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Todo mundo só fala de 'Parasita' -- e não é só por causa do Oscar

"Nós somos uma família feliz": Clã central de "Parasita" é retrato da desigualdade no país - Divulgação
"Nós somos uma família feliz": Clã central de "Parasita" é retrato da desigualdade no país Imagem: Divulgação

Tiago Dias

Do TAB

15/02/2020 05h00

Quando o Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira foi entregue para "Parasita", em janeiro de 2020, o diretor sul-coreano Bong Joon-Ho fez uma provocação à plateia: "Depois de superar a barreira dos 2 cm de legenda, você será apresentado a muitos outros filmes incríveis".

"Parasita" foi além e entrou para a história no domingo (9), ao ganhar 4 Oscars. Ele não foi eleito apenas o melhor filme estrangeiro; também ganhou como melhor filme do ano, categoria onde era o único longa-metragem não falado em inglês. Em 92 anos de premiação, isso nunca tinha acontecido, embora "Amor" (França, em 2013) e "Roma" (México, 2019) tenham batido na trave.

Nos Estados Unidos, os filmes em idiomas estrangeiros com legendas raramente ganham a força que "Parasita" tem. O filme conquistou tanto o público quanto os críticos e arrecadou mais de US$ 37 milhões, em uma terra onde a legenda não tem vez (e agora só há cópias legendadas por lá). Por aqui, após a premiação, o filme passou para o terceiro lugar entre os mais vistos no cinema, um feito e tanto. Mas o sucesso do filme indica uma nova era no Oscar, sempre tão autocentrado? E o que isso diz sobre nossa forma de consumir entretenimento, em tempos de streaming globalizado?

OK, "Parasita" é um fenômeno, nível kpop. A audiência do longa em seu país natal foi de 10 milhões de telespectadores. É como se 1 em cada 5 coreanos tivesse ido assistir ao filme, isso antes mesmo de o filme ser indicado a qualquer coisa — a temporada de premiações internacionais nem tinha começado. No Brasil, "Parasita" também se encaminha para se tornar um fenômeno, entre os filmes não falados em inglês. Já acumula quase meio milhão de espectadores.

"Finalmente, o Oscar premiou o 'melhor filme'!" Foi o que a brasileira Paoula Abou-Jaoude, correspondente nos Estados Unidos, mais ouviu em Hollywood após o prêmio. "O filme estava vindo no que chamamos de 'slow build-up' [campanha lenta, na tradução livre], desde quando ganhou Cannes, e o falatório só aumentou." Fato: para um filme conseguir uma vaga no Oscar, é necessária uma campanha intensa de marketing e dinheiro por parte do estúdio. "Parasita" gastou em torno de US$ 4 milhões, valor baixo se comparado ao que foi gasto por produções dos anos anteriores, como "Gravidade" e "Nasce uma Estrela" (na casa dos US$ 20 milhões), e da própria Netflix que, segundo o Wall Street Journal, gastou US$ 100 milhões para fazer seus filmes serem vistos e considerados pelos votantes (a empresa nega). É preciso organizar muita festa e coquetéis, bate-papo e exibição, para impressionar quem vota no Oscar. Além disso, "Parasita" contou com um diferencial: o próprio Bong Joon-Ho. "Ele foi incansável, falou com todo mundo, sempre simpático e divertido", observa Abou-Jaoude, que cobriu a cerimônia e é uma das votantes do Globo de Ouro. "Mas, se o filme não segurasse o hype, não tinha muito o que fazer."

Oscar Parasita - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

O nome do hype, aliás, é "desigualdade social". A essa altura você já deve saber que "Parasita" acompanha a saga de uma família desempregada que vive em um porão na periferia de Seul. A maior preocupação dos pais e dos dois filhos é conseguir bicos para que todos se alimentem — além de "roubar" qualquer sinal aberto de wi-fi na casa subterrânea. Tudo muda quando o filho começa a dar aulas particulares de inglês para uma adolescente milionária. A trama se complica (e muito), mas usa o humor e o suspense para desenrolar o novelo da realidade sul-coreana (e, de quebra, de outras capitais do mundo). Para Abou-Jaoude, a aceitação do filme em outros países está ligada às reflexões sobre a pobreza e a riqueza. "Tudo depende do lado político. O cinema é uma grande escapatória, isso que é o lado maravilhoso. 'Parasita' é a história do rico e do pobre, e muitos outros países sabem o que é isso." Não à toa, com as enchentes em São Paulo e a declaração polêmica do ministro da Economia, Paulo Guedes, trechos do filme serviram para atualizar memes sobre nossa própria desgraça.

Mas a Coreia do Sul não é uma potência tecnológica? Não é bem assim. Parte da população da Coreia do Sul amarga uma realidade bem distante do visual colorido do k-pop, da fama de "Tigre Asiático" e do êxito no sistema educacional. A família de "Parasita" serve de escada para um subtexto sócio-político importante no país. A certa altura, fica claro que no passado, o pai de família tentou empreender, mas não deu certo. A rápida industrialização acabou transformando a Coreia do Sul na nação com a renda mais desigual do Leste Asiático: por lá, os 10% mais ricos detêm 45% da renda. Estima-se que quase 1 milhão de pessoas viva em habitações insalubres como a da família pobre do filme.

E por que já se fala em potência cinematográfica? Muito do sucesso de "Parasita" se deve a políticas públicas e isenções fiscais para fomentar a produção audiovisual, iniciadas há décadas. Essas ações fidelizaram o público local e, mais importante, injetaram dinheiro para preparar os filmes para o mercado internacional. Nos 1990, esse mercado ganhou importantes medidas de financiamento, com a Lei do Audiovisual, que tinha por objetivo criar um fundo de investimento, além de oferecer incentivos fiscais ao setor. A indústria cinematográfica passou a receber dinheiro pesado de grandes corporações. Empresas como Samsung e Hyundai viraram investidoras de peso, interessadas em isenção fiscal, em esquema parecido com a Lei Rouanet.

Aqui é Hallyuwood! O cinema sul-coreano faz parte de uma estratégia mais ampla, com o objetivo de promover a chamada "onda coreana", ou hallyu, em todo o mundo. A ideia do governo de Kim Dae-jung (1998-2003), conhecido como "o presidente da cultura", era que o eixo do crescimento econômico do país girasse em torno da indústria criativa e do entretenimento. Entra nesse balaio o k-pop e a indústria de cosméticos.

Miky Lee ganhou aplausos e gritos: magnata está por trás da potência audiovisual da Coreia do Sul - Kevin Winter via Getty Images - Kevin Winter via Getty Images
Miky Lee ganhou aplausos e gritos: magnata está por trás da potência audiovisual da Coreia do Sul
Imagem: Kevin Winter via Getty Images

Agora, quem era aquela senhora no palco? Enquanto Bong Joon-Ho olhava e ria sozinho para seu Oscar de melhor filme, uma mulher chamou atenção. Miky Lee, que foi ao microfone agradecer o prêmio, enalteceu o trabalho do diretor, o público e a produção do seu país. Além de produtora executiva do filme, Lee é a toda-poderosa do entretenimento sul-coreano. Neta de Lee Byung-chull, fundador da Samsung, ela está por trás também do boom das novelas sul-coreanas, que dominaram a Netflix nos últimos meses, e da febre do k-pop — praticamente foi ela quem inventou o BTS. Ela está em todas, inclusive nos Estados Unidos, onde foi uma das principais investidoras da DreamWorks, estúdio criado por Steven Spielberg.

Não parece, mas é culpa da Netflix. Todo esse plano de exportação vingou de vez no momento em que o consumo de entretenimento se globalizou. Tem dedo da Netflix aí: a plataforma de streaming produz muito conteúdo em outros idiomas que não o inglês. As redes de cinema e festivais de prestígio sempre culpam a popular plataforma de streaming por acabar com o tradicional circuito de filme, e há quem veja com preocupação o desaparecimento de uma proporção significativa da história cinematográfica nos serviços de streaming (onde estão os filmes clássicos?). Se não está no catálogo, esse filme passa a não existir. Em contrapartida, se ele está disponível mundialmente, a janela que se abre é imensa, e o impacto, incalculável. Mais de 50% do público da Netflix que assiste à série alemã "Dark" e a brasileira "3%" é internacional, não fala essas línguas. Com os serviços de streaming substituindo cada vez mais a TV a cabo, as legendas passaram a aparecer com facilidade nas TVs e nos celulares.

Cena de "Parasita", como os americanos estão assistindo: com legendas - Divulgação - Divulgação
Cena de "Parasita", como os americanos estão assistindo: com legendas
Imagem: Divulgação

A barreira de 2 cm caiu? Após a barbada no Oscar, o próprio Bong Joon-Ho afirmou que "streaming e redes acostumaram o público a assistir conteúdo em outros idiomas". A jornalista e escritora Ana Maria Bahiana, que há anos cobre produções e eventos em Hollywood, observa que as plataformas estão diluindo, finalmente, a barreira da legenda. "[Estão] trazendo cinema (e TV) de toda parte para toda parte", observou, em suas postagens no Twitter. "A Academia, que, com quase um século de idade, representava o poderio do cinema americano, hoje representa cada vez mais a possibilidade de um cinema sem fronteiras. O povo que votou em 'Parasita' é o resultado de uma Academia que fez um trabalho concentrado de renovação e atualização."

Quem vota? Desde quando explodiu a campanha #OscarsoWhite, em 2016 — como resposta à predominância de profissionais brancos e produções protagonizadas por brancos —, a Academia batalha para dar uma cara mais diversa ao seu quadro de votantes, que hoje chega a mais de 9 mil membros. "Isso ajudou no sucesso do filme. A Academia está mais disposta a convidar anualmente cada vez mais membros internacionais, jovens, buscando por mais diversidade", explica Paoula Abou-Jaoude. Dias depois do Oscar, a diretora administrativa dos membros da Academia, Lorenza Muñoz, observou que o prêmio para "Parasita" foi reflexo direto dessa renovação no quadro de votantes. "A Academia é global. Está mais inclusiva do que nunca, e somos melhores que isso", disse à Variety. Quatro anos depois do movimento, 20% de todo o quadro de votantes são de 58 países que não o Estados Unidos.


Cena de "Parasita": o filme mais falado do momento -- e não só por causa do Oscar - Divulgação - Divulgação
Cena de "Parasita": o filme mais falado do momento -- e não só por causa do Oscar
Imagem: Divulgação

Uma nova era em Hollywood? Bruno Carmelo, crítico e mestre em cinema, não é tão otimista. "Foi um marco histórico, mas eu acho que não necessariamente é uma transformação", observa. "Hollywood é uma indústria bem conservadora. Faz anos que tentam implementar medidas para destacar o trabalho de mulheres e negros, e os resultados ainda são bem discretos. Até por isso duvido que a vitória de 'Parasita' seja tão revolucionária assim na aceitação de filmes em língua estrangeira. A regra ainda é a refilmagem americana; o circuito exibidor ainda não sabe como vender filme legendado", observa.

O quê? 'Parasita' em inglês? Bem, ainda é muito cedo para dizer, mas sim, a HBO anunciou que "Parasita" vai virar minisséri. Ainda não há elenco oficial, mas a imprensa norte-americana avisou que fortes rumores já indicam a presença do ator Mark Ruffalo. O diretor Bong Joon-Ho faz parte do projeto, ao lado do roteirista e diretor americano Adam McKay. A série deve ter cinco ou seis episódios, e é baseada no roteiro vencedor do Oscar de Bong e Han Jin-won. Se será uma adaptação, uma continuação ou uma versão estendida e revisitada do roteiro, ainda não se sabe.

Os americanos estão assistindo ao filme legendado? Um dia depois da premiação, os sites de bilheteria americanos Fandango e Atom Tickets informaram que a venda de ingressos para o filme teve um salto de 443% em relação à segunda-feira passada (3). Mas claro, tem quem achou muito estressante prestar atenção naquela linha amarela cheia de palavras.

E no Brasil? "Parasita" estreou por aqui em novembro de 2019, em um circuito restrito de apenas 40 salas. Após a premiação, o filme passou a ser exibido em mais de 200, incluindo muitas cidades que ainda não tinha recebido o filme. Em poucos dias, a bilheteria saltou 263%. E, se você não gosta de legenda, está na hora de superar: não há nenhuma cópia dublada disponível. No Now, o filme estará disponível em 27 de fevereiro.