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Dupla de rap criada no Carandiru se reúne 20 anos depois e celebra história

Os rappers Afro X e Dexter posam em pausa de ensaios para o retorno do grupo 509-E - Carine Wallauer/UOL
Os rappers Afro X e Dexter posam em pausa de ensaios para o retorno do grupo 509-E Imagem: Carine Wallauer/UOL

Peu Araújo

Colaboração para o TAB, em São Paulo

24/06/2019 04h00

"Não é uma volta do grupo. Nós resolvemos nos reunir para celebrar a amizade, o carinho, o respeito, o perdão, o amor. Ponto. É para dar de presente aos nossos fãs que não puderam ver os nossos shows." É assim que Dexter sintetiza o seu reencontro com o parceiro de vida, de cela e de rimas, Afro-X.

A dupla que colocou a cela 509-E da Casa de Detenção Carandiru na história do rap anuncia hoje o retorno para, no mínimo, quatro apresentações em comemoração aos 20 anos de caminhada. "Tem a questão da memória do 509-E. De certa forma nós construímos um legado. Se não der nada eu já tô feliz, porque o principal é isso aqui. E a nossa história não tinha que acabar de outra forma", arremata Afro-X.

Batizada de Vivos, a turnê resgata clássicos dos discos "Provérbios 13" e "MMII DC (2002 Depois de Cristo)" e não tem pretensões de anunciar novos rumos, apenas celebrar. O primeiro show será em São Paulo, na Audio, em 24 de agosto.

Apesar do inegável patrimônio no rap brasileiro, o grupo fez poucas apresentações, 157 em cerca de dois anos. E dos 20 anos de trajetória apenas cinco foram ativos. A parceria acabou no início dos anos 2000 e a dupla passou 15 anos sem se falar. Eles não falam sobre este período. "Foi pouco. Muita gente não viu, não acompanhou, não pode ver a gente no palco", comenta Dexter. Ele seguiu carreira solo, Afro-X lançou o livro "Ex-157, a História que a Mídia Desconhece", atuou no cinema e na televisão e também se manteve sozinho nos palcos.

Retornos de grupos em datas especiais costumam trazer alguma desconfiança de público e crítica. Dexter, com sinceridade, fala sobre a decisão. "O dinheiro se vier, legal, porque a gente vai ter conta pra pagar, mas ele é consequência. E é melhor que a gente ganhe dinheiro com a nossa profissão do que metendo revólver na cara dos outros, que foi o que a gente já fez um dia."

Ele ainda comenta. "Hoje, em vez de eu estar bolando um plano pra fazer um assalto, eu vou ensaiar, levantar um show. Fica aí para que as pessoas pensem. Eu também não tô muito preocupado em ficar provando nada pra ninguém não."

Na roqueira rua paulistana Teodoro Sampaio, o show está sendo ensaiado entre mais de uma dezena de salas de um estúdio todo decorado com pôsteres de bandas de rock e cartazes de filmes como "Taxi Driver". Diante da silenciosa plateia, a risada sinistra da canção "Hora H" ecoa nas caixas de som. Diretamente do complexo carcerário Carandiru.... Na sequência, os pássaros e o beat tenso de Oitavo Anjo ganham o estúdio. Acharam que estava derrotado, quem achou estava errado...

Dexter e Afro X ensaiam em estúdio para o show de retorno da dupla - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Dexter e Afro X ensaiam em estúdio para o show de retorno da dupla
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Dexter canta com a mesma energia em cima do beat feito por Mano Brown com a voz melodiosa de Jorge Ben Jor: Descobri que além de ser um anjo, eu tenho cinco inimigos, sampleada da canção "Porque é Proibido Pisar na Grama". As gaivotas e a tensão, uma das características de todo o disco de estreia da dupla, colocaram esta faixa há 20 anos entre os grandes hits do rap nacional.

O álbum, que na contracapa tem uma foto com as fichas de Dexter e Afro-X, ou de Marcos Fernandes de Omena e Cristian de Souza Augusto, respectivamente, traz também um grupo de produtores de altíssimo nível: Mano Brown, Edi Rock, DJ Hum e MV Bill. Dexter fala sobre esse dream team. "Com toda a humildade do mundo. Até hoje o melhor time de produtores montado para fazer um disco foi do 509-E."

A conversa entre eles costuma ser assim. Dexter comenta, Afro-X relembra outros detalhes. É quase uma jogada entre dois atacantes que tabelam as memórias de uma vida de muita intensidade. E nesse vai e vem do tempo, eles falam sobre os dias no cárcere. "O hip hop nos uniu de verdade, depois o crime nos separa... Por horas, porque eu ia visitar ele sempre", afirma Dexter.

Os dois têm 45 anos e se conheceram ainda na infância, no Jardim Calux, favela em São Bernardo do Campo (SP). "A gente se via na escola, mas não trocava muita ideia. Era só um alô, tal. A gente passa a se falar mais quando começa a ir para os campinhos de terra lá da quebrada", comenta Dexter. "O campinho do Seu João?", ele pergunta ao amigo. "É isso mesmo. Tem aquele campo até hoje. Os outros já eram. Estão acabando com todas as diversões na quebrada", dizi Afro-X.

Dexter dá uma dimensão da amizade entre os dois. "Eles [família de Afro-X] tinham um carro, eram os únicos da rapaziada ali, e eu fui o primeiro a andar no carro dos caras. Eles me levavam pros bailes e depois me traziam também."

Afro-X também dá a sua medida do carinho. "No dia 20 de agosto, que é aniversário da cidade de São Bernardo do Campo, eu fui baleado e fui parar na UTI, quase morri, e o Dexter foi um dos caras que correu juntinho comigo. Naquela época, eram outras ideias, outras fitas. Estranhas de se entender, mas era o que a gente vivia. É bom saber que nos momentos mais importantes da nossa vida a gente tem amigos, e o Dexter correu comigo num fato mil grau. Os caras queriam tirar a minha vida por besteira, por causa de um vinil que nem tava comigo."

O outro MC complementa a tabelinha. "A gente sempre teve apetite pra bater de frente, mas graças a Deus a gente sobreviveu pra tá aqui hoje e contar essa história. Desde a minha infância eu entendo, as ruas da favela me ensinaram isso, que amigos são amigos de verdade. E a gente tem que estar junto até o fim, e eles sempre foram meus parceiros. Na detenção aconteceram muitas coisas onde a roubadinha era pra mim e ele tava lado a lado comigo provando lealdade. Nós dois numa cela com seis caras armados querendo tirar a minha vida. A gente juntinho de costa a costa."

Ambos pegos no artigo 157 do Código Penal (subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência), Dexter e Afro-X cumpriram respectivamente 13 e cinco anos de reclusão.

Fichas de Afro X e Dexter da época em que foram detidos por roubo  - Reprodução - Reprodução
Fichas de Afro X e Dexter da época em que foram detidos por roubo
Imagem: Reprodução

O primeiro a cair foi Afro-X. "Cheguei em 94 na prisão, tinha acabado de fazer 18 anos. Passei por distritos, Dacar 7 (em Santo André), peguei uma rebelião, fui pra [Presidente] Bernardes", diz. Ainda na rua, Dexter conta o que fazia para ver o amigo. "Eu ia visitar ele lá em Bernardes, 12 horas de viagem. Eu colocava a família dele toda no carro."

Dexter aproveita a entrevista para se desculpar com um amigo do passado. "Pô, eu quero pedir desculpa para um amigo meu, o Gilson. Ele me emprestava o carro dele e eu falava que era pra descer com umas gatas pra Santos. Ô, Gilson. Obrigado, meu parceiro. Um dia ele viu a quilometragem e falou. 'Mano, que praia longe da desgraça é essa? Onde você tava?' Aí eu contei a verdade pra ele, ele deu risada pra caralho e falou. 'Não precisava ter mentido, não'."

Pouco tempo depois foi a vez de Dexter rodar. "Eu fui roubar pra pagar o meu disco, porque a gravadora falou pra mim que não tinha mais condições de pagar. Eu tava com o Brown e Edi Rock produzindo meu primeiro disco. Não contei nada para os caras, sempre tive conhecimento, fui na quebrada, peguei uma arma e fui pegar um dinheiro pra pagar esse trabalho. Eu não fui por uma necessidade de comida, nem nada. Não era isso. Era outra coisa."

E em 1999 eles se encontraram na Casa de Detenção mais famosa do Brasil. Dexter se lembra das boas-vindas. "Quando eu cheguei no Carandiru me assustei com o tamanho, é uma cidade, muita gente, 7.500 homens. Mas eu tinha uma carta na manga que era o Afro-X. Ao lado, o companheiro conta sua versão. "E eu já sabia que ele tinha chegado, porque além de terem avisado, todos os bondes que chegavam saíam na listagem. 'Veio de tal cadeia'. E eu falei. 'Mano, o parceiro deve ter vindo nessa fita'. Ele tava em Bragança."

Dexter e Afro X na época em que estouraram como a dupla 509-E - João Wainer/Divulgação - João Wainer/Divulgação
Dexter e Afro X na época em que estouraram como a dupla 509-E
Imagem: João Wainer/Divulgação

O diálogo que abre a faixa "Triagem", no primeiro disco da dupla (Se tiver inimigo já avisa logo e vai pro cinco, certo?), é uma breve descrição da vida naquele lugar, conta Dexter. "É bem aquilo mesmo, aquilo é realidade. Quando você tá na fila, os caras já falam logo. 'Aê, aqui é diferente, parça. O negócio aqui é outro'. E ficava um monte de cara amontoado dormindo em papelão. Mas se você tem um amigo, o cara te traz uma bolacha, uma coberta." A volta às rimas atrás das grades foi um caminho natural. "Fazia sentido a gente dar continuidade no que a gente sonhou na quebrada", completa.

Uma cela com vista para a avenida Paulista

A cela 509-E, localizada no 2º andar do Pavilhão 7, ficou imortalizada para o rap e é uma das mais conhecidas do Complexo do Carandiru, que foi demolido para dar lugar ao Parque da Juventude. Ela foi também o lugar em que, de certo modo, Marcos e Cristian encontraram alguma paz.

No Carandiru, a direção perdeu o direito de posse das celas para os próprios detentos. Cada xadrez tinha dono e valor de mercado, sendo negociado para aluguel e venda. Foi assim que a dupla chegou à 509-E. Dexter conta que sua mãe e o pai de Afro-X ajudaram e eles conseguiram comprar a cela, "com quase vista para o mar". "De frente pra Cruzeiro [do Sul, avenida em que se localizava o Carandiru]. A gente via pedestres, transeuntes".

A bola volta pra Dexter: "Tinha uma vista privilegiada, a gente via as torres da Paulista. Era muito louco poder ver aquilo. Nas noites de Natal era a gente lá olhando pela janela. Era muito bom morar no 509-E, a gente montou um xadrez". "Muito louco", completa Afro-X.

Afro X e Dexter com a equipe de DJs que estão trabalhando com eles a volta do grupo 509-E - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Afro X e Dexter com a equipe de DJs que estão trabalhando com eles a volta do grupo 509-E
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Dexter volta com o raciocínio. "E mais do que ser louco, porque a gente tinha um som e tal. Mais do que os pertences que a gente conseguiu trazer pra cela, nós conseguimos instalar nesse lugar uma aura de respeito, amor e carinho através da música e da leitura. Os caras que eram liderança na prisão, que viviam cheio de problemas, iam na nossa cela pra conversar com a gente e descansar."

Ele descreve um diálogo com algum líder do presídio:

- Pô, posso dar uma dormida na cama aqui?

- Ô, cai aê, Jão.

E complementa. "A gente criou uma atmosfera de produção muito foda. A gente sempre tava escrevendo, lendo, ouvindo música. A gente não tinha tempo pra pensar em outras coisas."

E neste pequeno espaço Afro-X e Dexter fizeram um clássico do rap brasileiro. Dexter arremata a ideia sobre as obras em "Provérbios 13". "O nosso disco é justo. Tem cara que escreve rap e apela. É diferente. Conheço vários que nunca passaram por uma cadeia, não sai nem de casa pra ir num barzinho na esquina, não joga um bilhar, não joga um futebol e escreve horrores. É mentira."

Ele continua. "O nosso disco era uma realidade, mas a gente conseguia falar de amor dentro dessa realidade". O disco, que ficou pronto em apenas três meses, teve as vozes das 12 faixas gravadas em apenas quatro dias. Eles saíam de noite, com escolta de três guardas, e voltavam para as celas depois de cada sessão de estúdio.

Dexter conta ainda sobre um dos pilares para a realização deste trabalho. "O que chancelava a nossas idas e vindas foi o trabalho que a [atriz] Sophia [Bisilliat] fez lá. Ela abandonou a carreira e foi desenvolver trabalhos em presídios, porque ela queria que o futuro fosse mais ameno para todos nós. Nessa daí, ela descobre a gente, a gente descobre ela, e ela aprova o nosso trabalho". A atriz por duas décadas promoveu cursos e descobriu talentos no Carandiru.

Com o apoio de Sophia, de "5.000 manos e não fulanos" (como cantavam em "Hora H") e com a experiência de quase duas décadas em liberdade, o 509-E se reúne sem grandes pretensões. O rap, que ganhou fama nacional da virada do século com a temática prisional ("Diário de Um Detento", dos Racionais MC's é o maior hino), mudou muito nesses anos. Mas a força das letras, como as do 509-E, não acaba nunca, afinal, a população brasileira atrás das grades só aumentou nesse período.