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O misterioso 'modelo japonês' contra a Covid-19 não é exemplo para o mundo

Tóquio, Japão - Fly D/Unsplash
Tóquio, Japão Imagem: Fly D/Unsplash

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

19/06/2020 04h00

"É o poder do modelo japonês", definiu o primeiro-ministro Shinzo Abe, ao declarar em fins de maio o fim do estado de emergência no Japão. "Em um estilo tipicamente nipônico, nós quase conseguimos controlar inteiramente a epidemia [de Covid-19] em um mês e meio", elogiou o premiê.

Um dos primeiros portos do novo coronavírus pós-Wuhan, o Japão identificou o primeiro caso em janeiro, passou o boom do navio Diamond Princess em fevereiro, viu a curva subir em março, acelerar em abril e achatar em maio - surpreendentemente, sem super testagens indicadas pela OMS (como fez a Coreia do Sul) ou diretrizes rigorosas de lockdown (como a Nova Zelândia). Ainda assim, junho já nasceu sob o signo do "novo normal" deste lado do mundo.

A julgar pelos números oficiais, a estratégia japonesa funcionou: até 9 de junho, foram 17 mil casos — 15 mil deles já recuperados — e 920 mortes. Extraoficialmente, entretanto, ninguém sabe ao certo como funcionou. "Analisando o número de mortes, pode-se dizer que o Japão foi bem-sucedido, sim. Mas nem os especialistas sabem o porquê", ponderou Mikihito Tanaka, da Universidade Waseda, à agência americana Bloomberg. E, como criticou Hisahiko Yano, da revista japonesa Nikkei Asian Review, sem saber como acertou "no escuro", o modelo japonês tem pouco a oferecer de lições para o resto do mundo.

Para Kentaro Iwata, diretor da divisão de doenças infecciosas da Universidade de Kobe, a fórmula japonesa combinou múltiplos fatores. "Agora, é preciso investigar cada um deles detalhadamente, para descobrir o que de fato funcionou", diz ao TAB.

Entre as hipóteses sobre o sucesso do modelo japonês que inundam a internet, viralizou uma lista — disponível em japonês e em inglês — elencando 43 fatores que contribuíram para o controle do vírus. Trata-se de um mix de apostas e simples suposições de leigos, além de análises aventadas por especialistas ao longo da pandemia.

Os 43 porquês

Além de clichês como "todo mundo usa máscara o tempo todo no Japão" — o que está bem longe da realidade, basta espiar a esquina ou zapear o Instagram —, a lista inclui hipóteses como costumes culturais (o ojigi, tipo de reverência a distância, pois não são comuns cumprimentos como beijos e abraços), características étnicas (leste-asiáticos seriam geneticamente mais resistentes ao vírus) e políticas (o timing das decisões do governo, acelerado a partir da experiência do Diamond Princess).

Há também teses prováveis (a morte do ator Ken Shimura teria despertado a sociedade para a gravidade da Covid-19), improváveis (asiáticos já estariam imunizados por outros tipos de Sars-Cov) e bizarras (a ausência de certas consoantes na língua japonesa, o que emitiria menos gotículas de saliva carregadas de vírus volitando por aí). Nenhuma delas, entretanto, foi confirmada cientificamente.

Cientistas, aliás, estão intrigados pelo "paradoxo japonês", nas palavras de Hajime Inoue, referindo-se ao diminuto número de mortes, apesar das restrições relativamente brandas, em carta publicada no periódico Global Health & Medicine. Uma "anomalia" asiática, segundo a expressão de Akiko Iwasaki e Nathan Grubaugh, em análise na revista Embo Molecular Medicine.

Iwasaki e Grubaugh descartam especulações como costumes culturais — distanciamento físico é uma ilusão nos trens na hora do rush, lembram os autores — e a presença de versões amenas do vírus no território japonês, o que é possível, mas improvável, visto que os casos de janeiro e fevereiro vieram de Wuhan, mas a partir de março já estavam ligados a viajantes vindos da Europa. Só estudos científicos, ponderam os autores, poderão verificar outras hipóteses: o perfil da proteína ACE2 e do gene HLA dos japoneses, além do papel da vacina BCG, obrigatória desde a década de 1940 no Japão. "Há muitas teorias, mas não temos informações suficientes para determinar a causa da discrepância impressionante de Covid-19 no Japão", destacam. Noves fora, o mistério do modelo japonês também intriga a nós, jornalistas.

"O Japão parece ter feito tudo errado. O país testou apenas 0,185% da população, o distanciamento social foi frouxo e a resposta do governo à crise é majoritariamente criticada. Ainda assim, com um dos índices de mortalidade mais baixos do mundo, um sistema de saúde que não foi sobrecarregado e uma tendência decrescente de casos, tudo parece ter estranhamente dado certo", escreveu o jornalista norte-americano William Sposato, na revista Foreign Policy. O artigo foi traduzido e publicado na Newsweek nipônica e se tornou trending topic (assunto mais comentado do dia no Twitter) aqui no arquipélago. Tanto que o governo passou a investir em um tipo de campanha de relações públicas para tentar explicar a estratégia ao resto do mundo, como informou o repórter japonês Rintaro Tobita, da Nikkei Asian Review.

Os 3C

O que o Japão não fez está claro: sem testes e sem lockdown, o país foi alvo de críticas e acusações de, deliberadamente, recusar testes para manter os números oficiais baixos e, assim, preservar o mercado, tentando garantir a Olimpíada neste ano. Se era esta a ideia, não vingou: a economia entrou em recessão pela primeira vez desde 2015 e os jogos foram remarcados, até segunda ordem, para 2021.

Já o que o Japão fez não está tão claro. A campanha, simples, se concentrou nos "3C": evitar closed spaces (lugares fechados), crowded places (lugares lotados) e close-contact settings (contatos próximos), divulgados assim, em inglês. Em fins de fevereiro, o governo "propôs" a primeira interrupção das aulas, do primário ao colegial. Em março, passou "orientar" (não ordenar) a população a evitar saídas desnecessárias, no slogan global "fique em casa". Entre abril e maio, o estado de emergência permitiu às autoridades "pedir" (não impor) a suspensão temporária de atividades não essenciais, como bares e cassinos. Os verbos destacados importam.

Campanha japonesa dos 3C - Divulgação - Divulgação
Campanha japonesa dos 3C
Imagem: Divulgação

Um dos segredos do sucesso, apostou Tomoya Saito, diretor do departamento de administração de crises do Instituto Nacional de Saúde Pública, em artigo (de estilo campanha de relações públicas) publicado no diário britânico The Guardian, teria sido a sociedade respeitar as regras do 3C, graças à "lealdade" dos japoneses a normas não ditas. Quer dizer, não foi preciso a ordem, bastou o pedido.

"É o soft power japonês", diz Taggart Murphy, professor emérito da Universidade de Tsukuba e autor de "Japan and the shackles of the past" (Oxford University Press, 2014), em conversa com o TAB por Skype.

A diretriz mais dura foi o fechamento das ilhas, restringindo a entrada de estrangeiros de mais de 100 países, incluindo o Brasil. A mais invisível foi a política de rastreamento, que focou no monitoramento dos contatos envolvidos em um único caso de Covid-19: nesta abordagem, profissionais buscam mapear onde o indivíduo foi infectado, identificar com quem ele esteve e monitorar quem mais passou pelo endereço xis, o marco zero da infecção. Em vez de disponibilizar testes a todos, o governo preferiu limitá-los a determinados casos, a fim de evitar aglomerações nos hospitais e provocar novos focos de contágio. É difícil imaginar um modelo assim, ancorado em simples pedidos e rastreamento ponto-por-ponto, funcionar no mundo todo.

Pós-Covid

Para Haruka Sakamoto, do departamento de política global de saúde da Universidade de Tóquio, ninguém entendeu direito essa estratégia, que de fato é diferente do resto do mundo. A singular super triagem japonesa, filtrando e analisando apenas casos mais graves, afinal, contraria a diretriz da OMS: "Testem, testem, testem. Testem todo caso suspeito". Paradoxalmente, Tedros Ghebreyesus, diretor da OMS, se referiu ao modelo japonês como "um sucesso" após o fim do estado de emergência. Um sucesso fora da curva, diga-se.

Em março, a realidade japonesa ainda era nebulosa: o pior já passou ou está por vir?, questionava-se à época. Três meses depois, o pico passou e o saldo surpreendeu positivamente. E, como certa vez destacou Murphy sobre a incerteza dos indicadores oficiais, é possível subnotificar casos, mas não esconder corpos. "Testando, tendo casos ou não, não houve aumento dramático no índice de mortalidade de país, onde idosos são quase 30% da população."

Apesar dos ares de otimismo, ainda há uma nuvem de ceticismo sobre o sucesso da estratégia na pandemia. Não se passam 24 horas sem um post questionando a ausência de mais testes e a transparência de dados no fórum Covid-19 Japan, por exemplo. Se o pior já passou, o que vem agora?

"Neste momento, não é realista considerar o controle da infecção total e, até certo ponto, nós precisaremos conviver com o vírus", destaca Sakamoto, em entrevista ao TAB. "Nossas vidas vão gradualmente voltar aos eixos. Isso não quer dizer voltar a uma realidade pré-Covid-19. Precisamos nos adaptar ao famoso novo normal para impedir novas ondas", diz. "Nunca vamos poder dizer 'é 100% seguro' sair até a descoberta de uma vacina ou do controle total do vírus. Até lá, sempre será um equilíbrio entre o risco de ser infectado e ter uma vida minimamente normal."

Sakamoto, 37, voltará a dar aulas em Tóquio. Murphy, 67, voltará a visitar amigos em Yokohama. Isolada desde 13 de março, também pretendo voltar a ver família e amigos. Aichi, onde estou, registrou 510 casos - entre eles, 463 recuperados e 34 mortos; restam 13 casos ativos na província. Tóquio, por sua vez, após a confirmação de 34 novos casos no dia 2 de junho, emitiu alerta para lembrar que o coronavírus continua rondando a capital. Pós-Covid, a realidade será assim, sempre alerta.