Topo

Como uma empresa britânica sufocou o desenvolvimento industrial do Nordeste

Interior da fábrica de linhas da Pedra, no interior de Alagoas - Divulgação/Fundação Joaquim Nabuco
Interior da fábrica de linhas da Pedra, no interior de Alagoas Imagem: Divulgação/Fundação Joaquim Nabuco

Vinicius Pereira

Colaboração para o TAB

31/07/2020 04h00

No início do século passado, em meio ao começo do processo de industrialização do Brasil, o interior do Nordeste sediou um complexo industrial inovador, com fábricas, estradas e até uma usina hidrelétrica para fornecer energia à produção. Fundada pelo empresário Delmiro Gouveia, a unidade, localizada no interior de Alagoas, sediava a fabricante de linhas de costura Estrela — que chegou a liderar o mercado brasileiro e exportava para diversos países da América Latina.

O crescimento acelerado da fabricante, no entanto, chamou a atenção da principal concorrente, a inglesa Machine Cotton, que iniciou um processo de perseguição à fabricante brasileira e passou a registrar a marca Estrela nos países vizinhos, dificultando a exportação brasileira — além de praticar dumping e pressionar comerciantes para que não comprassem produtos fabricados no Nordeste.

O assassinato de Delmiro Gouveia, em circunstâncias até hoje misteriosas, abriu caminho para que a Machine Cotton finalmente comprasse o parque fabril alguns anos depois. Os gestores ingleses, no entanto, optaram por alterar a fábrica e jogaram o maquinário da Estrela no rio São Francisco. A iniciativa acabou por implodir a chance de industrialização daquela parte do Nordeste e, de maneira indireta, preservando a desigualdade social da região, segundo especialistas ouvidos pelo TAB. "Esse episódio, simbolicamente, significa a morte das fábricas no interior do Nordeste", disse Edvaldo Nascimento, doutor em história da educação pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Quem foi Delmiro Gouveia

Considerado um dos principais empreendedores do século 20 no Brasil, Delmiro Gouveia teve uma infância relativamente pobre. Nascido em 1866, em Sobral, no Ceará, perdeu o pai na Guerra do Paraguai e sua mãe, desamparada, mudou-se a Pernambuco. Lá, casou-se novamente, mas faleceu quando Gouveia tinha apenas 15 anos. Para sobreviver, o jovem perambulou por diversos empregos até começar a intermediar o comércio de couro, que vinha do sertão nordestino, com comerciantes do Recife.

Com os negócios indo bem e tendo proximidade à elite local, Gouveia passou a fechar contratos com o poder público para realizar obras em Pernambuco. Algumas desavenças acerca de contratos, porém, fizeram com que o empresário apoiasse a oposição local. Segundo Edvaldo Nascimento, o empreendedor, então, passou a entrar em confronto com a oligarquia política que comandava Pernambuco na época, simbolizada pelo senador e então vice-presidente da República, Francisco de Assis Rosa e Silva.

A fim de resolver as desavenças, Gouveia vai ao Rio de Janeiro procurar Rosa e Silva, mas, após uma discussão, o empresário agride o político. Com receio das consequências, Delmiro Gouveia se muda para Alagoas, onde contava com o apoio de Euclides Malta -- governador alagoano da época e também opositor do grupo de Rosa e Silva.

"Delmiro chega a Alagoas pelas mãos de Euclides Malta, que o envia ao sertão para ser protegido", conta Edvaldo Nascimento ao TAB.

O nascimento da indústria nordestina

Na cidadezinha de Água Branca, no interior de Alagoas, Gouveia compra terras e volta a comercializar couro. Logo, inicia a construção de uma fábrica de linhas industriais, de costura e de crochê que levaria o nome de Estrela.

Para abastecer a nova indústria, Gouveia inicia a construção da primeira hidrelétrica do Nordeste, finalizada em 1914. Além da fábrica e da usina de energia elétrica, o industrial também construiu cerca de 520 km de estradas para escoar a produção e uma vila de casas para os cerca de 800 dos 2000 funcionários, com esgoto e luz elétrica. De acordo com o livro "Pioneiros & Empreendedores", de Jacques Marcovitch, a produção da Estrela alcançava 216 mil carretéis — além de produzir linhas para costura, bordado, crochê e malharia. Médicos, dentistas e professores, contratados pela empresa, davam assistência às famílias dos funcionários na região, comandada a punho de ferro por Gouveia.

O industrial Delmiro Gouveia - Divulgação/ Fundação Joaquim Nabuco - Divulgação/ Fundação Joaquim Nabuco
O industrial Delmiro Gouveia
Imagem: Divulgação/ Fundação Joaquim Nabuco

"Havia uma transição tecnológica baseada na chegada da energia elétrica. Gouveia era um inovador em série, com a atividade industrial e a preocupação com a produtividade, além de implementar novas tecnologias de que ele se apropriou das viagens que fez pelo mundo", conta Marcovitch ao TAB.

Com a Primeira Guerra Mundial, a inglesa Machine Cotton — que era líder do mercado até então — perdeu espaço devido às dificuldades enfrentadas no translado das linhas pelos oceanos. A Estrela começou, então, a estabelecer escritórios em diversos países. Assim, tomou boa parte do mercado dos ingleses, principalmente no Brasil e na América Latina como todo.

A ascensão da Estrela, no entanto, incomodou o alto escalão da Machine Cotton, que começou a combater o crescimento da indústria brasileira. A companhia inglesa passou a boicotar comerciantes que comprassem as linhas da Estrela e também derrubou os preços ao limite, afetando a concorrência, praticando dumping. Além disso, a companhia inglesa também registrou o nome Estrela em países como Argentina e Uruguai. A medida obrigou Gouveia a comercializar seus produtos com o nome de Linhas Barrilejo.

Em meio a pressão econômica, os ingleses tentaram, ainda, comprar a fábrica de Delmiro Gouveia por diversas vezes. Uma certo dia, em uma das visitas dos ingleses, o brasileiro teria destratado os executivos da concorrente e dito que seria ele quem compraria a fábrica da Machine Cotton.

Morte de Gouveia e fim da Estrela no Nordeste

Em 1917, com o crescimento da Estrela a todo vapor, Delmiro Gouveia é assassinado a tiros, aos 54 anos. Três pessoas foram presas na época — e desavenças pessoais, como a perda do emprego por um dos assassinos, foram apontados como os motivos do crime. Dos três presos, dois morreram logo depois, assassinados na prisão. Em 1982, foi pedido a revisão do processo criminal em que o Tribunal de Justiça diz que dois desses autores materiais não tiveram participação no crime. Até hoje, no entanto, historiadores que estudam a vida e obra de Gouveia ainda desconfiam da versão.

"Alguns historiadores defendem a tese que a Machine Cotton estaria por trás da morte, e isso foi difundido no imaginário popular. Uns dizem que as motivações foram conjugais, outras falam sobre conspirações políticas, mas ninguém sabe ao certo", diz Marcovitch.

Após a morte de Gouveia, os filhos passaram a comandar a indústria. Mas, nos bastidores da política, os ingleses também mexeram suas peças no tabuleiro. Com a eleição de Washignton Luís para a presidência alguns anos depois, que comandava uma política liberal, o Brasil passa por uma abertura comercial e acaba cedendo à pressão dos ingleses para abolir tarifas de linhas importadas.

Carretéis de linhas da marca Estrela - Divulgação/ Fundação Joaquim Nabuco - Divulgação/ Fundação Joaquim Nabuco
Carretéis de linhas da marca Estrela
Imagem: Divulgação/ Fundação Joaquim Nabuco

"Com [o presidente] Washington Luiz, o embaixador da Inglaterra da época conseguiu pressionar o presidente a revogar especificamente a taxação sobre linhas importadas. Assim, a Estrela entrou em crise", conta Nascimento. Os filhos acabam por vender a fábrica para outra empresa que, logo depois, repassa a companhia para a Machine Cotton. Os gestores ingleses optam por não produzir mais linhas no interior de Alagoas. O maquinário da indústria é levado até o cânion de Paulo Afonso e jogado nas águas do rio São Francisco, a modo de nunca mais ser utilizado pela indústria local.

Desigualdade e desindustrialização

O maquinário despejado nas águas do rio São Francisco marca o fim da era de ouro da indústria no sertão nordestino e acaba não só com os planos de Delmiro Gouveia, mas também afeta sociedade local, aumentando a desigualdade na região. Segundo Paulo Gala, diretor-geral da Fator Administração de Recursos e professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), com indústrias, a região poderia ter um desenvolvimento mais acelerado e menos desigual. "A industrialização promove empregos de melhor qualidade e com maiores salários", disse.

Para Fernanda Cardoso, professora de ciências econômicas da UFABC (Universidade Federal do ABC), a industrialização do interior do Nordeste poderia incrementar a complexidade econômica na região, gerando emprego e renda. "Levar formas de produção com maior complexidade associada, maior nível de produtividade e de salário potencial, como na indústria, faz com que a economia gere uma série de desencadeamentos positivos, como desenvolver o setor de serviços ou o fornecimento de insumos".

"Se você tem regiões só com atividades de baixíssimo valor agregado, como agricultura de subsistência, que é o caso de partes do Nordeste, os efeitos de encadeamento gerados na cadeia produtiva são praticamente inexistentes", completou.

Para Marcovitch, a morte de Delmiro Gouveia e o fim da Estrela, no entanto, não são os únicos culpados pela ausência de desenvolvimento industrial da região. "Quando você tem uma receita assegurada, o apetite por inovação é menor. Ali, os coronéis viviam de açúcar e a região se desenvolveu através dessa cultura. Então, a industrialização era iniciativa de poucos — até porque ela desestabiliza as estruturas de poder, calcadas na agricultura, e a preservação disso inibiu uma modernização muito maior."