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Futuro exige homem multidisciplinar para driblar automatismo do algoritmo

Criança brinca em tapete digital montado pelo artista multidisciplinar Miguel Chevalier - Reuters
Criança brinca em tapete digital montado pelo artista multidisciplinar Miguel Chevalier Imagem: Reuters

Jacqueline Lafloufa

Colaboração para o TAB, em São Paulo

20/08/2019 04h01

É muito raro que algoritmos, sequências de códigos que executam uma função automaticamente, saibam lidar com o que foge ao padrão ou é inesperado. "Existe a chance de que o viés dos algoritmos nos leve a tratar as pessoas de forma injusta", destaca o relatório de tendências 2019 da Fjord, braço da consultoria Accenture. O alerta já tinha sido dado por Cathy O'Neil em 2016, quando ela defendeu em seu livro "Armas de Destruição Matemática" que opiniões e estereótipos costumam estar embutidos nos algoritmos.

Um caso famoso de algoritmo estereotipado foi o reconhecimento facial errôneo do Google Photos, descoberto por Jacky Alciné em 2015, que reparou que seus amigos negros estavam sendo identificados como "gorilas" em suas fotos. O Google se desculpou, alegando que a tecnologia de etiquetamento de imagens ainda não era perfeita, mas até o ano passado o problema continuava não resolvido e muitas faces negras ainda não são identificadas na plataforma.

Inclusão como solução

Será que se houvesse desenvolvedores ou bases de dados mais diversas, um erro tão terrível como esse teria acontecido? Talvez não. Gustavo Abreu, designer de conteúdo e líder de inclusão e diversidade da Fjord, acredita que uma solução possível é trazer o diferente para dentro dos times. "Não tem como pedir a um homem, branco e hétero ser menos enviesado. Precisamos pensar, ao recrutar ou formar uma equipe, qual é o problema e quem vamos colocar para resolvê-lo", analisa. Segundo Abreu, essa inclusão deve ser além da demográfica (que considera gênero, faixa etária ou classe socioeconômica), abrangendo também a diversidade cognitiva (jeitos de pensar) e experiencial (experiências anteriores).

Diante da pressão pública por mais diversidade nas corporações, grandes empresas como Amazon, Google e Facebook apostaram na indicação de executivos ou equipes dedicadas a garantir a inclusão e diversidade. "É lidando com a diversidade, com a pluralidade cultural, rompendo a matriz colonialista, eurocêntrica, branca e ocidental dos currículos que vamos solucionar questões que não são parte do repertório ocidentalizado das disciplinas", opina Carlota Boto, professora de Filosofia da Educação na USP (Universidade de São Paulo), que vê o surgimento de um movimento contrário à divisão disciplinar do século 18. "Para ser capaz de responder problemas contemporâneos, vivemos um movimento de entrelaçamento das diferentes áreas", explica, apontando que a capacidade interdisciplinar passará a ser cada vez mais desejada pelo mercado de trabalho.

Só a tecnologia não vai dar conta

Mais do que colocar um app na rua, desenvolvedores estão sendo pressionados a pensar nos impactos que suas inovações vão trazer. Em apresentação no festival SXSW, Jesus Ramos, especialista em aprendizado de máquina, comentou sobre o dilema que enfrentou ao publicar o app Revisa Mi Grieta, capaz de identificar se uma trinca em um edifício apontava danos na estrutura. "Um falso positivo levaria uma família a buscar assistência sem necessidade, enquanto um falso negativo poderia manter pessoas em um edifício condenado", resumiu. A experiência fez com que ele detectasse a necessidade de incluir nos processos profissionais de outras áreas ou disciplinas. "Nosso time hoje conta não apenas com matemáticos e programadores, mas também engenheiros e filósofos", ressaltou.

As inovações futuras também precisarão de perfis diversos trabalhando juntos em prol de uma solução, como é o caso da impressão 4D, que cria materiais capazes de se transformar em outros formatos. Os grupos de estudo da área costumam reunir profissionais de diversas áreas, conforme o material que tentam transformar. "Mesclamos engenharia de materiais, ciência da computação, design e práticas artísticas. Os profissionais que atuam conosco são multifacetados, com conhecimento da sua área de especialidade, mas também sabendo se comunicar no 'idioma' de outros campos", detalhou Lining Yao, da Universidade Carnegie Mellon, uma das pioneiras da impressão 4D no mundo.

No fim das contas, não é como se todos os profissionais fossem precisar se tornar programadores ou engenheiros de materiais, mas será preciso estar aberto a interagir e compreender as recomendações dos profissionais de diferentes especialidades, como a moda e a gastronomia. "A parte mais difícil é conseguir um bom equilíbrio entre a profundidade e amplitude desse conhecimento", complementa Yao.

O fim do top-down

Reunir gente tão diferente em uma mesma sala em busca de soluções é uma tarefa que precisa de habilidade na gestão das diversidades. "Haverá cada vez menos espaço para individualismos, porque as competências técnicas deixam de ser predominantes, dando lugar à sabedoria dos grupos multidisciplinares com colaboração e apoio mútuo", analisa Glaucy Bocci, diretora de talentos da consultoria Willis Towers Watson.

Em uma configuração que aposta mais em habilidades como empatia e a gestão saudável de conflitos, caem por terra os achismos ou as famosas decisões "top-down", quando um executivo de alto nível hierárquico cascateia uma determinada solução. Essa é uma das razões para popularização das metodologias ágeis, que auxiliam no processo de colaboração e sinergia entre equipes. "Para abrir espaço para ouvir vozes diferentes, os métodos ágeis usam mapas de empatia, que ajudam a captar a necessidade dos envolvidos e traduzir isso em um sistema que tenha mais sucesso", sintetiza Anderson Mendes, diretor da consultoria BRQ e especialista em metodologias ágeis.

Novos jeitos de aprender e de ensinar

As necessidades do mercado de trabalho vão respingar lá na educação básica, que hoje tem como principal mensagem o investimento em conhecimento mais amplo e diverso. "Claro que vamos precisar de experts no futuro, mas a especialidade deles precisará ser construída em um molde mais amplo", explica Marjo Kyllönen, secretária de educação da cidade de Helsinque, na Finlândia. Especialista em educação para o futuro, Kyllönen defende que o conhecimento de hoje não vai dar conta das capciosas situações da atualidade, o que vai exigir que pensemos de forma mais ampla para resolver nossos problemas.

De olho nessa tendência, algumas escolas já estão implementando formatos pedagógicos multidisciplinares, voltados para a resolução de problemas. É o que acontece na escola Concept, onde os alunos aprendem conteúdos curriculares como ciências, matemática, história, inglês, arte e música em um projeto que acontece durante o ano letivo. "Essa interdisciplinaridade ajuda a costurar os conhecimentos e aplicá-los nos ambientes em que as crianças circulam", explica a diretora, Priscila Torres. A intenção é que a colaboração e a mistura das disciplinas não seja um evento inusitado no calendário escolar, mas faça parte da cultura do aprendizado.

Quem já surfa essa onda há algum tempo são os professores da educação básica, que já têm defendido - e trabalhado sob - a bandeira da multidisciplinaridade. "Já temos projetos de pesquisa em áreas fronteiriças, então a minha impressão é que os educadores já estão transitando por esse universo, é uma tendência na formação dos professores", aponta Carlota Boto, da USP. O próximo passo, segundo ela, seria chegarmos a uma transdisciplinaridade, quando passaríamos a compreender o mundo através de uma totalidade de experiências, sem estabelecer fronteiras entre os diferentes campos do conhecimento. "E não apenas para resolver problemas, mas para pensar a realidade através de uma nova lente", vislumbra a professora.

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