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Por que o rap ficou romântico no Rio e toca no morro e no carro do playboy?

Matuê, DK e MC Hariel gravam o clipe do Poesia Acústica na Prainha, na zona oeste do Rio - Carlos Eduardo Andrade/Divulgação
Matuê, DK e MC Hariel gravam o clipe do Poesia Acústica na Prainha, na zona oeste do Rio Imagem: Carlos Eduardo Andrade/Divulgação

Matias Maxx

Colaboração para o TAB, no Rio de Janeiro

05/07/2019 04h01

Se você é jovem, carioca e periférico você pode pular pra terceira parte, porque certamente já ouviu falar do Poesia Acústica (ou PA), e já se encantou (ou perdeu a paciência, sei lá), com o rap romântico que invadiu o Rio, do bluetooth de bocas de fumo até o interior dos SUVs da playboyzada.

Agora se você nunca ouviu falar a respeito, o título da série que reúne MCs de maior sucesso da net brasileira deve soar tão cafona quanto os versos: "Quando um abraço apertado se encaixa é como se o mundo parasse ali" do PA#2 ou canalha como, "Você perdendo tempo com esses caras fracos que cansam na primeira / E eu transando com mulheres experientes, tipo Susana Vieira" do PA#3.

Mas é só chamar as sete edições no repeat para ter certeza que a série traduz o espírito de uma geração acostumada a brigar e apanhar, que aproveita seus minutos de paz para ouvir canções de amor.

Basta olhar as músicas mais tocadas nas rádios brasileiras para se ter certeza de que a sofrência vende, e essa é uma das razões pelo qual "Meu quarto ainda tem seu cheiro / de vazio eu entendo" do PA#3.

Composição via Whatsapp

O Poesia Acústica é uma sequência de cyphers (quando vários MCs rimam sobre a mesma batida) publicadas no canal PineappleStormTV, nascido da parceria da marca Pineapple Supply e o estúdio Brainstorm.

A marca que traz como logo um cérebro chapado de maconha disfarçado de abacaxi foi criada pelo carioca Paulo Alvarez em 2015. Em maio de 2017 foi lançado o primeiro Poesia Acústica num formato inovador, com três artistas cantando sobre uma base simples de violão, como se a galera tivesse rimando em volta da fogueira, em vez de pedir pra ele "tocar Raul".

A realização de um PA começa a partir de uma troca de ideia entre os envolvidos num grupo de whatsapp, depois os MCs recebem o beat e compõe sua parte. Alguns já entregam sua parte pronta enquanto outros gravam no estúdio para depois mixar.

Os oitos convidados do Poesia Acústica gravam em cenário praiano - Matias Maxx/UOL - Matias Maxx/UOL
Os oitos convidados do Poesia Acústica gravam em cenário praiano
Imagem: Matias Maxx/UOL

A cada nova edição do Poesia Acústica as bases ficam mais elaboradas, e até oito MCs de diferentes gerações e estilos se reúnem. O PA#6, lançado em janeiro já tem mais de 150 milhões de visualizações, enquanto o PA#2 ultrapassa os 300 milhões.

Embora a maioria dos artistas participantes estejam na casa dos 20, muitos já são gigantes do hip-hop brasileiro permitindo-se fazer algo diferente e externar um sentimento que não seja só crítica e ódio social. Alguns desses nomes de destaque são Filipe Ret, Djonga, MV Bill, Diomedes Chinaski, BK, Choice, Delacruz, Froid, Don L e Xamã dentre outros.

Colei na gravação

Tive a oportunidade de conferir a gravação do clipe do Poesia Acústica #7, que estreia dia 5/7 (conhecido como hoje) com seu maior e mais eclético time: Kevin o Chris, Negra Li, DK, Ducon, Chris, MC Hariel, Vitão e Matuê promovendo um belo encontro entre funk carioca e paulistano, rap consciente da nova e velha escola, trap e pop anasalado.

A gravação de "Céu Azul" rolou num quiosque na Prainha, paradisíaco point de surf na Zona Oeste carioca espremido por uma mata virgem e o agitado oceano atlântico.

A gravação estava marcada para começar às 13h, horário em que nem metade dos artistas tinha chegado. A Negra Li se instalou num canto com seu maquiador. Enquanto isso o resto da rapeize estava com aquelas bolsas a tiracolo recheadas de itens essenciais para um MC: seda, piteira, cumbuca, tesoura e tabaco.

Seguindo a tendência da juventude que leva a chapação a sério a maioria da galera apertava baseados de hash com tabaco, até que o trap star cearense Matuê brotou com cheirosas flores do nordeste que ele fechou numa folha de tabaco (o conhecido Blunt). É uma geração que mistura rap com romantismo... e Cannabis com tabaco.

A régua e a vaidade masculina

Alguns artistas já se conheciam, outros não, mas a fumaceira ia quebrando o gelo. Entre uma baforada ou uma selfie com as tias do catering a galera ia intercambiando histórias de turnês, macetes para dormir no busão e outras técnicas de sobrevivência na estrada.

Até que apareceu um barbeiro na jogada pra deixar na régua o cabelo de um deles. Aí ferrou: todo mundo quis fazer o pezinho e a barba, formou uma fila e para desespero da produção (e do fotógrafo vendo a luz cair a cada minuto) a filmagem atrasou ainda mais.

Cabeleireiro acerta o corte de Matuê antes da gravação do Poesia Acústica 7 - Matias Maxx/UOL - Matias Maxx/UOL
Cabeleireiro acerta o corte de Matuê antes da gravação do Poesia Acústica 7
Imagem: Matias Maxx/UOL

A vaidade masculina ficava mais escancarada ainda na montagem dos figurinos. Como é praxe em todas as edições do cypher a Pineapple disponibilizou peças de sua marca para os MCs que por sua vez trouxeram malas de roupas próprias e tênis zerados para combinar. Enquanto isso a Negra Li estava lá linda e plena havia horas.

Finalmente a gravação. Começou com um beat que lembrava o clássico batidão carioca. O funkeiro paulistano MC Hariel puxou um grito de "Liberdade para o Rennan da Penha". Receoso em parecer oportunista o MC se justificou: "Nem conheço ele pessoalmente, mas quero deixar bem claro que estou pedindo a liberdade dele pelo funk, que há tempos é um ritmo que sofre preconceito e não é brincadeira o que eu estou falando.

"Já morreu MC só por cantar funk, por cantar o que vê e o que tem no lado dele. Quem tinha que ir preso é o governante que exclui todas as oportunidades de quem mora na favela"
MC Hariel, funkeiro paulistano


Desde o começo do ano, o governo de Wilson Witzel (PSC) vem reprimindo os bailes funks, principalmente o Baile da Gaiola, que acontece no Complexo Alemão. Operações policiais invadiram o baile em fevereiro e março, quando o show foi interrompido e os músicos do PA foram levados junto de moradores e trabalhadores para uma casa onde por três horas todos tiveram suas fichas levantadas e enfrentaram tortura psicológica até serem liberados. Semanas depois o DJ Renan da Penha foi preso acusado de associação ao tráfico.

Funkeiro também é artista

Hariel ficou feliz com a sua participação. "Não é todo MC de funk que participa disso porque é um bagulho que exige que você tenha uma musicalidade a mais. Os caras soltaram a batida e ficou muito a cara de cada um, como se cada um tivesse visto a batida de uma forma e colocado ali na música."

Um a um os demais MCs vão revezando suas letras de romance, coração partido, canalhice e putaria. Como nas edições anteriores tem sempre uma mina fazendo dobras, o refrão e uma participação. Desta vez a participação feminina veio na potência vocal e ideológica da veterana Negra Li, que manda logo um rap papo reto citando um recente e vergonhoso episódio da história das ocupações militares do Rio de Janeiro; "Tey tey tey como você explica 80 tiros? / Sei sei sei são policiais ou são bandidos?".

"Eu dei uma olhadinha nos outros vídeos e disse 'caramba que coisa louca', essa nova geração tem muito talento", conta a rapper, feliz de estar envolvida no projeto, "eu tinha acabado de compor uma música de amor, que ainda não saiu. Daí eu falei, puta quero fazer algo diferente. Mesmo sabendo que o projeto é mais falando de amor eu quis dizer o que eu disse." Com muito bom humor Li conclui: "Acho que ficou tudo a ver comigo, e eu fiquei com livre acesso porque eu sou a única mulher do projeto, então, eu posso tudo, vou fazer diferente dos caras."

A poesia e os bailes funk

Sempre de óculos escuros e atrás de uma pilha cada vez maior de latinhas de cerveja estava o rapper carioca Ducon, em sua terceira participação no projeto que tem turnê por todo Brasil. Existem dois formatos, um compacto com apenas a série Poesia Acústica (cada uma tem em média 8 minutos), e outro maior com mais canções solo de cada artista. Quando possível, rolam participações. Já teve show em Belo Horizonte com participação do Djonga, e no Nordeste com o Luiz Lins e o Diomedes Chinaski.

A maioria dos shows de 2018 aconteceu em favelas e bailes funks do Rio de Janeiro, "sem exagero, a gente fez uns cem shows em comunidade. Assim que começou a explodir a gente tocou em muito lugar, tanto do Comando Vermelho quanto de Terceiro Comando" conta Ducon.

O Poesia Acústica bate forte numa zona cinzenta da cidade partida, de dicotomias bem mais complexas do que preto e branco (ou favela e asfalto), uma vez que em muitos bairros poucas ruas dividem esses dois mundos, e a praia é visitada por ambos.

Negra Li é maquiada antes da gravação na Prainha, no Rio de Janeiro - Matias Maxx/UOL - Matias Maxx/UOL
Negra Li é maquiada antes da gravação na Prainha, no Rio de Janeiro
Imagem: Matias Maxx/UOL

Nas favelas cariocas a molecada tem um molejo diferente do resto do país, basta ir num baile funk ou acessar os vídeos de passinho, pra se atestar que o jovem carioca permite-se dançar e rebolar de um jeito inimaginável num fluxo paulistano.

Nesse contexto onde a maré de toda uma comunidade pode mudar a qualquer hora sob uma rajada de fuzil, a sinceridade das letras e o minimalismo despojado dos clipes do Poesia Acústica convencem o jovem carioca muito mais do que os iates, mansões e carrões alugados dos clipes da Kondzilla.

Quem evoca os fundamentos do hip-hop para chamar de "Nutella" o som do Poesia Acústica só demonstra um profundo desconhecimento da realidade das favelas e periferias cariocas, e porque não, brasileiras. Idolatrados por muitos jovens e criticados por alguns puristas, é possível comparar o case do Poesia Acústica com a maneira que o drama adolescente das letras de Chorão bateu (e continua batendo) para uma geração de moleques de classe média e média baixa, além de terem sido para estes a porta de entrada para lendas do rap como RZO, Sabotage, Black Alien e Speed Freaks.

Infelizmente com a crescente criminalização e perseguição aos bailes funk promovida pelo governador Witzel, o Poesia Acústica teve de diminuir sua agenda dentro das comunidades cariocas e encarar a triste realidade que artistas de funk enfrentam há décadas.

A vida na favela segue, um dia após outro dia. E o jovem periférico que descarrega sua fúria ouvindo proibidão ou rap raiz, não sobrevive sem sofrer de amor também. Entre um breganejo ou pagofunk, aquela molecada do Poesia Acústica, de boné e tatuagem na cara, igual a ele, é escolhida para embalar seus sonhos e momentos apaixonados. Afinal, como canta Tiago Mac no PA#3: "Quem é que tem coragem pra falar de amor? / Quem é que tem coragem de ser o que é?"

Errata: este conteúdo foi atualizado
Uma versão anterior do texto errou ao informar que o lançamento do clipe do Poesia Acústica #7 era 7/9. A data correta de estreia é 5/7. O erro foi corrigido.