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Como a animação 'The Midnight Gospel' nos ajuda a atravessar a pandemia

Reprodução/Netflix
Imagem: Reprodução/Netflix

Nathan Fernandes

Colaboração para o TAB

25/05/2020 04h00

"Se você não tem um planejamento, qualquer resultado serve." Esse é o mantra que o contador formado em Direito Leon Fernandes entoa para todos os clientes que buscam orientação. "Percebi que falo isso para todo mundo, mas nunca exerci na minha própria vida. O desenho me deu esse estalo", diz ele, referindo-se à animação "The Midnight Gospel", da Netflix.

A série de oito episódios, que estreou em abril, é fruto da parceria entre o produtor Pendleton Ward, criador de "Hora de Aventura", e o comediante norte-americano Duncan Trussell. Baseados nas entrevistas reais que o ator conduziu no podcast "Duncan Trussell Family Hour", os episódios trazem especialistas que refletem sobre filosofias orientais, angústias existenciais e a natureza da realidade, enquanto lidam com ataques zumbis, brigas de titãs ciumentos e demônios que vivem dentro de bundas.

O desenho é uma cacofonia de estímulos dissociados entre fala e imagem que causam uma espiral de vertigens, como se o nosso cérebro girasse em uma máquina de lavar no nível "turbo" — guias podem ajudar a organizar o caos mental. Quem vence os primeiros estágios de confusão é recompensado com conhecimentos que podem despertar partes sonolentas da consciência.

Nas redes sociais, desde a estreia, brotam depoimentos afirmando que a série oferece ferramentas para lidar com questões antes ignoradas e que os temas tratados são ideais para serem trabalhados durante a quarentena.

"Eu concordo, mas tenho dificuldades com isso", diz o cocriador da série Duncan Trussell, ao TAB.

"Não quero que a série se beneficie de pessoas morrendo. Ao mesmo tempo, fico feliz, porque os convidados dos episódios têm coisas maravilhosas para dizer e oferecem métodos pragmáticos para atravessar o sofrimento e encontrar um lugar estável, que não seja baseado nos noticiários."

Duncan Trussell, cocriador da série The Midnight Gospel

Assim como a Árvore da Vida da Cabala (símbolo que tem destaque no episódio 7) e a tríade hindu, formada pelos deuses Vishnu, Shiva e Brahma, as informações do desenho podem se dividir em três categorias principais: vida, morte e renascimento. "Um dos paradoxos mais legais da existência é que essas três forças (da preservação, da destruição, e da regeneração) funcionam no Universo simultaneamente, por meio de uma dança incrível", observa Trussell.

A VIDA

Uma das capacidades da série, segundo o psiquiatra da Unicamp Luís Fernando Tófoli — que pesquisa o uso terapêutico de substâncias psicodélicas — é a de nos desnortear. "Se tem uma coisa que esse fenômeno invisível e matador do novo coronavírus deixou claro é que nós não controlamos nada. Não controlávamos antes, não controlamos agora. A gente só tem a ilusão de controle. Isso é uma coisa clara na série: é preciso um exercício de contemplação. Me colocar nessa posição foi muito terapêutico."

O episódio 5 é um exemplo de como essa ilusão de controle nos afeta. Ao ativar seu simulador de planetas e visitar um mundo que guarda uma prisão habitada por seres "tão furiosos com o medo existencial que arrancaram a própria língua", o personagem Clancy descobre que a única forma de interromper o ciclo de sofrimento de morte e vida é assumindo a nossa total falta de controle e aceitando a situação como ela é.

Assim como uma barriga chapada, essa aceitação pode ser obtida através de exercícios. Mas, em vez do corpo, treinamos a mente, através de técnicas de meditação como a da atenção plena (ou mindfulness), citada ao longo da série.

"É importante aceitarmos a experiência que estamos vivendo, porque ela já está presente, independentemente do nosso controle", explica Sonia Beira Antonio, instrutora de mindfulness pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que já coordenou programas de meditação para policiais. "Aceitar as coisas nos permite começar de onde realmente estamos, em vez de onde gostaríamos de estar. Não quer dizer que precisamos gostar do que estamos vivendo. Mas só quando aceitamos o presente é que percebemos as escolhas que temos e vemos possibilidade de mudança."

Animação "The Midnight Gospel" - Divulgação/Netflix - Divulgação/Netflix
Imagem: Divulgação/Netflix

A MORTE

"Essa temporada diz muito sobre perdas e luto", confessa Trussell. "Acho que todos estamos tendo experiências de luto, não só pelas pessoas que perdemos para a Covid-19, mas pela nossa forma antiga de existir no planeta."

Na série, assim como na vida, a morte está à espreita em vários episódios e chega a ser a protagonista do sétimo. Em nenhum momento ela assusta — nem quando leva um ente querido. A forma que a morte é retratada na série indica que, pelo menos durante os vinte e poucos minutos dos episódios, nossa relação com ela pode ser mais saudável, ainda que de forma irônica.

Essa forma diferente de entender o fim da existência pode ser útil em um momento no qual William Bonner nos lembra disso toda noite. O psicanalista João Pentagna, mestre em psicologia clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), usa elementos da obra do escritor Carlos Castañeda como lição para o fato com o qual todos terão que lidar. "O que talvez possamos aprender com a pandemia e com a ameaça da morte é a transformá-la em uma aliada, aceitando o que passou e nos responsabilizando pelo porvir", diz.

"Se o passado nos deixa numa melancolia nostálgica, e o futuro nos faz ansiosos enquanto não chega, só no presente encaramos um morrer sem limites. Presente é o tempo das metamorfoses, quando podemos reverter o pânico em criação"

João Pentagna, mestre em psicologia clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP

No episódio 8, em um diálogo real entre Trussell e sua mãe (psicóloga que morreu em 2013), ela afirma: "Chorar quando precisar e encarar a morte, mesmo que tenha medo, não vai te machucar. Veja o que ela tem a ensinar. Ela é uma ótima professora, e não cobra nada".

Animação "The Midnight Gospel" - Reprodução/Netflix - Reprodução/Netflix
Imagem: Reprodução/Netflix

A REGENERAÇÃO

Foi assistindo ao episódio 3 que o contador Leon Fernandes percebeu que deveria renascer de alguma forma. Nesse episódio, o convidado explica que magia é intenção e energia, direcionadas a um foco. "Sempre sonhei em conquistar coisas. Mas nunca me dediquei a algo com uma finalidade. Costumo me concentrar nas oportunidades que aparecem e aceito o resultado que vier. O episódio me fez perceber que falta planejamento", explica.

A ideia de renascimento surge em outros momentos da série, como quando o personagem principal dá à luz à mãe, ou quando uma das convidadas compara a morte de Jesus Cristo com o trabalho de parto. "Você contrai, comprime, depois solta e respira. (...) E sabe o que sai disso? Uma nova vida", diz ela. A própria máquina que dá origem aos mundos simulados de Clancy tem a forma de uma vagina gigante.

É por tratar de temas como esse que é difícil enquadrar a série na prateleira de "desenhos para ver chapado". Para o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, a animação vai além.

"Acho que a série fala sobre a experiência da transcendência, que pode vir pelo uso dos psicodélicos ou não, mas que também passa por várias outras coisas como sonhos, intuições, visões, meditações e experiências de adoecimento e sofrimento"

Luís Fernando Tófoli, psiquiatra da Unicamp, pesquisador de psicodélicos

Segundo o historiador israelense Yuval Harari, é possível que, depois da pandemia, as pessoas fiquem com mais vontade de viver, porque, como escreveu em um artigo para o jornal britânico The Guardian, traduzido pela Folha de S.Paulo, ele não vê uma resignação com a situação atual, mas uma mistura de indignação e esperança.

Trussell parece imbuído dessa esperança indignada. "Dizem que historicamente, depois de grandes pandemias, existe a renascença. É claro que eu quero que o planeta encontre uma harmonia. Não me importo de parecer um hippie ridículo. Tenho um filho, não quero que ele viva num mundo onde as pessoas resolvem as coisas explodindo umas às outras. Se a série ajudar nessa harmonia, pelo menos um pouco, vou ficar feliz."

O ator se mostra ainda interessado em temas da cultura tradicional brasileira, como o uso do chá de ayahuasca —, feito a partir da mistura de plantas da Amazônia —, cujo uso ritualístico é legalizado no país desde 1986. "Muita gente ainda acha que tecnologia é tipo um telefone. Mas precisamos entender que a natureza é a tecnologia mais avançada que temos. Aliás, não só isso, ela é um organismo vivo, e quer muito conversar com a gente. Essas plantas podem ser uma forma dessa conversa acontecer", acredita Trussell, sem confirmar uma segunda temporada da série, mas sugerindo que, depois de um apocalipse, só pode vir a gênese.