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'Fiscal de delivery': existe uma forma ética de pedir comida na pandemia?

Entregadores de aplicativos dividem reclamações sobre a intensa rotina de entrega - Getty Images
Entregadores de aplicativos dividem reclamações sobre a intensa rotina de entrega Imagem: Getty Images

Marie Declercq

Do TAB

02/06/2020 04h00

O debate sobre o uso de aplicativos de entrega de comida como Rappi, iFood e UberEats já existia desde antes do começo da pandemia — muito por conta das condições de trabalho dos entregadores cadastrados, e também do impacto causado em restaurantes pequenos. Com o início da quarentena, o delivery ganhou ainda mais popularidade: desta vez, por questões de segurança, por contribuir para a diminuição da circulação de pessoas nas ruas e, consequentemente, no contágio pelo novo coronavírus. Por conta disso, o debate se é ético ou não fazer uso desse tipo de serviço se tornou inevitável. Até que ponto é correto depender do delivery para se alimentar nesse período?

Só em São Paulo, são milhares de entregadores atendendo desde antes da pandemia. O trabalho é puxado e, caso a pessoa fique doente, é um dia sem ganhar dinheiro para se sustentar. É a realidade vivida dos 41,1% de brasileiros que trabalham no mercado informal — e sofrem prejuízos imediatos com a crise econômica e a precarização do trabalho, que vem se intensificando nos últimos anos, especialmente com a "uberização" de atividades econômicas.

Para entender quais são os conflitos e as melhores formas de usar o aplicativo de forma mais ética, o TAB conversou com entregadores e donos de restaurantes, que explicaram que uma solução sem plataformas está ainda longe de ser viável.

"Nós também somos um serviço essencial"

Desde o começo da pandemia, o ator Leo Oliveira foi um dos profissionais da classe artística que precisou se virar para pagar as contas durante a quarentena. Nos últimos dois meses, está trabalhando como entregador de aplicativos na região central capital do estado de São Paulo. Durante a rotina puxada de entregas, Oliveira precisa lidar não só com os cuidados básicos para se proteger da Covid-19, mas também com a falta de transparência dos aplicativos — que aplicam penalidades e criam contratempos com clientes que pedem pela plataforma.

Leo Oliveira, ator, começou a fazer entregas por aplicativos por causa da pandemia - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Leo Oliveira, ator, começou a fazer entregas por aplicativos por causa da pandemia
Imagem: Arquivo Pessoal

Recentemente, Oliveira foi desligado sem maiores explicações do aplicativo Rappi. Apesar de ter uma ideia de que foi por conta de uma avaliação negativa, afirma que em nenhum momento recebeu explicações da empresa. "Nós somos tratados mal pelo suporte e por algumas pessoas que não sabem lidar com o erro. Fui bloqueado porque fui atender uma blogueirinha que queria fazer uma compra de R$ 600. Quando estava no mercado, tive que trocar alguns itens que estavam em falta e ela autorizou tudo. Porém, quando cheguei na portaria dela, fiquei debaixo de chuva esperando que ela mandasse o código de verificação. Tive que ficar ali porque me informaram que ela estava gravando e não poderia atender na hora. Foi uma entrega que me demoraria 30 minutos, mas levou três horas. Quando cheguei em casa, ela me mandou o código — e vi que fui bloqueando por tempo indeterminado pela Rappi", relata.

Oliveira acredita que o trabalho de entregador é tão essencial quanto o de médicos, enfermeiras, farmacêuticos e todos os que estão na linha frente no combate à Covid-19. Além disso, é o que o está ajudando a pagar as contas de casa, junto com a esposa, que trabalha atualmente em home office.

Nosso serviço é tão essencial quanto os realizados por farmácias e de enfermeiros. Muitas pessoas pessoas precisam estar dentro em casa na quarentena. E como elas vão comer? O que não é ético é quando as pessoas fazem coisas chatas com muitos entregadores. Eu acho errado você pedir uma cerveja ou pedir uma coisa para curtir pelo delivery. Querer fazer um churrasco em casa e mandar um cara comprar uma carne para fazer seu churrasco com os seus amigos. Mas, para pessoas em grupo de risco, é uma segurança.
Leo Oliveira, entregador de aplicativos e em uma empresa de entregas

Para Natália*, a vida não seria melhor sem depender dos aplicativos, porque é o que garante seu sustento. No entanto, ela afirma que falta mais reconhecimento e respeito por parte das empresas. "Acho justo uma paralisação para os aplicativos entenderem que somos prestadores de serviço da mesma forma e merecemos mais respeito, principalmente pelos bloqueios sem motivos declarados. Nós precisamos deles assim como precisam de nós", diz.

Nas 10 horas diárias de trabalho pelas ruas de São Paulo, Natália reclama da falta de assistência das empresas para realizar seu serviço. "Nós temos que comprar todos os equipamentos, eles não dão nada de graça. Temos que comprar a bag (a caixa com o logo da empresa), camiseta com proteção solar e jaquetas", diz. Na rua, também estão sozinhos para conseguirem se proteger do contágio do vírus. A entregadora conta que só conseguiu uma máscara desde o começo da pandemia — e só consegui álcool em gel duas vezes.

Na Barão de Itapetininga, entregadores de aplicativos esperam pedidos em frente a redes de fast food - BBC - BBC
Na Barão de Itapetininga, entregadores de aplicativos esperam pedidos em frente a redes de fast food
Imagem: BBC

Dá para melhorar

Os entrevistados deram algumas orientações que podem ajudá-los no trabalho. São pequenos atos que podem facilitar o dia-a-dia deles. Para os clientes, pedem paciência caso o pedido demore, além de mais atenção aos chats disponibilizados pelas plataformas, boas avaliações e e gorjetas — especialmente quando a compra é pesada. Já para os estabelecimentos, alertam que faltam banheiros disponíveis para eles e também pedem mais paciência devido à alta demanda de entregas.

Para Natália, as pessoas que solicitam os pedidos por meio das plataformas poderiam fazer pequenas gentilezas para facilitar sua jornada de trabalho. Com a pandemia, a entregadora disse que muitas estão mais compreensivas com os problemas eventuais que acontecem. "Os clientes podem ajudar quando puderem oferecendo água, sendo mais pacientes, e quando veem que a compra é pesada, podem ajudar mais na gorjeta. Por exemplo, uma cliente falou para eu pegar algo para comer no mercado e incluir na compra. Isso é uma forma de ajudar", explica.

Por mim, as empresas deveriam nos dar até protetor solar.
Natália*, entregadora de aplicativo

A avaliação feita sobre o serviço dos entregadores também é um aspecto importante para quem depende dos aplicativos para trabalhar, até porque é por causa delas que as empresas de tecnologia podem banir um fornecedor. "As avaliações também contam pra gente, mas a política do aplicativo é bem chata. Se o cliente der nota baixa, temos que fazer um curso de reciclagem e podemos correr o risco de perder a conta. Sei que devemos exercer um bom trabalho e sermos avaliados por isso, mas não sabemos nem os erros que cometemos para tentar melhorar, pois o app não nos informa. Ou seja, se por um motivo banal o cliente dá nota baixa, já nos prejudica."

Deletar o app sem uma alternativa mais justa não resolve nada

Desde o fechamento de restaurantes na capital de São Paulo, Rodrigo Levino, sócio proprietário do Jesuíno Brilhante — restaurante especializado na culinária do Rio Grande do Norte — precisou montar, em três dias, uma operação de entregas no iFood para continuar aberto e pagar seus funcionários.

Para o proprietário, a ideia de fazer campanha contra os aplicativos é injusta, especialmente por não haver uma solução melhor no momento para pequenos negócios e trabalhadores que dependem disso.

"Eu vou funcionar como? Quem vai pagar meus funcionários? Ninguém odeia mais os aplicativos de entrega do que eu, que sou dono de negócio e tenho que entregar 20 a 25% direto para eles, automático. Quando vi uma campanha nas redes sociais pedindo para deletar os aplicativos de entrega, pensei: 'Tá, vou chegar na minha cozinha e dizer pra todo mundo se virar, porque a partir de amanhã, usar iFood é muito injusto'. O iFood, infelizmente, é a única saída para muita gente", explica.

A pessoa está mergulhada até a cabeça no capitalismo tardio e aí, agora, despertou para uma consciência de não pedir comida. Não dá para você achar que vai destruir um negócio sem colocar outro no lugar.
Rodrigo Levino, sócio proprietário do Jesuíno Brilhante

Levino disse que os clientes podem ajudar com gorjetas e levar máscaras extras e álcool em gel para o entregador. No Jesuíno Brilhante, disse que deixa o banheiro e álcool em gel à disposição. Além disso, está estudando uma forma de vender marmitas mais baratas e vende bebidas a preço de custo para os entregadores.

Restaurante abriu mão de aplicativos

Como apontando em uma reportagem da "BBC Brasil", pequenos empresários sofrem com as taxas abusivas cobradas pelas empresas que comandam as plataformas de entrega. Alguns restaurantes já estão tentando encontrar soluções que não dependam disso.

Em entrevista ao TAB, os sócios do Hanjou Sushi Bar & Restaurante no Brooklin, bairro na zona sul da capital, contaram que abriram mão dos aplicativos por completo. Agora, eles mesmos fazem as entregas de carro. Segundo Marcio Gobara, um dos sócios, as plataformas servem mais como uma ferramenta para divulgar o estabelecimento especializado em comida japonesa.

Mensagem automática enviada pelos sócios do Hanjou, restaurante de comida japonesa em São Paulo, para pedidos de delivery sem a ajuda de aplicativos - Reprodução - Reprodução
Mensagem automática enviada pelos sócios do Hanjou, restaurante de comida japonesa em São Paulo, para pedidos de delivery sem a ajuda de aplicativos
Imagem: Reprodução

Antes da quarentena, Gobara explica que o forte do restaurante sempre foi o atendimento presencial, mas que passaram a aceitar pedidos por telefone e por WhatsApp. "Os clientes gostam por ser o dono que está levando a comida para eles — e como entregamos de carro, a comida não chega revirada", diz. "Antes da pandemia, fazíamos em média 15 entregas por semana. Agora, aumentou para 60".

O sócio diz que o atendimento ao cliente se tornou melhor sem os aplicativos, mas revelou que a equipe ainda está se adaptando à demanda do delivery. O estabelecimento segue sem entregar por intermédio das plataformas. "Fora a taxa [cobrada pelos apps], a comida revirada e algumas vezes o entregador sumir com a comida, os clientes gostam de falar com alguém e tirar dúvidas que não estão no aplicativo".

Boicotar é a solução?

Para Felipe Moda, sociólogo e mestrando em Ciências Sociais pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), o boicote até pode ser uma solução para quem é contra a política das plataformas, mas, normalmente, os maiores afetados por ele serão os entregadores. Moda estuda especificamente as questões de trabalho dentro desses aplicativos e participou recentemente do UOL Debate.

"A pergunta sobre ser ético ou não pedir delivery tem uma contradição forte, porque modelo dessas empresas faz com que o entregador — e não a empresa —seja o maior penalizado caso você deixe de pedir entregas," explica. "Essas empresas de aplicativos têm um modelo bem predatório de entrada no mercado. No começo, para quem é usuário, é mais barato do que fazer um pedido direto no restaurante. Elas se valem desse monte de capital investido para entrar nos mercados, fazem monopólio, cobram taxas altas, mantém os entregadores com condições péssimas de trabalho e os usuários ficam nesse cabo de guerra."

Para não prejudicar quem está na rua fazendo entregas, fora as dicas dadas pelos entregadores ouvidos pelo TAB, Moda recomenda que os consumidores fiquem mais atentos às reivindicações de trabalho feitas por eles. "O ideal seria auxiliar as demandas desses trabalhadores. Eles já organizaram diversos protestos. A gente participando, divulgando e cobrando das empresas, acho que ajudaria muito mais."

* O nome foi trocado a pedido da entrevistada, por medo de represálias.