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Como o Carnaval ajudou a descriminalizar o samba no Brasil

Roda de samba na Pedra do Sal, no Rio - Folhapress
Roda de samba na Pedra do Sal, no Rio Imagem: Folhapress

Letícia Naísa

Do TAB

22/02/2020 04h00

Que o samba é o ritmo oficial do Carnaval brasileiro, disso não há dúvida. Tradição há mais de um século na história da festividade, hoje o ritmo conta com prestígio e é símbolo da cultura brasileira. Essa nobreza de status, no entanto, nem sempre existiu. As rodas de samba, populares nas periferias das cidades, especialmente no Rio de Janeiro, eram perseguidas pela polícia e os músicos, presos.

Associados à figura do malandro e ao crime, no início do século 20, os sambistas eram de origem pobre, periférica e negra. Quando detidos por tocarem nas ruas, eram enquadrados na Lei dos Vadios e Capoeiragem de 1890, data do segundo Código Penal brasileiro. Nos anos 1940, a "lei da vadiagem" tornou o estigma em torno das rodas de samba ainda pior.

Mas o que dizia a lei? O texto determinava que os vadios e vagabundos eram desempregados. Qualquer maior de 14 anos que não trabalhasse e ofendesse "a moral e os bons costumes" poderia ser detido. A lei também tornava crime a prática da capoeira em ruas e praças públicas.

E o que o samba tem a ver com isso? As rodas de capoeira aconteciam mais ou menos junto das rodas de samba, em festas nas periferias. Mas o que une as duas práticas é a questão racial e social. Tanto a capoeira quanto o samba têm suas origens na cultura negra. Logo após a aprovação da Lei Áurea, elementos da cultura africana no Brasil passaram a ser perseguidos e, como no caso da capoeira, criminalizados. As manifestações culturais da população negra passaram a acontecer em ambientes privados, nas casas de "tias". Com o tempo, as festas se tornaram cada vez mais populares e, aos poucos, tomaram as ruas.

A repressão veio depois? Sim. Andar com instrumentos e pertencer a bandas era considerado infração pela lei de 1890. Apesar de o ritmo em si não ser crime, ser sambista, tocar violão e tocar pandeiro eram coisas associadas a pessoas criminosas, que deveriam ser vigiadas. Uma das prisões mais famosas foi a do sambista João da Baiana, um dos pioneiros do ritmo no Rio de Janeiro. Graças a boas relações que tinha com o senador Pinheiro Machado, João da Baiana teve seu pandeiro assinado pelo político para evitar novas prisões. Por conta da repressão, as letras de samba tinham forte cunho político.

Quanto tempo isso durou? Durante o Estado Novo, a Lei das Contravenções Penais, de 1941 (ou "lei da vadiagem"), intensificou a perseguição aos sambistas de rua. Mas, ao mesmo tempo, o ritmo começou a ganhar destaque por causa do Carnaval. O samba começou a ser a trilha sonora, por meio das marchinhas, das festas de rua e também a dos clubes mais elitizados. Foi quando os brancos e a elite começaram a tocar samba que ele deixou de ser tão perseguido pela polícia.

E como aconteciam as festas? O Carnaval não é uma festa tipicamente brasileira, apesar de ter tomado grandes proporções no país. Tudo começou com a brincadeira do entrudo, trazida pelos europeus durante a colonização portuguesa. Era uma prática brutal em que as pessoas se jogavam bolinhas de cheiro umas nas outras. Com o passar do tempo, foi ganhando novas características. Entre as elites, formaram-se os bailes de máscaras e os bailes de salão, e nas ruas, os blocos. Mas, desde que surgiu, a festa já tinha uma dimensão de subversão da ordem, principalmente entre as camadas mais populares.

O Carnaval já foi proibido? Não. Nunca houve uma regra que proibisse as manifestações culturais de Carnaval, mas algumas normativas policiais instruíam a repressão de determinadas práticas. Ainda hoje, existe quebra-quebra nos blocos de Carnaval de rua. Ao contrário da festa nos sambódromos, que recebe muito patrocínio e destaca as escolas de samba, as festas de rua, principalmente aquelas que reúnem populações mais periféricas, têm menos controle. Isso abre espaço para que haja mais liberdade de expressão e menos vigilância, mas também mais repressão. Em 2019, o bloco em que a cantora Ludmilla se apresentou, no centro do Rio, terminou com bomba de gás lacrimogêneo.

Como fica a situação hoje? Com blocos de cada vez maiores e mais diversos, principalmente no Rio e em São Paulo, é de se esperar que a ação policial aumente. Outra mudança que pode gerar conflitos é o funk, cada vez mais presente nas festas de rua. O sambista associado ao malandro de ontem é o MC associado ao traficante de hoje. Assim como o samba, o funk nasceu da cultura periférica e vem tomando conta de lugares mais elitizados, mas ainda não é reconhecido e aceito como o samba já foi.

* Fonte consultada: Juliana Lessa, professora de história e doutoranda em história social pela PUC-RJ