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Série sobre Marielle: por que direção de Padilha gerou tanta polêmica?

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Imagem: Divulgação

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

12/03/2020 04h00

A trajetória de uma política e ativista negra brasileira. Um assassinato nebuloso, com implicações políticas, ainda não esclarecido. Era esperado que a vida e a morte de Marielle Franco se tornasse tema de filmes e séries. A pergunta no ar era: como representar uma mulher que se tornou um símbolo ao defender causas tão sensíveis à sociedade e que teve sua vida abreviada de forma violenta e abrupta?

O anúncio da série ficcional sobre a vereadora do PSOL, quase dois anos após ser morta a tiros, instigou ainda mais esses questionamentos -- principalmente quando se soube quem estava à frente do projeto da plataforma Globoplay.

A roteirista Antonia Pellegrino e o diretor José Padilha foram duramente criticados por suas visões em projetos anteriores. Enquanto Pellegrino guarda no currículo a série "Sexo e as Negas", de 2014 -- que recebeu críticas pela visão sexualizada em torno dos corpos de mulheres negras --, Padilha ganhou antipatia de parte do público ao transportar para "O Mecanismo" a Operação Lava-Jato, com personagens e falas simpatizantes à operação.

O caldo dessa discussão social engrossou de vez quando ambos responderam às críticas. A roteirista defendeu a escolha de Padilha por não haver "um Spike Lee, uma Ava DuVernay" no Brasil, dois diretores norte-americanos negros de grande relevância no cinema. O diretor, por sua vez, citou ativistas negros históricos, como Martin Luther King e Malcolm X, para dizer que estava sofrendo linchamento na discussão sobre quem poderia contar essa história. Entre brancos e negros, "o inimigo, amigos, é o ódio", defendeu.

A reação ao posicionamento de Padilha foi ainda mais ruidosa e gerou uma nota assinada por mais de 300 profissionais e intelectuais em repúdio à série, levantando novamente questões antigas sobre racismo estrutural.

O TAB conversou com alguns desses signatários para que eles explicassem: afinal, por que um filme de Marielle com direção de José Padilha fez tanto barulho?

Erica Malunguinho (Divulgação) - Divulgação - Divulgação
A deputada estadual Erica Malunguinho, educadora e artista plástica
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Deputada estadual pelo PSOL-SP, Erica Malunguinho é um desses nomes. Educadora e artista plástica, ela acredita que a série é extremamente relevante. "Principalmente pela névoa que não decifra e que não tem a intenção de decifrar o assassinato", diz. A questão vai além de determinar quem pode contar essa história. "Não é sobre não poder falar. É sobre como e com quem".

A parlamentar diz que é fundamental ter a presença ativa de negros, mulheres lésbicas e periféricos no projeto não apenas para ajudar no olhar de temas tão caros à vereadora. "Isso também diz respeito ao rompimento das lógicas estruturais de opressão, que levam pessoas negras a não estarem em lugares de poder, que é exatamente o que a Marielle questionava", explica. Para desconstruir isso, ela acredita ser necessário deslocar pessoas que historicamente foram invisibilizadas e colocá-las no centro da discussão.

A cabeça por trás das cenas

A cineasta Carol Rodrigues dirigiu curtas, participou de salas de roteiro de muitos projetos e sabe o poder que as imagens têm na formação das percepções que as pessoas têm do mundo — e delas mesmas.

"Se o roteiro é o esqueleto, os músculos e o sistema nervoso de um filme, a direção é o sistema circulatório, sua pele e seus pêlos", diz. "Geralmente, o diretor é quem faz as escolhas de elenco e direciona nossos olhares em tela, indicando o que merece nossa atenção e o que não merece", observa.

Ela exemplifica: "[A cena de] um policial segurando um saco na cabeça de uma pessoa. A direção posiciona a câmera de modo a você estar na adrenalina do policial herói maquiavélico ou do suposto criminoso sendo sufocado."

Escolhas que fazem a história tomar forma na tela. Quem as conta não precisa necessariamente ter vivido tudo isso. "Mas é preciso ter sensibilidade para exprimir uma experiência que não é a sua, o que Padilha demonstrou não ter, mais de uma vez, incluindo a sua carta para Folha. Se você não tem essa sensibilidade, essa empatia, essa capacidade de ouvir e compreender os seus pontos cegos, você produzirá um tipo de cinema que reafirma seus valores de classe, gênero e cor difundindo estereótipos e representações enviesadas dos demais grupos sociais", explica.

Maíra Oliveira, roteirista e dramaturga - Divulgação - Divulgação
Maíra Oliveira, roteirista e dramaturga
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Ferida aberta

Para a roteirista e dramaturga Maíra Oliveira, a série parece precipitada, principalmente com o caso ainda em aberto. "Já tivemos exemplos, nacional e internacionalmente, no audiovisual e na literatura, do efeito de narrativas ficcionais coladas a uma realidade ainda não completamente elucidada que geram graves danos a toda sociedade. Efeitos políticos", diz.

Ela cita "O Mecanismo", de Padilha, como um dos exemplos de como uma história em andamento não consegue ser fielmente transportada à ficção. O próprio diretor, que inicialmente demonstrou apoio a Sergio Moro, afirmou, depois da estreia da série, que se arrependeu do gesto, principalmente pelo apoio do ministro ao pacote anticrime.

"Filmes como 'Tropa de Elite' transformam os agentes dessa mesma necropolítica em heróis nacionais. Poderíamos citar diversos outros, isso está pra lá de mapeado e discutido em diversas esferas há séculos", observa.

"O projeto faz parte de uma narrativa muito maior que passa por quem coordena — e até mesmo como essas pessoas comunicam nas suas redes as escolhas feitas até então. Tudo faz parte dessa narrativa. Elas se colocam como 'escolhidas' para contar essa história de maneira no mínimo leviana justamente com a memória de Marielle e com parte da família."

No Twitter, a irmã da vereadora, a ativista Anielle Franco, diz que percebeu que não há como ter controle sobre como a história de Marielle será contada, mas afirmou que espera ver protagonismo de profissionais negros no projeto.

Durante a exibição de "Marielle - O Documentário", que antecede o projeto ficcional e chega à plataforma da Globo no próximo dia 13, ela foi enfática ao observar como pessoas brancas chegam sempre antes das pessoas negras [nesse tipo de projeto]. "Se a gente conseguisse, a gente chegaria primeiro", disse.

Segundo o "Noticias da TV", após a reação nas redes, a Globo e a Antifa Filmes, responsáveis pela série, decidiram convidar homens e mulheres negros para integrar o time criativo da produção.

"A escuta não dói"

Logo após a fala sobre a ausência de um "Spike Lee brasileiro", Antonia Pellegrino postou em seu Instagram que a fala em si era uma denúncia para comprovar o racismo estrutural no meio. Para Malunguinho, no entanto, a justificativa da ausência do diretor negro é, por si só, exemplo da prática. Na quarta (11), a roteirista da série reconheceu o erro e se desculpou.

"Nós não estarmos presentes nesse lugar significa, reiteradamente, o processo de apagamento e a não-valorização da produção intelectual, cultural e política da negritude — que era exatamente ao que Marielle se opunha. Ela fazia inclusive o contraponto disso com sua presença", explica. "Eles fazem questão de reiterar isso que a gente já sabe, eles verbalizaram."

"É necessário provar que somos muitas e muitos, somos produtivos, inovadores e competentes de maneiras tantas que não caberia em um Spike lee e uma Ava duvernay. Mas provar pra quem? Nós nunca tivemos dúvida disso", observa Maíra.

De acordo com Malunguinho, para desconstruir, é necessário tirar do papel práticas desconstrutivas, além de praticar a escuta. "A escuta não dói. Acho que faltou participação, colaboração e escuta das pessoas diretamente envolvidas de modo objetivo na luta de Marielle."

Para Carol Rodrigues, a forma apressada como a série foi anunciada deixou um gosto ainda mais amargo. "Sabe, no final, acho que o mais doloroso nesse caso é que a ferida ainda está aberta. E o fato dessas pessoas não terem percebido isso deixa tudo ainda pior. Fica parecendo só uma jogada oportunista de se promover, mais uma vez, em cima dos corpos negros", conclui.