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Plural é um projeto colaborativo do UOL com coletivos independentes, de periferias e favelas para a produção de conteúdo original


Desmonte de Clínicas da Família deixa favelas vulneráveis à covid-19 no Rio

Protesto de agentes de saúde de Manguinhos, no Rio - Fabio Monteiro/Arquivo Pessoal
Protesto de agentes de saúde de Manguinhos, no Rio Imagem: Fabio Monteiro/Arquivo Pessoal

Gabriele Roza

Do data_labe, colaboração para o TAB

31/03/2020 04h00

Em meio à crise da covid-19, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, pediu na quinta-feira (19) que as ''equipes de saúde da família monitorem o que está acontecendo, peguem o telefone das pessoas, liguem para casa''. Mandetta elogiou o trabalho dos agentes e reconheceu sua importância, especialmente nas periferias e favelas: "Agentes comunitários, vocês sabem o que eu estou falando, vocês são a grande força de organização. Façam as listas, vocês sabem onde estão os idosos (...) vocês têm os telefones dessas pessoas, vocês conhecem elas por nome. Isso pode ser fundamental nas comunidades mais carentes, por exemplo, do Rio de Janeiro". Mas a realidade é que essas equipes estão sobrecarregadas na luta contra outra crise, uma doença chamada por alguns de "desmonte do SUS".

A fala de Mandetta evidencia a priorização da atenção primária no enfrentamento do vírus que já matou mais de 32 mil pessoas ao redor do mundo e cujos contaminados superam o meio milhão (680 mil em 29 de março). De fato, as unidades básicas de saúde são essenciais para evitar que a pandemia se espalhe, especialmente nas favelas e periferias, e para evitar um colapso nos hospitais que atendem aos casos mais graves.

Para o secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, os serviços na atenção primária estão preparados para enfrentar a epidemia do novo coronavírus. "A priorização da atenção primária pelo ministro Luiz Henrique Mandetta foi acertada e deixou o país mais forte para enfrentar a circulação do novo coronavírus", disse Gabbardo.

Ronaldo Moreira, presidente do sindicato dos agentes comunitários de saúde (ACS) do município do Rio de Janeiro, não discorda. Moreira sabe que sua categoria é fundamental para frear o avanço da doença nas favelas e bairros do subúrbio, mas lembra que em três anos, de 2017 a 2019, aproximadamente 2 mil agentes comunitários de saúde (ACS) foram demitidos sem recontratação. ''Nós éramos 6.500 no final da gestão de Eduardo Paes [2016], hoje nós estamos com 4.000 mil agentes mais ou menos. (...) A Pnab (Política Nacional de Atenção Básica do Ministério da Saúde), que regula nosso trabalho, nos diz que um agente comunitário deve cuidar de até 750 pessoas. Hoje os agentes estão cuidando do dobro desse número.''

Moreira, que trabalha na Clínica da Família Rosino Baccarini, em Bangu, bairro da Zona Oeste do Rio, diz que essa realidade afeta diretamente sua unidade: ''éramos seis equipes com 32 agentes comunitários de saúde. Fomos reduzidos para 14 agentes comunitários de saúde e somente três equipes.''

Joelma Sousa, moradora da Maré e coordenadora da Equipe Social da Redes da Maré, organização social que atua no complexo de favelas, acompanha a atuação das Clínicas da Família no território. ''O problema é que não houve nenhum processo de orientação e capacitação para as Clínicas antes de a pandemia chegar aqui no Brasil. Existiam indicativos de que essa pandemia já era algo muito grave em outros países e o prefeito não trabalhou com esse planejamento.''

De acordo com a Prefeitura do Rio de Janeiro, a Maré tem atualmente sete Clínicas da Família e Centros Municipais de Saúde (CMS), que também oferecem serviços de atenção primária, e juntos atendem uma população de 139 mil pessoas, distribuída nas 16 favelas que formam o Complexo localizado na Zona Norte do Rio. ''Aqui na Maré tem Clínica da Família que está atendendo apenas com dois médicos e antes da demissão eram oito'', diz Joelma.

A infecção do SUS

A Emenda Constitucional 95, de 2016, conhecida como a emenda do teto de gastos, alterou a Constituição brasileira de 1988 para instituir o Novo Regime Fiscal. Ela afeta desde 2017 o trabalho das equipes de saúde da família. É o que conta Mariana Nogueira, que é professora, pesquisadora e coordenadora do Curso Técnico Agente Comunitário de Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz.

"O que coloca mais em risco o trabalho dos agentes comunitários de saúde, além da Emenda Constitucional 95, é a Política Nacional de Atenção Básica de 2017, que foi publicada no governo Temer. Ela responde aos interesses de empresários e de planos privados de saúde. [Com ela] os municípios ganham uma autorização para reduzir o número de agentes comunitários de saúde por equipe e para implantar equipes de saúde da família sem agentes comunitários, que são chamadas Equipes de Atenção Primária."

Para a pesquisadora, o que agrava a situação é o fato de as Clínicas da Família serem administradas por Organizações Sociais de Saúde (OSS). OSS são instituições privadas, sem fins lucrativos, que não precisam passar por licitação para receberem dinheiro público e executarem tarefas na área da saúde. O modelo é criticado por parte dos funcionários da saúde, como uma espécie de privatização de partes do SUS. "É a privatização da gestão pública através das OSS. Isso coloca esses ACS ainda mais em risco, porque eles não têm estabilidade no emprego. A Secretaria Municipal de Saúde não respeita a lei que prevê a efetivação dos agentes comunitários de saúde. (...) O caos que a gente vai viver agora por causa do novo coronavírus poderia ser de alguma maneira menos trágico, se não tivessem retirado esse bilhões de reais devido à Emenda Constitucional 95."

Covid-19 chega; papel higiênico e sabonete, não

Com salários de março ainda atrasados, agentes de saúde da Clínica da Família Odalea Firmo Dutra, que atende o Andaraí e o Grajaú, bairros vizinhos da Zona Norte do Rio, foram surpreendidos, no domingo (22), com a declaração de óbito de um auxiliar de almoxarifado que morreu "devido ou com consequência de coronavírus". A declaração, com rubrica do Hospital do Andaraí, circulava em grupos de bairro no Facebook.

Na terça-feira (17), o auxiliar de almoxarifado, de 66 anos, chegou a ir à Clínica da Família se queixando de falta de ar. "[A declaração de óbito] estava rodando no Facebook como se fosse um simples papel e eu falei 'gente, é o paciente que eu atendi várias vezes lá na clínica'", diz uma agente de saúde que prefere não ter o nome divulgado.

Protesto de agentes de saúde contra o desmonte dos programas de Saúde da Família do SUS, em Manguinhos, no Rio - Fabio Monteiro/Arquivo Pessoal - Fabio Monteiro/Arquivo Pessoal
Protesto de agentes de saúde contra o desmonte dos programas de Saúde da Família do SUS, em Manguinhos, no Rio
Imagem: Fabio Monteiro/Arquivo Pessoal

Ela conta que o homem chegou a ir algumas vezes na clínica semanas antes da morte e que havia sido avisado para voltar na quarta-feira (18), mas não voltou. A declaração de óbito informa que o homem morreu na sexta-feira (20). "Ele veio em um período em que não estava [posta] essa questão do novo coronavírus. Ele teve várias vezes na clínica e não tinha a questão de máscara ou alguma coisa assim."

Desde que soube do ocorrido, a agente, que teve contato com o paciente todas as vezes em que ele esteve na clínica, está isolada em casa. "Isso me fez suspirar, foi totalmente desagradável, a minha cabeça está a mil. Minha mãe tem uma doença pulmonar, por muitos anos ela teve bronquite e não teve um tratamento adequado porque ela era empregada doméstica, não tinha como se cuidar... Minha filha fez uma cirurgia em dezembro, ela ainda está no processo de cicatrização interna, com a imunidade baixa. Eu tenho sinusite crônica, minha filha do meio também tem, ela estava para operar, mas com essa confusão não vai mais porque todas as vagas do SISREG [Sistema Nacional de Regulação] foram fechadas."

A agente comunitária Karen Caroline dos Santos, também da Clínica Odalea Firmo Dutra, conta que até pouco tempo atrás faltavam produtos de higiene básica no local. "Até semana passada o banheiro não tinha papel e nem sabonete para lavar as mãos. Como ocorreu esse óbito na sexta, a gente resolveu questionar uma melhoria pra gente porque o ventilador estava quebrado. Semana passada peguei um álcool em gel que a validade era de 2018." Na quarta-feira (24), o pagamento atrasado de Karen e outros funcionários da Clínica tinha acabado de sair.

Alguns portais confirmaram a morte do auxiliar de almoxarifado por covid-19, mas a causa da morte segue sem confirmação pela Secretaria Estadual de Saúde e a morte do auxiliar de almoxarifado não consta na lista oficial de mortos pelo novo coronavírus.

Depressão, salário atrasado e falta de equipamento

A Clínica da Família Victor Valla e o Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, ambos em Manguinhos, na Zona Norte do Rio, também não passaram imunes ao vírus do desmonte do SUS.

Fábio Monteiro, integrante da Comissão dos Agentes Comunitários de Saúde de Manguinhos, conta que a falta de funcionário é ainda mais acentuada nesse momento em que alguns colegas precisam ficar em quarentena por estarem gripados ou por fazerem parte do grupo de risco da covid-19.

Muitos também passam por problemas de saúde mental. "Dois meses antes de essa pandemia estourar, aqui em Manguinhos, todos os funcionários foram comunicados que iam entrar em aviso prévio porque a prefeitura não tinha feito repasse [de verba], todo mundo ia ser mandado embora. Por mais que a gente tenha conseguido com muita luta reverter essa situação, é aquele estresse psicológico na pessoa querendo sustentar a família."

Segundo Monteiro, o Conselho Comunitário de Manguinhos e outros parceiros conseguiram alguns psicólogos e psiquiatras voluntários para atender, online, profissionais da saúde da região.

Esse quadro caótico vivenciado pelos profissionais da saúde, cujo exemplo da Itália indica que vai piorar com a chegada do pico da epidemia do novo coronavírus, gerou um aumento no número de casos de tentativa de suicídio e de pedidos de licença médica por razões de saúde mental. É o que conta Arthur Lobo, psicólogo e representante do sindicato dos psicólogos do Rio de Janeiro. "Problemas como crises de ansiedade e depressão dispararam." Apesar do momento difícil, Arthur Lobo acredita que o avanço da covid-19 pode estimular os profissionais por valorizar as categorias e trazer reconhecimento de parte da sociedade: "uma coisa que fazia os trabalhadores ficarem mal era justamente a falta de reconhecimento da população do que estava acontecendo".

Não é só reconhecimento que falta nas Clínicas da Família do Rio. Segundo uma técnica administrativa que prefere não ser identificada, a falta de material e de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) não é de agora. "De uns quatro, seis meses pra cá, a falta de insumos está sendo muito grande e isso prejudica o trabalho dos profissionais. A gente conseguia cumprir isso fazendo empréstimo, uma unidade emprestava pra outra, mas com a questão da chegada dessa nova doença [covid-19], os materiais não foram repostos, então a tendência é começar a faltar pra todo mundo. (...) Agora a exigência é que a gente use os equipamentos de proteção, só que não tem equipamento de qualidade. Eles me dão um avental que eu consigo ver do outro lado, um avental de plástico sem manga. Não é um equipamento pra você atender um paciente com possível suspeita de covid-19."

Para a pesquisadora da Fiocruz Mariana Nogueira, é importante que o poder público implemente algumas garantias para que as equipes da atenção primária e que as unidades hospitalares consigam conter o avanço da pandemia. "Para o município é fundamental exigir a recomposição imediata das equipes de saúde da família. O município extinguiu 184 equipes de saúde da família, são mais de meio milhão de cariocas, principalmente na Zona Norte e Zona Oeste, que perderam o acesso às equipes de saúde da família e é justamente nesses lugares que se concentram as favelas. (...) É dever do Estado fazer isso. Fornecer condições de trabalho, garantir que tenha água nas favelas porque essas clínicas da família estão nesses lugares."

Mariana Nogueira lembra que "as ACS são trabalhadoras, a grande maioria mulheres negras, quase a sua totalidade moradoras de favelas e de bairros operários e periféricos, Elas moram no território onde elas produzem esse trabalho, tem uma vinculação com os usuários do SUS extremamente importante, que estabelece uma relação de confiança. Elas são fundamentais para a orientação às famílias acerca das medidas que podem ser tomadas para minimizar a possibilidade de contágio e infecção pela covid-19''.

Parte da vacina que combaterá a epidemia do SUS não depende de uma nova tecnologia ou de medicamentos modernos. Ela consiste no investimento e no reconhecimento dos profissionais que estão na linha de frente da saúde nas periferias e favelas do Brasil.

Colaborou Fred Di Giacomo (coordenação e edição), da data_labe

Esta reportagem faz parte da parceria entre data_labe, Gênero e Número, Énois e Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (covid-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias