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Pesquisa reflete medos e angústias na pandemia; favelas sofrem mais

Um menino carrega doações de ajuda fora da favela da Rocinha durante o surto de doença por coronavírus (COVID-19), no Rio de Janeiro - Ricardo Moraes/Reuters
Um menino carrega doações de ajuda fora da favela da Rocinha durante o surto de doença por coronavírus (COVID-19), no Rio de Janeiro Imagem: Ricardo Moraes/Reuters

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

25/06/2020 04h00

No início de maio, a ciberativista Triscila Oliveira começou a sentir os sintomas da Covid-19. Ela e a mãe, moradoras de um bairro periférico de Niterói (RJ), se cuidavam desde abril e já saíam de máscara e luvas, mesmo antes das recomendações oficiais. Só iam ao mercado e à farmácia, saindo o mínimo possível, conta ela ao TAB,

"O maior medo é realmente pela falta de acessibilidade a serviços de saúde. Como a gente bem sabe, dificilmente o SUS sustenta essa pandemia", diz ela, que foi com a mãe a uma Unidade Básica de Saúde. Sem teste, as duas foram orientadas a se cuidarem em casa — como ocorre com a maior parte dos casos em que o paciente não sente falta de ar.

O receio da mãe e da filha de não conseguirem tratamento adequado, caso precisassem, reflete o que foi constatado por uma pesquisa do LAV-UERJ (Laboratório de Análise da Violência do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), realizada entre os dias 4 e 15 de maio, pela internet, com 1.203 moradores da cidade do Rio de Janeiro.

Mais de 80% disseram ficar ocasionalmente, muitas vezes ou na maioria das vezes nervosos ou ansiosos ao assistir a notícias e histórias sobre o novo coronavírus, e 44% relataram já ter sentido palpitações (pelo menos ocasionalmente) ao pensar em ser contaminado. Falta de interesse ou pouco prazer em atividades do dia a dia (58,1%), cansaço (54,5%) e angústia (46,9%) são as sensações negativas predominantes marcadas pelos entrevistados.

"Antes de começar a pesquisa, estávamos pensando muito na questão da saúde mental, do medo. Isso acaba sendo deixado de lado, mas na verdade é extremamente importante", avalia Doriam Borges, professor do Departamento de Ciências Sociais da UERJ e responsável pelo estudo.

O dado que mais chamou atenção dos pesquisadores, segundo Borges, é que o receio de ter Covid-19 e de morrer em consequência disso é maior para aqueles que moram em favelas. 71,8% dos habitantes desses locais que responderam à pesquisa disseram temer o vírus, ante 55,6% dos que não moram em favelas; e 56% dos que moram nas favelas afirmaram ter medo de morrer por Covid-19, contra 33,7% do restante da população.

Ausência do Estado

"São as pessoas que acabam se expondo mais, porque têm que trabalhar fora de casa e usam transporte público, por exemplo. Sabemos que há ausência do Estado nas favelas, e essas pessoas passam por situações que geram incômodo e medo", afirma Borges.

O professor ressalta que esse é mais um tipo de violência cometido contra a população das favelas e das periferias em geral, e afirma acreditar que o cenário do Rio de Janeiro se reproduza em outras grandes cidades.

Thiago Vinicius, da Agência Solano Trindade, que atua na região do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, confirma a impressão. "O receio das pessoas é muito mais do fato de não terem vaga no hospital, não terem pleno atendimento. A gente vê as notícias de que as vagas estão acabando, e a cada dia é recorde de morte. Ao mesmo tempo, a gente fica receoso com a falta de geração de renda", diz.

Borges, que considera a ausência do Estado também um tipo de violência, observa que essa é uma situação com a qual os moradores das favelas e das periferias já convivem. "Antes da pandemia, os moradores das favelas já vivenciavam uma situação de medo de perder a vida, por exemplo, em função dos tiroteios em operações policiais. Sair de casa muitas vezes já era risco de vida."

Presença da comunidade

Vinicius ressalta que os programas de associações como a Agência Solano Trindade conseguem chegar com mais rapidez que o Estado. Cientes das necessidades específicas dos moradores da vizinhança, os grupos conseguem fazer ações mais direcionadas, como a distribuição de cestas básicas (com alimentos comprados na própria comunidade), produtos de higiene e até mesmo um auxílio financeiro organizado pela Agência para os moradores que mais precisam. Segundo Vinicius, esse dinheiro chegou mais rápido aos moradores do Capão Redondo do que o auxílio emergencial do governo federal.

Para ele, a equação é simples: os moradores da periferia têm mais medo porque confiam na autoridade dos cientistas e médicos, e mesmo assim não podem se isolar, porque não podem deixar de trabalhar.

"As pessoas da periferia respeitam mais o isolamento social e as orientações que médicos dão. São humildes em escutar as pessoas que têm mais experiência. A gente sabe respeitar isso. Você não vê a galera da favela correndo em volta do Ibirapuera, com personal trainer, ou fazendo carreata na Paulista [pelo fim das medidas de isolamento]", observa.

Medo politizado

A pesquisa aponta, ainda, que a diferença na sensação de medo da Covid-19 não ocorre só entre favela e fora dela. Há discrepância significativa também entre os apoiadores e não apoiadores da gestão de Jair Bolsonaro (sem partido).

O maior medo dos entrevistados que apoiam o presidente (44,8%) é de ficar sem condições financeiras para sustentar a família; já entre os que dizem não apoiá-lo, o receio predominante é perder familiares e amigos para a doença (55,4%).

"As pessoas que são muito vinculadas ao presidente tendem a acreditar que a pandemia é uma estratégia política, uma histeria. O medo não é realmente de perder a família ou de se contaminar. É uma transposição do medo de uma questão de saúde pública para um medo mais objetivo, de ordem financeira", avalia.

Seja qual for a origem ou motivação do medo, Borges ressalta que a saúde mental não pode ser deixada de lado na formulação de políticas públicas. "A partir do momento em que a pessoa começa a sentir medo, ela desenvolve outros comportamentos que podem reverberar para o futuro, e ter efeitos a longo prazo", alerta.