chance de uma vida em paz após muito sofrimento na República Democrática do Congo. O homem que diz ser o único entre 27 pessoas a sobreviver a um pelotão de fuzilamento considera a realidade brasileira mais do que promissora. Principalmente agora que conseguiu trazer o resto da família – esposa e cinco filhos –, depois de uma campanha de arrecadação na internet para bancar passagens e vistos.

Antigo defensor dos direitos humanos em seu país, Omana hoje concilia a atuação como professor com o ativismo. O congolês criou uma ONG que ajuda imigrantes que acabam de chegar da África a São Paulo, seja para tentar arranjar um emprego, para conseguir uma cama velha de madeira ou ao menos oferecer uma primeira visão a respeito de Brasil.

Apesar de falar francês, suaíli e uma série de dialetos africanos, Omana relata que não consegue se adaptar a mais um idioma, a língua da terra que escolheu, mesmo após três anos. “Eu tento, mas o português não entra na minha cabeça”, diz, em meio a uma gargalhada. Mesmo assim, o congolês não se afasta do otimismo de quem já enfrentou dilemas mais graves. “Quando você está em paz, tudo está bem. Aqui estou feliz e posso dormir tranquilo”, afirma.   

A vida de Alla Gueorguievna Dib cruzou com o Brasil nos anos 1980, quando iniciou o romance com o futuro marido (um carioca) numa universidade russa. A educadora nascida em Riga, na Letônia, passou a morar definitivamente em São Paulo em 1991, bem na época do esfacelamento da União Soviética. Em meio às turbulências políticas do momento, precisou requisitar cidadania brasileira para poder ter direito de visitar a cidade natal, onde os pais ainda moravam.  

A herança cultural soviética deixou Alla levemente desnorteada em seu primeiro contato com uma greve de verdade. Um dia, sozinha na Avenida Paulista, viu os funcionários do metrô paralisados e, de repente, não tinha ideia de como voltar para casa, no Jaçanã. Precisou da ajuda de estranhos para entender o sistema de ônibus e seu emaranhado de linhas.

Hoje, Alla tira de letra a vida em português. Ela dirige uma escola de russo e um centro de cultura do mesmo idioma. De quebra, ainda é eleitora em São Paulo, onde espera que os futuros governantes olhem para o estado de conservação do centro da cidade. Para chegar a esse nível de performance comunicativa, a educadora usou e abusou da cultura popular: “Eu comprava discos de pagode, de forró, de samba, da Beth Carvalho. Escutava e tentava traduzir as palavras. Eu entendia como pensava a cabeça brasileira. Do pagode, principalmente, eu compreendi muitas coisas inesperadas”, afirma, numa referência sobre como se desenvolvem as relações afetivas no Brasil.
 

 

O canadense Didier Cadotte cansou de perder mais de cinco horas todos os dias no trânsito de São Paulo. Foi quando ele decidiu que não iria mais até seus alunos, a quem ensina inglês e francês. Era a hora de abrir um negócio online e, enfim, tentar descobrir o que há de qualidade de vida na maior metrópole sul-americana.

Há oito anos Didier chegou a São Paulo para casar com uma brasileira. A união não durou, mas o gringo decidiu ficar. Para se entrosar na nova terra, caiu na estrada país afora. No entanto, sentiu dificuldade para se comunicar fora do eixo Rio-São Paulo. Como evoluiu no português com ajuda da televisão, principalmente com documentários da TV Cultura e com o humor do “Pânico”, acabou apanhando de alguns sotaques.

“Cada região, cada cidade tem uma gíria diferente, é difícil. Mas com oito anos aqui, tenho um domínio pelo menos do que se fala em São Paulo”, afirma. “Os [sotaques] nordestinos são os mais difíceis. As gírias deles são bem mais diferentes do que as do Rio e de São Paulo, que você vê na televisão. Eles têm um vocabulário bem particular”, completou o canadense de Maxville, que fica perto de Ottawa, capital do país.

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