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Com 'Megxit' rolando, para que serve (ainda) a família real britânica

Família real durante o Trooping The Colour 2019 - Chris Jackson/Getty Images
Família real durante o Trooping The Colour 2019 Imagem: Chris Jackson/Getty Images

Letícia Naísa

Do TAB

18/01/2020 04h00

Na disputa por poder no início da formação dos Estados nacionais, alguém limitou fronteiras, levantou um castelo e afirmou que aquele seria seu reino. Os tempos mudaram, reis e rainhas foram afastados do comando e, em alguns casos, brutalmente assassinados. Os monarcas deixaram de ser o Estado. O Estado é o povo, oras.

Em pleno século 21, a monarquia britânica é uma das poucas que se mantém firme no poder — porque algum poder ela ainda tem, ou mais ou menos isso. Em 8 de janeiro de 2020, o príncipe Harry e Meghan Markle anunciaram que querem deixar de ser "membros sênior" da família real e pretendem abrir mão de privilégios. Apesar de ser o sexto na linha de sucessão, a decisão do casal dividiu a opinião dos britânicos e reacendeu a velha pergunta: o que os membros da família real fazem, mesmo?

Bem, a rainha reina, mas não governa. Ou, como afirmou o Harold Wilson da ficção na série "The Crown", "nosso trabalho é acalmar mais crises do que criamos". Em um episódio da terceira temporada, a rainha Elizabeth 2ª demora a responder a uma tragédia, e se recusava a mostrar indignação e tristeza em público porque "não foi feita para chorar". Mas tudo indica que o papel dela é ser um espelhinho emocional da nação, além de agir como soberana generosa: animar o povo em transmissões televisivas com mensagens de amor e paz, sorrir e acenar para o público e apoiar causas sociais relevantes são as principais funções da família real britânica hoje.

É tudo encenação, então? Os tempos de manda-chuva se foram há séculos e o Reino Unido perdeu cada vez mais centralidade no xadrez mundial, ao longo do século 20. Eles são muito ricos, mas não apitam muito. À rainha (ou ao monarca da vez) sobrou o papel de chefe da Igreja Anglicana —- aquela que foi criada por um rei para poder se casar de novo e romper com Igreja de Roma — e à realeza sobrou o papel de apaziguadora de crises e defensora dos fracos e oprimidos. Pelo menos, na frente das câmeras.

Mas eles fazem alguma coisa de fato? Sim e não. A família real britânica coordena e está envolvida com pelo menos 3 mil instituições de caridade. Ao príncipe Harry coube a responsabilidade de apoiar programas de reabilitação de veteranos do Exército britânico, como o evento esportivo The Invictus Games, enquanto Meghan Markle colabora com a Organização das Nações Unidas para incentivar a participação e liderança femininas na política. O casal também apoia iniciativas de combate a estigmas de doenças mentais e organizações que promovem a preservação da biodiversidade. Cada membro da família real tem uma porção de causas a endossar e apoiar.

Imagina a agenda... A família real viaja muito em nome da rainha. Em média, o grupo participa de 2 mil eventos pelo mundo, todos os anos. As viagens, no entanto, não são reais missões diplomáticas. Atualmente, as crises resolvidas pela família real não costumam ter tanta relação com política. Ao longo do século 20, contudo, o papel da família real próxima à rainha era mais ativo porque o mundo precisou se refazer após duas guerras mundiais — ambas resultado de séculos de colonialismo europeu, razão de ser do domínio britânico pelo mundo. Então, bater bola com os ricos e poderosos é algo que a Casa de Winsdsor faz bem. Por exemplo: a princesa Margaret (irmã de Elizabeth 2ª) e o marido jantaram com o presidente americano Lyndon B. Johnson na Casa Branca em 1965, com a intenção de conseguir um empréstimo para o Reino Unido. A grana foi concedida no ano seguinte. O político britânico Liam Fox, do Partido Conservador, acreditava que o casamento de Harry com a atriz Meghan Markle poderia estreitar laços entre Reino Unido e Estados Unidos, mas na prática não houve muita diferença. A maior preocupação política no país continua sendo o Brexit, não o Megxit.

Mas qual é o recado do Megxit? No limite, a saída do jovem casal da realeza demonstra que Harry e Meghan estão descontentes com a instituição monárquica engessada do Reino Unido. O próprio casamento representou uma quebra nas expectativas em torno de uma "princesa": Markle é divorciada, norte-americana, negra e abertamente feminista.

Elizabeth é de direita ou de esquerda? Em mais de 60 anos de reinado, a rainha Elizabeth 2ª trabalhou com dezenas de primeiros-ministros. Seu papel em uma monarquia parlamentarista, no entanto, é respeitar os assuntos políticos do país e se manter neutra. Essa regra deve ser seguida por todos os membros da realeza. Na teoria, a família real tem direito a votar, mas escolhe não participar das eleições. Entre seus direitos relacionados à política do país, a rainha também pode vetar leis, já que elas dependem de sua aprovação depois de referendadas pelo Parlamento, mas um veto real não acontece desde 1707.

Deus salve a rainha! A família real se mantém no poder graças à poderosa imagem que a monarquia construiu sobre a identidade nacional britânica e a estabilidade do país. É fato que eles fazem parte da indústria do turismo na Inglaterra, são como "cartões-postais". Apesar dos pesares (principalmente as perdas financeiras), metade dos britânicos simpatiza com a rainha. Entre os mais velhos, acima de 55 anos, 77% apoiam a família real. E, curiosamente, entre os jovens a estatística se mantém: 75% de apoio. É difícil separar as coisas.

Mas amigos, amigos... Negócios à parte? Apoiar o símbolo da monarquia muita gente apoia, mas o bicho pega quando se coloca a mão no bolso. Cada cidadão britânico desembolsa pelo menos £ 1 (R$ 5,42) por ano para sustentar a família real. Além disso, a realeza tem propriedades espalhadas por todo o país e a rentabilidade delas vai para o Tesouro. Cerca de 15% a 25% dessa grana é repassada aos ilustres aristocratas para custear a monarquia. Boa parte dos críticos à Coroa aponta que esse dinheiro deveria se manter com o Estado, ao invés de pagar o "salário" da nobreza.