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Gerações do rap nacional se trombam e viram "cypheiros"

O grupo Rimas & Melodias, um dos exemplos de cyphers do rap nacional, mistura vários estilos - Divulgação
O grupo Rimas & Melodias, um dos exemplos de cyphers do rap nacional, mistura vários estilos Imagem: Divulgação

Peu Araújo

Colaboração para o TAB, em São Paulo

18/04/2019 04h02

Se na última década você passeou pelo YouTube para pesquisar sobre rap, muito provavelmente se deparou com algumas tendências desses anos 10. Assistiu a um clipe de rap acústico, viu fãs ostentando roupas caríssimas (aliás, quanto custa o outfit?) e com grande chance se pegou, mesmo que ainda não soubesse o que era, conferindo alguma cypher. Essa reunião de MCs coloca, muitas vezes, uns dez nomes em uma mesma música.

A cypher será tema de uma mesa de discussão no Festival Path, principal evento de inovação e criatividade do Brasil e que em 2019 é apresentado pelo TAB. O Path ocorre nos dias 1 e 2 de junho, em São Paulo.

"Mandume", extensa faixa do Emicida que, além do próprio, reúne Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike, Raphão Alaafin, pode ser um exemplo de cypher. Os quase nove minutos de rimas presentes no álbum "Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa", de 2015, apresentam nomes da cena e lançam versos em torno de um tema: Mandume Ya Ndemufayo, rei do Sul da Angola, o que trouxe um discurso importante de ancestralidade negra. Confira abaixo:

Bom, é importante dar um passo atrás. Se você nunca ouviu falar sobre cypher, vai aqui uma pequena digressão. A etimologia está colada à história do hip hop, mas a palavra tem uma origem bem distante dos guetos nova-iorquinos. "Sifr", em árabe, significa "zero", e o termo era usado pelos "b-boys" e "b-girls" como gíria para as rodas onde as danças acontecem.

Assim como muitas das heranças do hip hop, a cypher é algo que acontece nos Estados Unidos há muitos anos, com os nomes mais importantes do rap circulando nessas reuniões. Abaixo você pode ver, entre outros nomes, Kendrick Lamar numa sessão batizada de "Freshman part 2".

"Oldie", faixa de 2012 do ODD Future, grupo que reunia nomes como Tyler, the Creator e Frank Ocean, também é um bom exemplo desse tipo de som em mais de dez minutos.

No Brasil, algumas tracks ficaram tão famosas que se tornaram grifes. "Favela Vive" e "Poetas no Topo", por exemplo, colecionam milhões de views, polêmicas e uma infinidade de nomes no hall dos cypheiros, tanto que já duelaram pelo posto de melhor produção do gênero. Produtoras, selos e empresas como Pineapple Storm, Além da Loucura ADL, Rapbox e Rimas & Melodias colecionam views e criaram um padrão de qualidade, principalmente visual, que define essa cena musical.

A paulistana Mayra Maldjian, 34, explica um pouco do processo do Rimas & Melodias, projeto que criou em 2017 com Tássia Reis, Drik Barbosa, Tatiana Bispo, Karol de Souza, Stefanie e Alt Niss. "Quando a gente se juntou a nossa ideia era fazer uma cypher só, mas acabou virando um projeto maior. Era mais confortável e rápido lançar um som nessa estrutura, em que cada uma tem uma parte na música", afirma Mayra, que junto de Drik Barbosa e Harlley de Melo Ferreira estará na mesa sobre cypher no Festival Path.

A DJ Mayra Maldjian acredita que as cyphers ajuntam as rappers a se unirem mais - Nice Lima/Divulgação - Nice Lima/Divulgação
A DJ Mayra Maldjian acredita que as cyphers ajuntam as rappers a se unirem mais
Imagem: Nice Lima/Divulgação

Do primeiro vídeo, gravado na Casa Brasilis, em São Paulo, até o momento, o Rimas & Melodias deu passos importantes - um de seus vídeos ultrapassou 1 milhão de visualizações no YouTube. "As mulheres começaram a unir forças para ocupar espaços. E quando a gente vem de bonde, é muito mais pá", afirma Mayra, que dá duas dicas de outros projetos que reúnem mulheres e rimas: o Psicopretas e o Rima Dela.

Muito presente no cenário atual, a modalidade virou uma espécie de vitrine, tanto para novos MCs à procura de likes, público e fama, quanto para os mais antigos, que buscam um diálogo com as novas gerações. O rapper cearense Don L, 38, que já participou tanto dos cyphers tradicionais quanto de uma versão acústica, fala sobre o cenário: "Acho que sempre é uma oportunidade de mesclar públicos. Para um cara talentoso chegando, é uma oportunidade de rimar do lado de um veterano foda e por comparação chamar atenção tipo, 'ó esse moleque rima bem, tem uma entrega foda'. A mesma coisa com questão de visibilidade, às vezes o veterano precisa chegar no público do moleque mais novo".

Don L fala ainda dos problemas que o cypher pode trazer a uma carreira. "O perigo é a repetição, é você não vir com nada novo. Mas aí tem também o delivery, a entrega. Quando você faz um flow (cadência da rima) muito foda, às vezes fica difícil decorar a letra para fazer uma entrega boa no vídeo".

Geralmente você faz aquele verso dois dias antes, grava num dia o áudio e faz o vídeo no outro. Às vezes até tudo no mesmo dia. Vários vão compor no estúdio e já saem para gravar. Então tem esse equilíbrio aí de uma coisa compensando a outra, tem gente que faz um verso fraco, mas fica mais fácil a entrega. E aí cada um joga com o que tem de melhor

Don L, sobre como funciona em geral a produção de uma cypher

O vídeo acima, que tem mais de 8 milhões de visualizações no YouTube, tem versos de Don L e também da paulistana Drik Barbosa - ela já apareceu lá em cima em "Mandume" e é uma das MCs do Rimas & Melodias. "É muito daora que a gente, dentro do rap, consiga fazer essa reunião de MCs falando sobre o seu corre, sobre a sua arte. Tanto por afinidade, como por visibilidade e oportunidade, é uma forma de alcançar outras pessoas e trazê-las para te escutarem", afirma Drik.

Foi incrivelmente importante na minha vida pessoal e profissional. Eu já conhecia algumas das meninas e já era fã, de outras eu já era amiga. É muito gratificante, porque eu aprendi e aprendo muito com elas

Drik Barbosa, sobre a importância do Rimas & Melodias

O veterano rapper cearense Don L pode se unir às novas gerações por meio das cyphers - Larissa Zaidan/Divulgação - Larissa Zaidan/Divulgação
O veterano rapper cearense Don L se uniu às novas gerações por meio das cyphers
Imagem: Larissa Zaidan/Divulgação

Ela aponta qual seria a cypher ideal. "É aquele em que as pessoas se sentem felizes por estarem nele, por rimarem nele, por gravarem o clipe e trocar ideia. E saem de lá renovados para os seus trabalhos. O propósito da cypher é isso, mostrar que o rap tem muita força e vai continuar tendo."

O público, principalmente os mais jovens, anseiam pela reunião de MCs. Essas músicas, que geralmente são lançadas com um clipe bem produzido, movimentam a cena e causam alvoroço na internet. Os influencers do rap lançam vídeos com reações, há tretas, há quem goste, há quem odeie, mas dificilmente pouca gente passa batido por esse fenômeno. Nessa esteira, há ainda um sem fim de músicas lançadas de maneira independente e com menos investimento. E assim como beats, os samples e os Racionais MC's, a cypher já faz parte do rap nacional.

Pela primeira vez, o TAB se une ao Festival Path, o maior e mais diverso evento de criatividade e inovação do Brasil. O Path vai rolar nos dias 1 e 2 de junho, em São Paulo. Confira a programação e compre ingressos aqui.