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Governo ignora lei e não convoca milhares de médicos formados no exterior

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, durante entrevista coletiva sobre as medidas do governo para o combate do novo coronavírus no Brasil - EDU ANDRADE/FATOPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, durante entrevista coletiva sobre as medidas do governo para o combate do novo coronavírus no Brasil Imagem: EDU ANDRADE/FATOPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Daniel Lisboa

Colaboração para o TAB

08/04/2020 12h07

O governo federal desrespeitou a legislação do programa Mais Médicos e deixou de convocar milhares de profissionais na luta contra a pandemia de covid-19.

São médicos brasileiros formados no exterior que, mesmo sem o registro profissional do país (CRM), estão em segundo lugar na ordem de chamada para participar do Mais Médicos. O Ministério da Saúde, porém, tem edital aberto apenas para os médicos cubanos (classificados como intercambistas), a terceira opção, de acordo com a legislação.

Muitos dos médicos diplomados no exterior já trabalharam anteriormente pelo programa Mais Médicos. Mesmo assim, foram ignorados a ponto de o governo, por meio de uma portaria, optar por chamar veterinários, psicólogos, assistentes sociais, educadores físicos, fisioterapeutas e nutricionistas. Também determinou que estudantes de medicina, enfermagem, farmácia e fisioterapia adiantem suas formaturas para entrarem logo em ação contra o novo coronavírus.

O drible na lei pouco contribui para o momento de urgência pelo qual passa o país. Até porque muitos médicos cubanos deixaram o Mais Médicos ainda antes de Jair Bolsonaro assumir a presidência. Chamá-los de volta agora vai, no máximo, diminuir um pouco o deficit de profissionais, causado pelo próprio governo.

Além disso, há a questão do Revalida, exame criado em 2011 para autorizar brasileiros formados no exterior a trabalhar no Brasil. Há em torno de quinze mil médicos aguardando para fazer a prova e obter o CRM. A proposta era que o Revalida fosse realizado duas vezes em cada ano, mas o exame não acontece desde 2017 e, afundado em trâmites burocráticos e políticos, não tem perspectiva de ser realizado tão cedo.

Inclusão por decisão da Justiça

O deputado federal Alan Rick (DEM-AC) é o presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Médicos Brasileiros e da Revalidação (FMBR). Ele calcula que cerca de 4 mil médicos brasileiros sem CRM que já atuaram pelo Mais Médicos estariam aptos a trabalhar, caso o Ministério da Saúde lembrasse deles.

Rick é autor da emenda aditiva 182, que estabelece que o ministério "deverá dar preferência à contratação de médicos brasileiros formados no exterior sobre os estudantes de medicina do 6° ano e profissionais de medicina veterinária, enquanto perdurar o período de Calamidade Pública no Brasil".

"A lei do Programa Mais Médicos, em seu artigo 13, já permite a contratação de médicos brasileiros formados no exterior por meio de editais. Mas o Ministério da Saúde os 'pulou' para chamar cubanos remanescentes. É ilegal, tanto que eu e alguns estados já entramos na Justiça", explica ao TAB.

A Justiça Federal do Rio Grande do Sul decidiu, na segunda-feira (6), que médicos brasileiros sem inscrição no CRM podem participar do Mais Médicos para enfrentar a pandemia de covid-19. "O governo está ferindo a lei por conta do corporativismo do ministro Mandetta, que é absolutamente ligado ao Conselho Federal de Medicina (CFM)", reclama o deputado. Detalhe: eles são do mesmo partido.

Rick é a favor da convocação dos cubanos, desde que a ordem seja respeitada. "Não faz sentido nem para guardar reserva de mercado, porque esses brasileiros trabalhariam para o Mais Médicos e por um tempo determinado. Depois disso, eles têm que fazer o Revalida de qualquer modo", argumenta o deputado.

Revalida estagnado

Sobre o Revalida, Rick diz que o projeto para a realização de um novo exame, aprovado em novembro de 2019, propunha que as melhores universidades do Brasil, públicas e também particulares, ficassem encarregas de aplicar a prova.

"O texto foi aprovado por unanimidade na Câmara e no Senado. Poucos dias depois, o ministro Mandetta, junto com o presidente do CFM, gravou até vídeo pedindo para o presidente vetar a participação das universidades privadas", diz o deputado. "Fizeram isso porque o corporativismo médico brasileiro sabe que as instituições públicas nunca se interessaram em fazer revalidação de diploma."

A participação das universidades privadas no Revalida acabou vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, e milhares de médicos que poderiam receber o registro profissional seguem desempregados ou atuando em outras profissões em meio à pandemia. Se apenas 10% daqueles que estão na fila fizessem o exame e passassem, o sistema de saúde já contaria com um reforço nada desprezível.

Mas não há, por enquanto, data prevista para um novo Revalida, e a última edição terminou com vários processos na justiça. Em grande parte por causa da metodologia "exótica" usada para aplicá-lo: os candidatos trataram atores se passando por doentes, em vez de doentes de verdade.

"Foi para isso que fiz medicina"

A médica B., que pediu para não ter o nome revelado, estudou medicina na Bolívia e no Paraguai. Trabalhou por dois anos pelo Mais Médicos em São José dos Campos (SP). Seu estado, o Acre, tem hoje uma alta taxa de infectados, em relação ao tamanho da população (50 casos confirmados de covid-19 e duas mortes, até o dia 7). Ela assiste a tudo sem poder ajudar ou ao menos poder tentar tirar o CRM.

"Também sou engenheira agrônoma. E o que estou fazendo aqui, isolada, como engenheira e médica? Nada", diz B. "Tenho amigos médicos na mesma situação. Uma amiga deprimida, lá no interior do Ceará, sem poder trabalhar", conta B. "É claro que eu iria para a linha de frente contra o novo coronavírus, se pudesse. Foi para isso que fiz medicina."

A ideia de adiantar a formatura de alunos de medicina, em detrimento de chamar médicos já formados, foi rechaçada pelos próprios estudantes. Em nota emitida no final de março, a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina reinvidica a revogação imediata da portaria que determina a convocação.

"É incoerente e negligente cobrar como obrigatória a responsabilidade social dos discentes que não têm todas as competências necessárias para o exercício profissional, incluindo-os em serviços de saúde que não contemplam estrutura adequada de supervisão", diz a nota.

"Argumentos não param de pé"

Atuante junto ao poder político e nas redes sociais, o médico Flavio Lima Barreto é outro que está irritado com a situação. Formado na Bolívia, sem CRM e integrante do Mais Médicos por três anos, ele vê a situação se deteriorar sem poder contribuir. "Todo país sério tem um sistema de revalidação de diplomas médicos. Cerca de 22,5% dos médicos atuando nos Estados Unidos são formados no exterior. Na Inglaterra, esse número chega a 36%", diz Lima.

"Esta situação (convocar até profissionais de outras áreas) é uma excrescência incongruente com a realidade. Porque você tem uma pandemia de altíssima complexidade e cerca de 15 mil médicos brasileiros formados no exterior que podem estar aptos a atuar na linha de frente. Infelizmente, o Ministério da Saúde está negligenciando a situação", diz o médico. "Já existe uma lei para contratá-los, a do Mais Médicos."

O médico Flavio Lima Barreto, formado na Bolívia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O médico Flavio Lima Barreto, formado na Bolívia
Imagem: Arquivo pessoal

"O principal motivo para a má vontade com o médico formado no exterior é, simplesmente, corporativismo. Muitos dos argumentos sempre levantados não param de pé", diz Lima.

"Diziam, por exemplo, que esses médicos não poderiam trabalhar pelo Mais Médicos sem um processo de seleção criterioso. E agora, com a pandemia, estão chamando profissionais de outras áreas e adiantando formaturas. Se o interesse fosse resguardar a população, chamariam os brasileiros formados no exterior. Não dão o braço a torcer nem em uma situação extrema ", argumenta o médico.

Ele faz questão de reforçar que os médicos brasileiros formados lá fora "não estão mendigando". "Nós queremos oportunidades. Em nenhum momento estamos falando em flexibilização ou fragilização de processos", diz Lima.

Colombiano dá aula de espanhol

E há um outro contingente de profissionais que também poderia ser útil: o de médicos estrangeiros que aguardam a realização de um novo Revalida. É difícil saber exatamente quantos esperam, mas nesse grupo estão casos como o do colombiano Camilo Vargas.

Ele atuou em um hospital em uma região pobre e conflagrada da Colômbia. No Brasil, dá aulas de espanhol em São Paulo, enquanto o Revalida segue sem data. "Acho que qualquer médico, mesmo recém-formado, está mais apto a atuar nesse momento do que um veterinário. Nada contra, mas o sistema imunológico dos animais é muito diferente do nosso", diz Vargas. "Os protocolos diferem muito."

Se Vargas estaria pronto para atuar contra a covid-19, caso fosse chamado? "Lógico que sim. Penso muito na vida, no meu futuro, e sinto muita saudade de estar em um hospital. Eu amo adrenalina, amo resolver as coisas, amo os sorrisos das pessoas."

A reportagem questionou o Ministério da Saúde e o MEC (Ministério da Educação) repetidamente a respeito do Mais Médicos e do Revalida. Não recebeu retorno.