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Voluntários brasileiros reconstroem a 'terra arrasada' na Austrália

Brasileiros da BBA trabalhando no distrito de Old Bar, na Austrália - Debora Komukai/UOL
Brasileiros da BBA trabalhando no distrito de Old Bar, na Austrália Imagem: Debora Komukai/UOL

Débora Kamukai

Colaboração para o TAB

21/01/2020 04h00

Fecharam as cortinas, tudo apagado. Essa foi a primeira impressão ao chegar na Austrália. Da sacada da casa de uma amiga, localizada próxima ao subúrbio de St. Kilda, em Melbourne, costumava ter uma vista fabulosa com um lago imenso localizado no centro do Albert Park. Em 18 de dezembro de 2019, tudo estava diferente.

Os incêndios na Austrália são algo corriqueiro. Após morar quase três anos na terra de cangurus e coalas, já sabia da existência do "Fire Season", ou "temporada do fogo", traduzido ao pé da letra. Os nativos já se acostumaram. À exceção da Black Saturday — queimada de grandes proporções que ocorreu na Austrália em 2009, deixando 173 mortos —, há anos o fogo não ardia assim. Calcula-se que 13 milhões de hectares já foram devastados, o que se compara ao tamanho de países como a Inglaterra.

Voei para New South Wales, uma das regiões mais afetada pelas queimadas do país. Antes de entrar na fila e embarcar no voo rumo a Jervis Bay, a 198 km de Sydney, senti minha garganta fechando, o nariz entupido, uma dor que ardia na minha cabeça. Deve ser o ar condicionado e o jetlag, pensei. Mal sabia que esse era o primeiro sinal do meu corpo negando a fumaça que mergulhou o país no torpor.

Jornalista Debora Komukai, na estrada que leva a New South Wales, na Austrália - Colin Jenkins/UOL - Colin Jenkins/UOL
Jornalista Debora Komukai, na estrada que leva a New South Wales, na Austrália
Imagem: Colin Jenkins/UOL

Foi a primeira vez na vida que deixei uma mochila pronta para ser usada em caso de emergência. Graças a dicas de amigos locais, incluí na rotina comprar comida enlatada e água para deixar no estoque e no carro em caso de um evacuamento de emergência. Também não podia esquecer dos lencinhos umedecidos, caso tenhamos que ir para um abrigo. Tudo isso já estava pronto e psicologicamente acertado dentro da minha cabeça. Minhas férias mudaram de direção.

Dirigi em direção ao estado de Queensland com alimentos enlatados, mochila pré-pronta e remédios, uma jornada de 12 horas de viagem. O motivo? Fazia dias que eu estava com uma tosse seca que me perseguia diariamente e não me deixava pregar os olhos à noite. Saí de uma consulta médica com medicações e uma bombinha de ar.

A Associação de Médicos da Austrália (AMA) divulgou no início do mês que uma exposição prolongada às fumaças tóxicas pode afetar a saúde da população. O uso de máscaras respiratórias tem sido adotado por parte da população como prevenção. De acordo com o pesquisadores da Universidade da Tasmânia, a máscara ideal para ser usada nesses casos é a chamada P2 Masks, modelo que consegue filtrar um nível significativo da poluição do ar.

A brasileira Luciana Stonoga, 20 anos morando em Sydney, deparou com a oportunidade de participar de um grupo de voluntários brasileiros, o Brazilian Bushfire Aid. Mais de 100 voluntários, todos brasileiros, acamparam com ela no distrito de Old Bar para ajudar a construir uma cerca de proteção para animais selvagens (estrutura comum encontrada nas estradas ao redor da Austrália) que havia sido destruída pelo fogo.

Mesmo equipada com botas e luvas, ela relembra que estava andando próxima de uma árvore dentro da área do acampamento quando o chão se abriu. "Senti minha perna afundando até o joelho dentro do buraco. Quando percebi, já senti arder. As cinzas que estavam dentro do buraco entraram na minha bota. Até conseguir tirar, queimava tudo", conta Luciana, que teve a região do tornozelo ferida com queimaduras de segundo grau devido ao acidente.

Mãe de dois filhos, ao chegar em casa Stonoga foi acalmada pela filha mais nova, que falou: "Isso vai ser uma cicatriz para você lembrar do trabalho que fez ajudando aquelas pessoas". No final, o grupo de brasileiros construiu 14 metros de cerca de arame, equivalente a dois meses de trabalho feito pelos moradores locais. "Na verdade eu até vejo que foi bom acontecer isso comigo. Porque muitas pessoas não sabiam desse risco."

Criada no final de 2019, a iniciativa do Brazilian Bushfire Aid (BBA) fornece seguro-acidente para quem está realizando o voluntariado, explica Ana Gabriela Laverde, coordenadora do grupo. Há quatro anos na Austrália, Laverde explica que mais que a alegria de ajudar a limpar e reconstruir casas, muros e fazer doações, o que mais a marcou foi o momento de ver o grupo chegar com "a energia brasileira, cantando, trabalhando duro e conversando com todos os fazendeiros. Dava para ver que eles [os fazendeiros] precisavam disso. O trabalho que estamos fazendo é de devolver essa energia para essas pessoas que perderam tudo, além de termos a chance de conhecê-los. É um sentimento recíproco", conta.

Grupo de brasileiros organiza doações para vítimas dos incêndios na Austrália - Debora Komukai/UOL - Debora Komukai/UOL
Grupo de brasileiros organiza doações para vítimas dos incêndios na Austrália
Imagem: Debora Komukai/UOL

Fabrizio Festugato é o criador do BBA. Há 12 anos na Austrália, o brasileiro lembra da preocupação ao escutar que seus amigos que moram na cidade de Old Bar foram afetados pelo fogo. Fez o que pôde para ajudá-los e partilhou a experiência nas redes sociais. Outros brasileiros viram a postagem e fizeram contato. "Pelo fato de muita gente seguir a minha iniciativa, foi necessário criar o BBA e ter ao meu lado algumas pessoas que, como eu, se prontificaram a levar a ação adiante. O resultado é cada dia mais positivo, com campanhas em diferentes áreas, e a corrente de doações não para de crescer", relembra. O BBA já ajudou 200 pessoas em 30 propriedades com a construção de grades e instalações básicas de luz e água.

Dirigir em um cenário similar a um deserto, correr do fogo e conseguir sobreviver após todos os obstáculos são cenas típicas da indústria do cinema. A carioca Rafaella Gama achava que isso só ocorria na ficção, até precisar ser evacuada do distrito de Nariel Valey, em 30 de dezembro. "O dia virou noite e começou a chover cinzas", conta ela, que foi celebrar as festas de final de ano no Nariel-Creek Folk Festival, evento tradicional da região.

Gama explica que durante o planejamento da viagem o fogo estava afastado. Não parecia haver qualquer risco. Mas, após três dias no acampamento, ela e seu companheiro receberam um alerta dizendo que havia fogo a 20 quilômetros da região onde estavam. Por causa do vento e da distância, ninguém ficou preocupado. Seguindo as instruções de policiais e bombeiros, o casal dirigiu por quase duas horas para se abrigar na cidadezinha de Wodonga.

Rafaella Gama registra momento em que foge do incêndio na Austrália - Rafaella Gama/Arquivo pessoal - Rafaella Gama/Arquivo pessoal
Rafaella Gama registra momento em que foge do incêndio na Austrália
Imagem: Rafaella Gama/Arquivo pessoal

"Estava agindo no modo automático. Não me desesperei em nenhum momento, até que quando estávamos dirigindo, vi o fogo bem perto da gente. A lua branca ficou vermelha igual sangue", diz ela, que lembra ter chegado a olhar para o parceiro com um sentimento de que iria morrer. "Me senti em um filme de ação, por uns instantes achei que tinha uma pessoa me filmando no banco de trás", relata.

Quando lembra da fuga, Rafaella Gama conta ter percebido o quanto a comunidade australiana, nativos e imigrantes, é unida. As pessoas que estavam no festival, mesmo depois de perderem tudo que tinham por causa do fogo, já planejam realizar um evento especial no mesmo local para arrecadar fundos e ajudar as vítimas da região.

O número de bombeiros voluntários na Austrália aumentou cinco vezes em comparação aos últimos anos. Em janeiro, 25 mil inscrições foram enviadas. Eles estão trabalhando sem parar. Fazendeiros acolhem voluntários mesmo sem terem nada a oferecer. A seca se estende há tempos e quem deveria fazer algo, não faz nada. Isso me marcou muito. Percebi que, mesmo aqui na Austrália, é muito importante a ação individual para que a comunidade funcione. O lema é "nós por nós, a gente pela gente". "Não dá para ficar contando muito com o governo. Precisamos arregaçar as mangas e ajudar ao próximo", desabafa Ana Gabriela Laverde.