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Como colocar a mulher no centro da arte erótica (e da censura no Instagram)

Tainá Maneschy teve conta deletada dias antes de abrir mostra com suas obras eróticas - Carine Wallauer/UOL
Tainá Maneschy teve conta deletada dias antes de abrir mostra com suas obras eróticas Imagem: Carine Wallauer/UOL

Tiago Dias

Do Tab, em São Paulo

01/02/2019 04h00

Mãos entrelaçadas, dedos molhados, fluidos na boca, pernas entreabertas. As ilustrações em aquarela da artista paraense Tainá Maneschy transbordam desejo e prazer e colocam a mulher não apenas no centro de cenas eróticas, mas também no comando das ações. Mas, para esse conceito se ver livre do que muitas artistas chamam de censura, ainda falta combinar algumas coisas com o Instagram e outras plataformas de publicação.

Graduada em cinema, Tainá sentiu o chamado da arte erótica realista ao saber das manifestações contrárias à mostra "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", em Porto Alegre, em 2017. Ela já produzia em casa, sem muita pretensão, enquanto um movimento ruidoso acusava algumas obras da exposição de fazerem apologia à zoofilia, pedofilia e profanação.

A reação conservadora fez com que o Santander Cultural, que sediava a mostra, antecipasse seu fim, para o choque dos artistas que viram no gesto um ato de censura. Para a artista em construção soou quase como uma provocação. "Eu pensei, 'é o momento. Não sei quando nós vamos poder fazer isso de novo'", diz.

Corta para 2019. Ao desembarcar na tarde de terça-feira (29) em São Paulo, onde abre sua primeira mostra individual "Dezessete/Dezoito", no próximo sábado (2), Tainá não conseguiu acessar sua conta no Instagram. Da rede social, que se tornou o principal veículo de divulgação de seu trabalho e abriu espaço para convites, recebeu um aviso: a conta havia sido bloqueada por infringir os termos de uso e por "oferecer serviços sexuais". Perdeu posts, contatos e seguidores. Experimentou novamente aquela sensação de 2017. "Fiquei transtornada. Alguém deve ter me denunciado loucamente", afirma.

Tchau, Milo Manara

Tainá, que vive atualmente em Lisboa, faz parte de uma leva de novos artistas que viram no Instagram uma vitrine popular e democrática para expor seus trabalhos, dialogar com os espectadores e experimentar técnicas e temas. Entre eles, o erótico, que historicamente sempre esteve centrado em torno do espectador masculino, renasceu em uma cena predominantemente feminina, onde a mulher é a artista, a participante e a observadora do processo sexual.

E para quem questiona que diferença isso faz, uma das obras da brasileira parece responder: um homem aparece fazendo sexo oral, enquanto o espectador observa a cena sob a perspectiva feminina, de cima para baixo.

Tainá Maneschy, artista brasileira que publica no Instagram representações da sexualidade feminina em ilustrações - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL
"Você vê o Milo Manara [conhecido desenhista italiano] que só desenha mulheres bonitas para homem ver. Eu tento fugir disso. Quero mostrar a perspectiva feminina, porque a mulher também sente prazer, mulher também gosta disso. Toda a indústria pornográfica, e parte de produção de arte, é sempre com o mesmo olhar", diz.

Passou a fazer parte de uma comunidade de mulheres fotógrafas, artistas e ilustradoras. Todas buscando representar esse universo feminino - e todas sofrendo as mesmas restrições no Instagram, que deletava alguns posts sem muita explicação.

No caso da paraense, sumiu, de uma hora para outra, a ilustração de uma vagina e o desenho de duas mulheres, cada uma com a mão embaixo da roupa da parceira. "Não era explícito, era só sugestão. Caiu na hora", lembra. A última imagem postada por ela trazia uma mulher deitada de bruços na cama, afastando a calcinha com os dedos. Menos de 24 horas depois, a conta inteira foi apagada.

Em comum, essas imagens estavam entre as mais curtidas do perfil - e todas traziam a mulher em primeiro plano.

"Você percebe que rola uma preferência pela censura por desenhos que mostram mais a sexualidade feminina", explica. "É difícil não acreditar que não seja isso. Se fosse 'perversão' por 'perversão', porque não deletaram o desenho do boquete?" A imagem de um pênis ejaculando em uma boca feminina, que sorri discretamente, resistiu ao corte.

assim pode, @instagram ?

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De onde vem a censura?

A primeira e mais forte polêmica no Instagram aconteceu em 2015 e resiste até hoje toda vez que a imagem de um mamilo é postada. Sim, eles ainda são polêmicos, mas só os femininos.

Em terra de selfies e poses, fotos de topless não têm lugar. Até mesmo as fotos da supermodel Naomi Campbell e da cantora Rihanna, ambas com os seios à mostra, não passaram ilesas do que a rede julgou como imagem imprópria.

A cantora e youtuber Meghan Tonjes sequer tinha postado mamilos, mas ainda assim viu sua foto com uma pose que destacava apenas suas nádegas (de calcinha) ser deletada. Não foi diferente com a capa da revista britânica "Stick and Stones", banida por mostrar duas modelos com pelos pubianos saindo de seus trajes de banho.

Para o Instagram, todas essas imagens entram na mesma lista de conteúdo proibido, onde já estão discursos de ódio, automutilação, organizações perigosas, intimidação e assédio, violência e exploração sexual e atividade criminosas.

Em resposta, as mulheres passaram a questionar as regras e fazer campanhas contra a rede social, por meio da hashtag #freetheniples e imagens irônicas. Virou mania, na época, editar no Photoshop mamilos masculinos em cima dos próprios seios.

O perfil "Genderless Niples" (Mamilos sem gênero) existe até hoje com fotos de mamilos em zoom, dando aos usuários - e à própria rede - o desafio de descobrir se são mamilos masculinos ou femininos. Na pegadinha, a auréola de um homem foi deletado erroneamente.

Com a reação, o Instagram mexeu os pauzinhos e mudou as regras da casa. Fotos? Apenas de amamentação e de cicatrizes de pós-mastectomia. Já a nudez em esculturas e ilustrações - como é o caso de Tainá - passaram a ser liberados. Mas como um mamilo desenhado ainda é um mamilo, e a rede ainda reage muito a denúncias de usuários, nada mudou na prática.

Recentemente, quando a hashtag #sextou foi entendido pelos gringos como um convite para a sacanagem, o CEO do Instagram, Kevin Systrom, veio a público admitir que existe sim uma questão em relação à nudez feminina, mas colocou a culpa na Apple, por ser uma restrição na loja de aplicativos. No fim, a hashtag mais querida do proletariado conectado passou um tempo desabilitada.

"Sabemos que há momentos em que as pessoas podem desejar publicar imagens de nudez de natureza artística ou criativa, mas por vários motivos, não permitimos nudez no Instagram", diz a nota publicada no blog do aplicativo, após o caso. "Nudez em imagens de pinturas e esculturas também é permitida", ressaltou a empresa.

Retratos de Tainá Maneschy - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Tainá Maneschy: "Você percebe que rola uma preferência pela censura por desenhos que mostram mais a sexualidade feminina"
Imagem: Carine Wallauer/UOL
Para tentar resolver a questão, o Instagram passou a testar filtros que impedem visualizar a foto logo de primeira. Mas parece que há um problema na subjetividade ao analisar as publicações. Há um entendimento claro do que seria nudez de natureza artística?

A trajetória do quadro realista "A Origem do Mundo", de Gustave Courbet, parece responder a essa questão. A obra, que retrata uma vagina, veio dos porões da pornografia para se tornar uma das obras mais famosas dos salões do Museu d'Orsay, em Paris.

Já no Facebook, com termos de serviços semelhantes ao Instagram, a obra postada por um professor parisiense fez sua conta ser suspensa de vez.

Até a publicação desta reportagem, o Instagram ainda não havia respondido ao pedido de Tainá para reaver a conta @tainamaneschy. Mas, seguindo o mesmo sentimento que a fez desenhar o corpo e o prazer da mulher, ela já criou um novo perfil, @_tainamaneschy. "Virou uma pulga atrás da orelha: 'ah, não posso fazer? Então vou fazer sim'."

"A Origem do Mundo" (1866), de Gustave Courbet, em foto no Museu Courbet em Ornans, na França - SEBASTIEN BOZON / AFP - SEBASTIEN BOZON / AFP
"A Origem do Mundo" (1866), de Gustave Courbet, em foto no Museu Courbet em Ornans, na França
Imagem: SEBASTIEN BOZON / AFP

SERVIÇO:

Tainá Maneschy, "Dezessete/Dezoito"
Colabirinto
Rua Francisca Miquelina 116, São Paulo
Gratuito