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Covid-19: mais exposição de dados civis e menos transparência de governos?

Passageiro mostra ilustração do coronavírus em seu celular no aeroporto de Guangzhou, na província chinesa de Guangdong - EPA
Passageiro mostra ilustração do coronavírus em seu celular no aeroporto de Guangzhou, na província chinesa de Guangdong Imagem: EPA

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

15/04/2020 04h00

Pelo menos 25 países, incluindo o Brasil, já estão usando tecnologias de vigilância no combate ao novo coronavírus. O objetivo dos governos é acompanhar a movimentação dos cidadãos para evitar aglomerações, ou observar se alguém que tem Covid-19 (de forma sintomática ou assintomática) está desrespeitando a quarentena e teve contato com outras pessoas, possivelmente aumentando o contágio. Muita gente arregala os olhos ao pensar no que vai ser feito com tanta informação pessoal nas mãos de governos e empresas.

E o medo se justifica. Organizações como a Privacy International observam ações desse tipo no mundo todo e reúnem relatos de vigilância. Países como China e Índia já apresentam medidas que cruzam (ou ficam próximos) da linha do desrespeito à privacidade dos cidadãos. Um estado indiano, por exemplo, determinou que as pessoas em quarentena fizessem upload, em um aplicativo do governo, de selfies com tags de geolocalização a cada hora.

Na China, onde boa parte da vida já é regida por apps, uma das iniciativas que mais chamaram atenção foi o aplicativo que monitora os cidadãos e designa uma cor — verde, amarelo ou vermelho — que indica o risco de aquela pessoa ter contraído o novo coronavírus. A ideia, de acordo com o governo, é decidir quem poderia circular nas ruas e quem deveria ficar em quarentena em casa. Mas, como reportou o jornal The New York Times, o app aparentemente compartilha informações com a polícia e nem ao menos explica à população como é feita a classificação de risco, deixando muitos preocupados, sem saberem por que estavam no grupo vermelho.

"A questão é: como você pode usar tão intensamente dados dos cidadãos e determinar tantas coisas na vida deles, sem deixar claro quais são essas informações e por que essas decisões foram tomadas?", diz Mariana Valente, diretora do InternetLab, centro de pesquisas em direito e internet, sobre o aplicativo chinês. "O objetivo é positivo — saber quem pode voltar a circular, sair de casa —, mas é preciso transparência em dois níveis. Primeiro a transparência do governo, que deveria informar amplamente ao público dos critérios que está adotando, e segundo a transparência no nível do cidadão, que tem direito de saber quais dados estão sendo coletados sobre ele e o que está sendo feito com isso", afirma.

Boas práticas

Bruno Bioni, professor e fundador da Data Privacy Brasil, destaca que a ideia não é barrar o uso de dados importantes para mitigar os efeitos da pandemia. Pelo contrário: "Muitas vezes a proteção de dados pessoais é vista como um obstáculo, quando na verdade é um estímulo para que sejam articuladas ações mais eficientes", afirma o especialista. "Se você pensa em proteção de dados desde o início, ganha o governo, que vai poder tomar decisões mais eficientes, sem um nível de granularidade [especificidade dos dados, ou seja, quão detalhados eles são] desnecessário, e ganha o cidadão, que vai estar protegido", ressalta.

Um bom exemplo, segundo o especialista, é uma proposta debatida na União Europeia para a criação de um app concebido já levando em consideração privacidade e proteção de dados. Com um código aberto, que pode ser inspecionado por qualquer um, criptografia no próprio aparelho e um histórico detalhado de acesso aos dados, o aplicativo permitiria uma "contravigilância", explica Bioni.

Com transparência e objetividade, o governo coleta menos dados — apenas os essenciais — e deixa claro aos cidadãos qual o propósito daquela ação. Depois que a pandemia passar, não haverá em tese mais necessidade de mantê-los. Mas, sem declarar abertamente a intenção do uso das informações, a população fica no escuro. Será que esses dados serão destruídos ou serão vendidos e usados para traçar perfis específicos de consumo, de comportamento, de orientação política? Será que nossas informações coletadas em época de pandemia poderão, por exemplo, ser acessadas no momento da contratação de um plano de saúde no futuro, influenciando no preço?

Valente, do InternetLab, destaca que as perguntas sem resposta são muitas, já que falta transparência por parte de diversos governos na implementação dessas tecnologias. "A gente quer sim que mais dados sejam usados para superar essa situação. Mas como podemos fazer isso e garantir que os princípios que inclusive estão previstos na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) sejam respeitados? Essa é a questão mais importante", afirma.

Brasil e a LGPD

Aqui no Brasil, diversos estados fizeram parcerias com operadoras de telefonia celular para coletar dados de movimentação de milhões de cidadãos e, como é o caso de São Paulo, medir a taxa de isolamento social durante a quarentena. Em nível federal, havia um projeto, mas ele foi suspenso por Jair Bolsonaro (sem partido). Cinco operadoras de celular chegaram a confirmar que iriam compartilhar dados de localização dos usuários com o Ministério da Ciência, Inovação, Tecnologia e Comunicação (MCTIC). O objetivo era "acompanhar a movimentação de pessoas, o movimento dessas aglomerações" e possivelmente prever locais de risco de propagação do vírus, disse o ministro Marcos Pontes em vídeo que foi posteriormente excluído da página do MCTIC.

Pontes esclareceu, no Instagram, que as postagens foram apagadas porque o presidente Jair Bolsonaro pediu "prudência" com a iniciativa. "O Governo Federal ainda não usou esta ferramenta e que será usada APENAS se análises garantirem a eficiência e a proteção da privacidade dos brasileiros", escreveu o ministro. No post, ele ainda destaca que os governos estaduais (com os quais Bolsonaro tem antagonizado durante a crise do novo coronavírus) têm autonomia para fazer acordos diretamente com as operadoras.

Valente e Bioni são categóricos ao afirmar que a Lei Geral de Proteção de Dados — que entraria em vigor em agosto de 2020, mas deve ficar só para 2021 por causa da Covid-19 — deveria servir de norte no desenvolvimento dos sistemas de coleta e análise de informação dos cidadãos.

Além disso, ambos concordam que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) já poderia ser constituída e começar a trabalhar nesse sentido. A ANPD foi alvo de diversas polêmicas, principalmente por ter sido criada tardiamente, depois de ser vetada na LGPD, mas é considerada por Valente e Bioni como uma forma de trazer segurança neste momento. "Essa autoridade teria a capacidade de se juntar com ministérios, órgãos públicos e agentes privados e dizer: é assim que podemos tratar a proteção de dados no combate ao coronavírus", diz Bioni.

Se isso não for feito, ele sugere que a própria população acompanhe de perto as decisões sobre coleta e uso de dados. "É preciso haver uma discussão pública sobre essas políticas que são públicas. Isso envolve, por exemplo, que parcerias entre o setor público e privado sejam colocadas nos portais da transparência. É preciso que tudo seja proativamente publicizado", defende.

"Estado de sítio" virtual?

Acontece que não estamos tão bem assim no quesito transparência. Ao mesmo tempo em que coleta e analisa com mais frequência os dados dos cidadãos, o poder público não parece fazer o caminho inverso e disponibilizar seus dados para a população. A Open Knowledge Brasil, organização que analisa políticas públicas e incentiva o uso de dados abertos, concluiu que, até a o início de abril, apenas seis estados brasileiros tinham nível bom ou alto de transparência sobre os dados da pandemia.

O projeto Transparência Covid-19 analisa semanalmente se os entes federativos estão publicando informações suficientes (e de maneira acessível) sobre a pandemia. São levados em conta, por exemplo, a frequência e o detalhamento dos boletins epidemiológicos, assim como a disponibilização das bases de dados usadas para construí-los.

"Você quer entender as diferentes variáveis, o que influencia na doença. Quanto mais informação a gente tiver sobre isso, melhor", afirma Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil. Ela explica que a abertura de dados públicos não briga com a proteção de dados pessoais. "São duas faces da mesma moeda: transparência e privacidade. Quando a gente faz um processo de abertura de dados públicos, um dos primeiros passos é fazer uma avaliação de risco sobre se aquela informação vai expor ou não dados pessoais."

Em época de pandemia, é compreensível que alguns serviços estejam mais lentos ou que algumas informações estejam menos acessíveis. Arquivos físicos, por exemplo, são mais difíceis de consultar em setores nos quais os servidores estão trabalhando em regime de home office. Mas a Covid-19 tem sido usada como justificativa em outros casos. Isso foi o que a própria Open Knowledge e outras organizações perceberam.

A Fiquem Sabendo, agência de dados independente e especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI), está recolhendo depoimentos de pessoas que tiveram pedidos de LAI negados com alguma justificativa envolvendo o coronavírus.

Bolsonaro chegou a assinar um medida provisória que continha um trecho permitia ao governo ignorar determinados pedidos de LAI por conta da pandemia, mas o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes revogou essa decisão.

"Em tempos normais, a transparência já é um tema negligenciado. Agora, o que o governo fez com a MP foi equivocado e desproporcional. Teria que dar a resposta [aos pedidos de LAI] de outro jeito. Talvez até abrir os dados já seria uma boa medida para reduzir a quantidade de pedidos", opina Campagnucci.

Bolsonaro disse, em março, que "ainda" não considerava decretar estado de sítio por causa do novo coronavírus — medida que suspende diversas garantias constitucionais. Por enquanto, a população e as instituições independentes se mantêm atentas para não abrir brecha para um "estado de sítio" virtual.