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Ouviu falar em afropunk? A cena negra global e alternativa vem ao Brasil

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Imagem: Felipe Maia/UOL

Felipe Maia

Colaboração para o TAB, em Paris

09/08/2019 04h01

Entre personalidades do movimento negro brasileiro, não é novidade: o festival norte-americano Afropunk terá uma edição em território nacional em 2020. O evento começou em 2005 com apenas um palco para algumas dezenas de pessoas em Nova York. Hoje, o festival reúne movimentos e tendências afro nos Estados Unidos, Reino Unido, França e África do Sul. Muito além da celebração, encontros desse tipo refletem a força de uma juventude negra cada vez mais urbana, global, esteticamente política e majoritariamente feminina.

Essas são características dos movimentos culturais estabelecidos na África ou na diáspora negra pelo mundo. Gêneros como o house de Chicago e o funk carioca são vanguardistas no uso de tecnologias. Nomes como o artista plástico Basquiat e o poeta senegalês Theodor Senghor sempre vislumbraram um outro mundo negro em suas obras. O protagonismo do corpo, a liderança das mulheres e a transnacionalidade vistas hoje, porém, fazem que eventos como o Afropunk sejam pano de fundo para uma juventude negra consciente de seu papel na sociedade - da luta contra o racismo à autoafirmação.

A edição mais recente do Afropunk foi realizada em Paris, capital da França. Se o cartaz dos shows vendia nomes como Janelle Monáe e Lyzzo enquanto atração principal, o chão - os corredores, o espaço entre uma e outra barraquinha de roupas e acessórios - era onde a juventude negra reclamava seu protagonismo. Pautas personificadas nessas artistas, tais como a liderança da mulher negra e a atitude "body positive", ganhavam vida no público do evento que estava ali para ver, mas também para ser visto, questionado e conhecido.

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Túnicas com tradicionais motivos africanos se misturavam a óculos escuros de grifes como Fenty, da cantora Rihanna, ou acessórios assinados por Virgil Abloh, primeiro estilista negro a assumir a Louis Vuitton. Maquiagens uniam referências de tribos e países distantes, ainda que próximos em um mesmo continente africano ou latino-americano. Tecidos simples ganhavam sofisticação em recortes e montagens complexas - tudo acompanhado de penteados arquitetônicos.

"O Afropunk parte de uma expressão de liberdade ao dar oportunidade para que essas pessoas sejam ouvidas", explica Matthew Morgan, co-fundador do festival. "Não tem um único estilo: é uma filosofia".

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A essa filosofia caberia o nome afrofuturismo. Cunhado na década de noventa por acadêmicos norte-americanos, o termo hoje cruza diversas vertentes, teorias críticas e práticas da cultura negra contemporânea. Temas como diáspora, pan-africanismo, racismo e feminismo negro, investigados a fundo por pesquisadores e pesquisadoras do Brasil e do mundo, se traduzem também em roupas, acessórios, maquiagens, penteados e atitudes de uma juventude urbana, conectada ao Instagram e às novidades musicais do momento.

"Seja por meio da literatura, das artes visuais, da música, das organizações de base, os afrofuturistas redefinem a cultura e as noções de negritude para hoje e para o futuro. (...) O afrofuturismo combina elementos de ficção científica, ficção histórica, ficção especulativa, fantasia, afrocentricidade e realismo mágico com crenças não-ocidentais", explica Ytasha Womack no livro "Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture", sem edição em português.

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"O Afropunk é um festival dentro do afrofuturismo", diz Magá Moura, a fashionista @magavilhas. "É a ideia de explorar outras estéticas nossas, dos pretos, desde o cabelo colorido, acessórios, como essas coisas de metal, até esses looks que saem do comum."

Os cabelos são o principal ponto de referência dessas estéticas. Sempre no topo, trançados, coloridos, propositalmente armados ou milimetricamente cacheados, eles encarnam o cartão de visitas de homens e mulheres negros. Hoje uma assídua frequentadora do Afropunk, reconhecida e requisitada em cada canto do festival, Magá conta que seu primeiro contato com o evento surgiu em 2014, quando pensava em fazer tranças rosas - o cabelo já era uma forte representação da negritude para ela.

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"Eu estava procurando por box braids [várias tranças soltas num penteado, muitas vezes feitas com cabelo sintético pra dar comprimento e efeitos de cores] e achei uma foto de uma menina que estava no Afropunk, e aí eu cliquei e comecei a ver um monte de fotos incríveis!", lembra Magá. "Quando fui a primeira vez, em Nova York, eu pensei: cheguei em Wakanda (referência à cidade da ficção Pantera Negra)".

A concepção de uma Shagri-lá ou El Dorado negra traduzida em cabelos, roupas e adereços se nutre de uma ancestralidade revisitada. O retorno às origens não é feito de maneira folclórica ou exótica, mas, sim, por meio de uma transformação do que aquele passado poderia ter gerado. Um mundo novo onde ritos e motivos antiquíssimos encontram tecnologias digitais, por exemplo.

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"Esse movimento sempre existiu por meio de teorias como pan-africanismo e teóricos como Marcus Gravey. E no Brasil eu vejo esse afrofuturismo faz tempo com o maracatu e o manguebeat, por exemplo", diz Keita Mayanda, empresário angolano que frequenta o Afropunk há algumas edições. "Hoje, muitas pessoas têm se conectado à ideia afro como sendo algo cool, mas é algo que existe faz tempo, e essa ideia vai continuar apesar de qualquer coisa."

Mayanda faz parte de um grupo minoritário no Afropunk: homens. Matthew Morgan estima que entre 60% e 70% do público do festival seja formado por mulheres. Esse número se repete na Batekoo, festa nascida em Salvador que, hoje, é incontornável para a cultura urbana negra e LGBT brasileira.

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"As mulheres se identificam e abraçam a questão racial", explica Artur Santoro, um dos organizadores da Batekoo. "A gente sabe que o debate de gênero e feminismo avançou muito nos últimos anos e, pensando numa via interseccional, as mulheres têm uma empatia maior com essas questões."

A Batekoo será a primeira atração brasileira a fazer parte do Afropunk em Nova York, cuja próxima edição será realizada agora em agosto. Se ambos os eventos dialogam dentro da cultura negra contemporânea, há também realidades inerentes a cada país. Artur acredita que o funk, por exemplo, é uma música que deve ser considerada como representativa da juventude negra brasileira.

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Ele também observa que a comunidade LGBT negra tem um importante espaço de representatividade nesse contexto. Um universo vivido em redes sociais e debates diários, mas, também, na pista de dança e nos espaços de festa.

"Existem maneiras de fazer um produto cultural e refletir essas questões raciais", diz Artur. "E se a intenção é valorizar narrativas negras, você consegue criar um produto que está de acordo com a luta antirracista."

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