Feios, sujos e malvados

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São Paulo precisa de um personagem que muitos amam odiar.

Amaldiçoado por dez entre dez motoristas, ele sobrevive ultrapassando os carros enfileirados. Enquanto a metrópole começa a sorrir para a bicicleta, o sujeito é sempre candidato a vilão do trânsito. Mas há quem esqueça que o motoboy faz o trabalho que poucos topam fazer - arriscar a vida por uma entrega rápida.

TextoMarco BrittoDesignRené CardilloFotografiaReinaldo Canato

A cidade amanheceu sem motoboys. "Graças a Deus", pensa o motorista. Está falando ao celular, já que o trânsito não anda. Espiaria a capa do jornal, que sempre leva no banco vazio do carona, mas o diário não chegou. Ok, ao menos não escuta o barulho daquela buzina aguda. 200 mil motos a menos circulam pelas ruas.

No trabalho, vê na TV a manchete: São Paulo vive dia caótico. "Que exagero", pensa. Em seguida, nota que 17 contratos importantes não foram entregues. Irritados, clientes europeus que estão na cidade cancelam o negócio pela falta de profissionalismo. "Motoboy FDP." Um advogado ouve no rádio que cerca de 600 mil empresas têm queixas parecidas.

No posto de gasolina, há certa apreensão. O chefe comentou que as vendas de combustível caíram um pouco. "Se continuar assim, as redes vão vender hoje 3 milhões de litros a menos de gasolina e álcool."

Um senhor, à espera de uma transfusão de sangue, morreu. A ambulância que substituiu o motoboy não chegou a tempo. A viúva, que sofre de ansiedade, não recebeu seu remédio, como prometeu a farmácia de manipulação. Nas distribuidoras, compras da internet inundam os depósitos.

As pizzarias nem abriram. Um rapaz, dirigindo uma moto de 150 cilindradas, foi abordado no semáforo. Era um dono de padaria oferecendo uma vaga de trabalho temporário. Diante da negativa, se perguntou: "Será que tento um ciclista"?

Motoboy sp

Fontes: Denatran / Detran-SP / Sedersp / Sindimoto-SP / Secretaria Municipal de Transportes de SP

O zumbido no trânsito da maior cidade do país passou a chamar atenção a partir dos anos 90. O crescimento do setor de serviços e uma transformação no sistema fizeram com que os motoboys se proliferassem como mosquitos. O mercado de trabalho mudou na época da chegada da internet. Quem não estava preparado, rodou.

A mão de obra não qualificada seria aproveitada. "Como garantir [a entrega de encomendas] em um cenário de problemas seríssimos de mobilidade? Os motoboys surgem como alternativa barata", aponta Ricardo Barbosa, doutor em geografia humana pela USP (Universidade de São Paulo), que estudou a categoria na capital paulista. Assim começa um processo de exploração, ilegalidade e morte que aguça o espírito camicase de jovens das classes baixas.

Procura-se, primeiro emprego: funcionário de vinte e poucos anos de idade, sem carteira assinada, para ser o cara que ninguém elogia, que é confundido com assaltante quando encosta ao lado do carro no semáforo. Sorriso no rosto será visto como diferencial.

tv motoka

  • 1

    Era mais um dia comum até que um motoqueiro distraído apareceu

  • 2

    Desenrolando um papo com o mano / tapa no retrovisor da Kombi

  • 3

    Aprendendo os macetes da embreagem para arrancar suavemente

  • 4

    Correria básica para levar o pacote até o ponto de entrega

  • 5

    Corredor livre até que um Citroën dá uma bela fechada

Era mais um dia comum até que um motoqueiro distraído apareceu

Divulgação / Motokavlog Cachorro

O sindicato da categoria em São Paulo, Sindimoto-SP, estima que no máximo 20% dos motofretistas trabalham com carteira assinada. Muitos começam o dia entregando jornais, passam manhã e tarde atendendo a entregas e acabam a jornada levando pizza aos motoristas com quem trocaram ofensas pouco antes, no congestionamento.

"O mesmo cara que te critica, quando precisa de uma entrega, chega e fala 'amigão, sei que você é bicho solto. Preciso que chegue tal hora, será que você consegue?'", conta Moacir Lima, motoboy de 35 anos. Há dez, ele não tira férias. Se tirasse, conta que daria um rolê na praia. Do trio jornal+agência+pizza, dispensa as notícias. No mais, qualquer "viajinha" que pintar, está aceitando. Deu entrevista ao TAB com fones ligados ao celular, para não perder corridas.

"Fala para ele vir voando" é uma frase que Vinicius Vicentim escuta todos os dias. Dono de uma agência de courrier, coordena 20 motoboys. Ele mesmo já ganhou a vida com a moto, até que se acidentou e ficou sem assistência. Bateu, deu uma cambalhota e caiu de costas sobre o teto do carro à frente, fazendo estourar os vidros do automóvel. "Minha moto teve perda total. A empresa não foi nem me ajudar a retirar o que sobrou dela."

A combinação de cronômetro e dinheiro deixa o motoboy sob pressão. A grana espera no fim do corredor polonês de automóveis. Uma mistura que estimula a imprudência, na opinião de Alex de Toledo, psicólogo que traçou o perfil mental destes profissionais. "Uma das minhas conclusões é que o motoboy tem medo do trânsito. Quanto mais estressado, maior a chance de sofrer um acidente."

30/07/2015
17h19
São Paulo

458km de lentidão

Como seria o trânsito sem os motoboys?

corrida loka

O objetivo é completar a entrega antes do tempo limite. Se você não chegar logo, o cliente vai mandar devolver a pizza!

começar

1. Você está em uma avenida congestionada e com pressa. O que faz?

() Segue a fila de carros, para ficar em segurança

() Entra no corredor entre uma fila e outra

() Dá um "gato" no cruzamento e corta caminho

próxima

2. Seu GPS quebrou, e agora?

() Apela para o bom e velho guia impresso

() Sua memória, pois você conhece todas as ruas de São Paulo

() Para e pergunta no ponto de táxi

próxima

3. Se um carro fecha você, como vai reagir?

() Persegue o automóvel e dá um soco no capô

() Faz um sinal com a mão, mas segue sua rota

() Fica na cola do carro até poder parar do lado no semáforo e xingar a mãe do motorista

próxima

4. Na hora que chega ao destino, como entrega a pizza?

() Entra no prédio, pois tem que entregar a pizza em mãos ao cliente

() Toca o interfone, mas não sai de perto da moto, pois podem roubá-la

() Entra e ainda troca uma ideia com o cliente, afinal você é um profissional simpático

próxima

Resultado:

Você foi rápido e o cliente vai pedir de novo!

jogar novamente

Resultado:

A entrega foi feita a tempo. Mas foi por pouco!

jogar novamente

Resultado:

Perdeu, motoboy! Você vacilou e gastou tempo demais.

jogar novamente

tempo gasto 0:00

Uma pesquisa da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) se propôs a mapear a personalidade do motoboy. Encontrou uma classe de trabalhadores com medo de morrer e com uma parcela de usuários de drogas (24%) um pouco acima da média brasileira (22,8%). Nada que possa classificá-los como um bando de drogados. "Ele usa menos maconha do que universitários", comenta o autor, Alex de Toledo.

A ansiedade é o bicho-papão da pista. Histórias de mortes de amigos, acidentes e situações de humilhação são munição para agressividade - viram um tapa no capô, uma empinada, entre outras práticas dos motoqueiros. Os jovens, principalmente no primeiro ano de trabalho, se arriscam mais, segundo o estudo.

A revolta do motoboy é descrita por Toledo como "identidade negativa", apoiada no trabalho do psicanalista alemão Erik Erikson (1902-1994). Discriminado, o ser humano passa a repudiar o meio em que vive e assume um comportamento contra as regras, ao mesmo tempo como protesto e também para chamar atenção para a sua condição.

"As ruas são planejadas para o aristocrata. O motoboy vem como um jovem sem condições de disputar este lugar. Ele, da periferia, vem brigar por este espaço, de sociedade, de trabalho, de andar na rua. Só que ele, às vezes, acaba tendendo para um lado negativo. Ele disputa este espaço com agressividade", analisa o psicólogo.

A disputa por um lugar na rua remete à luta de classes. As vias desenhadas para os carros, antes posses típicas da elite e da classe média, foram invadidas pelas hordas bárbaras de duas rodas. A favela chegou para buzinar no ouvido dos bem-nascidos. É o triunfo dos renegados. "É nóis."

Hoje a cidade de São Paulo assiste a uma nova "invasão". Apesar de haver discussão, ela não opõe exatamente pobres e ricos. A bicicleta possui outro apelo: vista como veículo saudável, ganhou apoio da prefeitura como opção para melhorar o tráfego. Quem pedala tem pista vip e passa a imagem de bom cidadão. O "primo" sem escapamento simboliza novos tempos, enquanto o motoboy é um problema não solucionado, persistente.

"O ciclista pode se dizer incluído na cidade", afirma Daniel Labadia, presidente do Instituto CicloBR. A categoria de tempos em tempos comemora uma nova ciclovia, como a da avenida Paulista, antes um sonho distante. "Começaram a olhar de verdade para os ciclistas. É uma quebra de paradigma", completa.

Sem trilha definida, o motoboy abre picadas na selva pavimentada. Buzina, se atravessa. Quando irritado, chuta o retrovisor e cospe no motorista. "Às vezes, a única maneira de ele encontrar uma identidade é sendo provocador. Ele assume essa postura transgressora para ser visto, porque ele precisa ser ouvido também", avalia Toledo.

O dedo acusador aponta para o motoqueiro estressado, mas a pressa é de quem? De quem fez o pedido. Do ponto A ao ponto B, o motoboy corre para satisfazer um desejo, uma fome, uma conquista de outra pessoa que não ele. "No fundo, quem acelera a moto é a própria sociedade, que induz o crescimento e a atuação dessa atividade", provoca Barbosa, especialista em mobilidade.

Entre o serviço e a paranoia, o motoboy morre. Bate, perde pernas, mãos, dentes. Não é mais notícia. "É uma vida matável, uma vida perdida. Para garantir que as pessoas fiquem satisfeitas, existe uma parte da sociedade em que a vida vale menos", aponta o pesquisador.

No raio-X do trânsito, menos motoboys têm morrido. Entre 2009 e 2014, a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) observou queda de 52 para 27 vítimas motofretistas por ano - antes uma morte por semana, agora uma a cada 13 dias. Entre ciclistas, a diminuição foi de 61 para 47 vítimas por ano.

bate-volta

Dois motociclistas completamente diferentes encaram a mesma missão no horário de pico das entregas em São Paulo

O Plano de Mobilidade de São Paulo coloca motos e carros em quinto e último lugar na escala de prioridade do trânsito. Pedestres vêm em primeiro e bicicletas logo em seguida. O transporte de cargas - motofrete incluído - está na quarta posição, após ônibus e trens.

Os tapetes vermelhos para as magrelas já beiram os 300 km. A meta da prefeitura é chegar a 400 km até o fim do ano. "A gente leva São Paulo nas costas e não tem esse privilégio. Se tivesse uma faixa, evitaria briga no trânsito, acidente, morte. E olha que a gente paga IPVA, seguro obrigatório", afirma Marcos Cardoso, que foi parar na UTI quando fazia uma entrega noturna.

A CET fez um teste com faixas exclusivas para motos, que foram descartadas, pois "não representaram aumento para a segurança dos motociclistas". Entre os motoboys, é frequente o apelo pela volta da motofaixa - ainda mais agora que as bicicletas ganham seu lugar ao sol.

Após abrirem espaço na agenda política, os ciclistas afirmam que ajuda muito saber pedir. O CicloBR, que representa a tribo em reuniões com a prefeitura, coloca que sua pauta é uma cidade melhor para todos, enquanto o motofrete martela em cima dos seus próprios problemas. "Os motoboys devem focar na segurança, esses números absurdos de mortes. Falta direcionamento", avalia Daniel Labadia, presidente do instituto.

O atual plano de mobilidade abre alas para ônibus e bicicletas. Após décadas de reinado do carro, pedalar é novidade. Em pesquisa feita pela prefeitura, 72% dos entrevistados dizem nunca ter usado uma ciclovia. "Faça a estrutura, que as pessoas vão usar. Já passam 2.000 ciclistas por dia pela Avenida Faria Lima [inaugurada em 2012]", argumenta o cicloativista Labadia.

Na faixa vermelha ou no asfalto cinza, ninguém nega que um trânsito menos disputado ajudaria bastante. "Priorizando o transporte coletivo com eficiência, o trabalho dos motoboys se daria antes de tudo de uma forma mais humana", afirma o pesquisador Ricardo Barbosa. "Você tem que ter educação, mas leis rígidas e punições rígidas também", defende o motoboy Pedro Luís Vieira, 53, há dez anos nas ruas.

A Secretaria Municipal de Transportes iniciou uma pesquisa sobre transporte de cargas e o secretário Jilmar Tatto cogita uma faixa exclusiva para esta modalidade. Comentou que o espaço poderia ser compartilhado por automóveis, táxis, motofrete e ambulâncias. Os resultados do estudo devem ser divulgados em dezembro. Enquanto isso, no conforto do lar, a cada pedido de entrega o paulistano segue acelerando com o motoboy, seu malvado favorito.

Marco Britto

Editor-assistente do UOL. Apurou que foram feitas 895 entregas na empresa enquanto escrevia este texto

tabuol@uol.com.br

Esta reportagem também contou com apoio de:

Moacir Lima e Jefferson Valcézia; Denis Pose, desenvolvimento.

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