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'Cidadão não': por que muitas pessoas divulgam número de CPF para protestar

O engenheiro civil Leonardo Barros e a companheira, Nívea del Maestro, questionando a fiscalização dos bares no Rio de Janeiro - Reprodução/TV Globo
O engenheiro civil Leonardo Barros e a companheira, Nívea del Maestro, questionando a fiscalização dos bares no Rio de Janeiro Imagem: Reprodução/TV Globo

Luiza Sahd

Colaboração para o TAB

08/07/2020 04h00

Os engenheiros do Brasil certamente têm escutado muito a frase "Cidadão, não. Engenheiro civil!" desde o último domingo (5), quando uma matéria do "Fantástico" (TV Globo) mostrou um casal questionando a atuação de agentes da Vigilância Sanitária durante fiscalização de bares no Rio de Janeiro.

No desenrolar da discussão, o cidadão — e também engenheiro civil — Leonardo Barros publicou um vídeo dizendo seu nome completo e CPF, enquanto cobrava o repórter que pedia entrevista para que dissesse, também, seu número de Cadastro de Pessoa Física junto à Receita Federal.

A cena não causou comoção à toa. A recusa de usar máscara durante a pandemia já seria motivo suficiente para um exposed na internet, mas a carteirada e o uso do número de CPF como atestado de honestidade também chamaram a atenção na web, apesar de não ser uma prática incomum no Brasil: todo usuário de redes sociais já deparou com algum "tio" anexando números de documentos a petições compartilhadas via Facebook ou WhatsApp.

Para Mariana Valente, doutora em Direito pela USP (Universidade de São Paulo) e diretora do InternetLab, o fenômeno se explica na relação conturbada que muitos brasileiros mantêm com os conceitos de honestidade e privacidade. "As pessoas apresentam o CPF nesses contextos como uma forma de dizer que são 'cidadãos de bem', e que não têm nada a temer ou esconder. Com isso, mobilizam um maniqueísmo que não é muito diferente de crer que 'quem não deve, não teme', ou que a privacidade só serve a alguém que tem algo a esconder. Esse alguém é sempre o outro — quando, em geral, com três perguntas, você consegue mostrar para qualquer pessoa que todos têm uma vida íntima, algo que não gostariam que fosse revelado sobre si", observa. "É também uma perspectiva individualista, que não consegue estabelecer as relações entre proteção da privacidade e outros direitos ou valores democráticos — privacidade como espaço de desenvolvimento autônomo."

Os riscos de usar o CPF como "carteirinha de retidão de caráter" vão muito além do papelão. "Do ponto de vista mais prático, a pessoa que está mobilizando esse maniqueísmo está se expondo a inúmeros riscos concretos. A título de anedota, é só ver o que fizeram com [ministro-chefe] general Heleno quando o CPF dele foi exposto por ele mesmo", lembra a especialista. Usando o CPF de qualquer pessoa, é possível cadastrar contas em serviços, fazer cartões de crédito pré-pagos — que podem ser usados para uma infinidade de fins, inclusive criminosos — e cadastrar chips de celular em nome do portador do documento divulgado na internet. "Vale lembrar que esquemas de disparo em massa de desinformação nas eleições envolviam uso de CPFs alheios para comprar chips que eram usados nos disparos", afirma Valente.

Os dados pessoais de Heleno rodaram a internet depois que ele publicou um exame em que mostrava seu último resultado para o teste de coronavírus. Além do resultado, o documento mostrava CPF, RG, nome completo, data de nascimento e outras informações sobre o paciente, que, depois, publicou uma versão do documento com tarjas. Tarde demais: Heleno foi filiado a partidos como PT e PSOL, cadastrado em lojas e até como mesário voluntário.

Já o engenheiro Leonardo Barros, depois de divulgar seus documentos na internet, está sendo questionado pelos internautas que consultaram seus dados no Portal da Transparência mantido pelo Governo Federal, e verificaram que o cidadão recebeu auxílio emergencial referente ao mês de abril. O casal ainda não se pronunciou sobre esse assunto.

Quem vê CPF não vê coração

Para Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), o ato de divulgar documentos em redes é herança de uma patologia da autoridade. "Se você fosse voltar lá atrás, seria a mesma pessoa que dizia assim: 'você sabe com quem você está falando?' — ´pressupondo que quem fala é mais importante do que o que diz. São relações de poder tão autocráticas e opressivas que propõem um regime especial de aplicação das leis e das regras", opina.

De acordo com o especialista, há uma espécie de obsessão com figuras de autoridade por parte de quem se sente frustrado com o sentido de igualdade que espaços públicos propõem. Assim nasce a carteirada: "Temos um contingente muito grande de pessoas que estão sofrendo uma espécie de complexo de 'quem sou eu?', ou 'olha, ninguém mais me respeita, virei qualquer um no meio de uma massa' — que é uma arena de debates muito maior do que aquele curral onde o sujeito foi nascido e criado. Então, ele tem dificuldade de habitar espaços que não sejam seus — como é o caso dessa discussão, que aconteceu na rua. Daí vem o raciocínio de 'ele é engenheiro, e você pensa que está falando com quem?'"

Na visão do professor, o incidente do CPF tem a ver com um certo judicialismo, que disseminou a ideia de que, no Brasil, aquele que pode apresentar seu documento publicamente é quem não deve para o Fisco, alguém que está em dia com seus impostos. "Mas é 'cidadão de bem' nesses termos — porque a consulta de CPF só provaria que ele não está cometendo uma infração fiscal. Todo o resto, a falta de sentido moral e o destrato com um representante de um órgão público, como aconteceu nesse incidente, é o exato oposto do que a cultura da perseguição à corrupção quer eliminar. Corrupção também é exigir tratamento especial perante normas que servem para todos."

Espaço público x espaço privado

Tentar usar as regras do espaço privado no espaço público também é corrupção — como no caso do engenheiro, que lançou mão de suas credenciais para estabelecer uma relação anômala de poder diante do pedido de obediência a normas sanitárias simples.

Para além do desrespeito marcado pela carteirada, as chances de passar vergonha são imensas. A internet também descobriu que o fiscal hostilizado na inspeção de bares do Rio é mestre e doutor — mas não disse nada ao engenheiro.

"É um fenômeno também da nossa época isso de as pessoas não suportarem situações de igualdade. Elas querem ser especiais. Fora isso, o medo de descender de classe apavora a nossa sociedade e faz parte do imaginário da classe média brasileira, que acha que, se uma pessoa não for igual ou mais poderosa que ela, a pessoa não é ninguém. Então, a pessoa fica vivendo no inferno que ela mesma criou: de preconceitos, de discriminação, de medo de decair. A igualdade parece uma ameaça para a identidade dessa pessoa, porque ela crê que pode deixar de ser alguém e, consequentemente, ser tratada com o mesmo nível de violência com que ela trata os 'ninguéns'", opina Dunker. "Isso é uma crise cujo sintoma é esse tipo de ato errático — e dialoga também com a crise institucional em que ministros mentem sobre seus próprios currículos para se afirmar publicamente."