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Naja, ema, 'Revolução dos Bichos': por que memes com animais bombam tanto?

Um dos muitos memes com a naja apreendida em Brasília, viralizado via Twitter, WhatsApp e Instagram, acompanhado da frase "sou obrigada a ter empatia?" - Reprodução/ Twitter
Um dos muitos memes com a naja apreendida em Brasília, viralizado via Twitter, WhatsApp e Instagram, acompanhado da frase "sou obrigada a ter empatia?" Imagem: Reprodução/ Twitter

Luiza Sahd

Colaboração para o TAB

17/07/2020 04h00

No dia 2 de julho, o ministro da Economia Paulo Guedes foi mordido por seu próprio cão, da raça malamute-do-alasca, enquanto tentava impedi-lo de fugir de casa. Em 7 de julho, o estudante de medicina veterinária Pedro Henrique Krambeck foi picado por uma cobra naja que criava em uma fazenda, junto com outras serpentes exóticas que, ao que tudo indica, foram adquiridas por meio de comércio ilegal de animais silvestres. Menos de uma semana depois, no dia 13, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi bicado por uma ema na tentativa de alimentá-la no Palácio da Alvorada.

Os três incidentes viralizaram nas redes sociais e acabaram puxando outras histórias sobre animais que se rebelaram contra figuras públicas controversas — em especial, contra a própria família Bolsonaro, como foi o caso do cão adotado e batizado de Augusto pela primeira-dama: descobriu-se, depois, que ele já tinha dono — o que gerou uma torrente de piadas a respeito do incidente. O cavalo que dificultou o desfile em carro aberto durante a posse do presidente, em 2019, também foi lembrado com muito carinho por usuários das redes sociais.

No Twitter, a pauta "Revolução dos Bichos" fez sucesso durante a semana. Leitores mais atentos discutiram com os entusiastas do meme porque, na obra de George Orwell, a revolução dos animais não é lá muito bem-sucedida. Já na vida real, a Polícia Civil do Distrito Federal libertou diversas serpentes na chamada Operação Snake, deflagrada por conta da picada da naja que virou heroína da internet. Não parou por aí: três tubarões criados em cativeiro também foram resgatados no DF, na mesma semana.

Por que amamos memes com bichos?

Em entrevista ao TAB, a psicóloga Josie Conti, do portal CONTI outra, explica que a fixação por animais em discussões de internet pode ter raízes ancestrais e estar ligada ao conceito psicanalítico de projeção. "Na história da humanidade, a gente vai perceber que as pessoas atribuem a algo externo — seja a força da natureza, animal ou outro ser humano — muitas coisas que são delas mesmas. Por exemplo: na origem das religiões, quando pensamos em deuses, quem tinha poder eram elementos, como os raios, o sol e outras forças da natureza. O homem, então, relacionava um poder de outro elemento a algo próprio dele", observa.

"Na psicologia, esse mecanismo é chamado de projeção: há algo meu que, às vezes, não aceito. Eu reprimo, não lido bem com isso e uso o outro para comunicar alguma coisa. E tenho limites pessoais, então crio um deus que vai dizer até onde posso ir e o que preciso fazer. É mais fácil ser controlado por uma força externa — que me dá limites — do que desenvolver limites pessoais. Não há problema nenhum com religiões ou crenças, mas existe sempre um mecanismo de projeção, em que o outro faz algo por mim ou me limita."

De acordo com a especialista, não é mera coincidência que as fábulas exemplares (como as mundialmente conhecidas Fábulas de La Fontaine) tenham virado leituras de formação para crianças nascidas ao longo de diversas décadas. "Utilizamos metáforas o tempo todo para comunicar algo difícil de dizer. Podemos usá-las para repassar conceitos complicados de forma mais leve -- como acontece no mundo das fábulas: elas foram e são contadas para transmitir valores morais ao longo de gerações. E o melhor de usar animais é que eles são fofos, geram empatia, funcionam nesse sentido de comunicar sem agredir", opina Conti.

No caso dos memes com bichos, a gente pega um animal que teoricamente é irracional e, na história que queremos compartilhar, se mostra mais inteligente que o homem, a ponto de poder dar uma lição, pregar uma peça, explica a psicóloga. A moral da história, nesses casos, decorre do fato de um ser "inferior" se portar de modo superior, para mostrar que o que o outro está fazendo é desmedidamente errado.


Freud explica?

Outro raciocínio possível para explicar a obsessão do internauta com memes de animais vem da teoria freudiana. "No livro 'Os chistes e sua relação com o inconsciente', Freud descreve como as piadas colaboram para o alívio de angústias: muitas vezes, elas são usadas para dizer coisas sérias que poderiam soar incômodas em uma abordagem mais formal", diz Conti. "A partir do momento que usamos piadas para dizer algo complicado ou para mandar indiretas, nos eximimos da responsabilidade sobre o que está sendo dito."

A especialista lembra ainda que, se fazemos uma agressão direta ao presidente — ou a quem quer que seja — nas redes sociais, existe sempre a possibilidade de receber algum tipo de punição. No caso das alegorias com animais, nem os bichos e nem quem compartilhou o meme pode ser punido. "O humor sempre serviu bem à crítica política. Não é por acaso que cartunistas usam, tradicionalmente, esse recurso para falar sobre assuntos do momento."

O tráfico de animais ou a adoção de um cachorro que já tem dono também mexe com o senso de justiça das pessoas, de modo que a reação dos bichos se assemelha à noção de lei do retorno — em que todos ou quase todos gostam de acreditar.

Na era dos cancelamentos, o uso de memes com bichos também faz um pouco mais de sentido do que sempre fez. "Em uma sociedade tão persecutória, mesmo as pessoas que têm boa reputação e são reconhecidas por serem bem-intencionadas têm suas falas inadequadas perdoadas. Errar já não é tão permitido na esfera pública, então é conveniente quando um elemento não humano fala por nós."