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Rede organizada pela Inquisição também controlou costumes do Brasil Colônia

Ilustração de Joana D"Arc, queimada em fogueira em 10 de maio de 1431 - Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images
Ilustração de Joana D'Arc, queimada em fogueira em 10 de maio de 1431 Imagem: Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

10/08/2020 04h00

Em um passado não muito distante, a então poderosa politicamente Igreja Católica criou um tribunal para combater severamente heresias, desvios morais e tudo aquilo que a instituição julgasse inadequado, inclusive práticas de outras religiões, como o judaísmo. Você deve se lembrar das aulas de História: estamos falando do Santo Ofício — ou a Inquisição.

Da guerreira francesa Joana d'Arc (1412-1431) depois reabilitada e tornada santa — ao cientista italiano Galileu Galilei (1564-1642), em caso formalmente reconhecido como erro pela Igreja em 1992, não foram poucas as personalidades europeias perseguidas, condenadas e, em muitos casos, executadas por esse tribunal. Mas e do lado de cá do Atlântico? O Brasil, a colônia portuguesa tão distante da corte, era terra de ninguém ou a Igreja também conseguia controlar o comportamento de nossos antepassados?

O Santo Ofício operou em Portugal entre 1536 a 1821. Nunca foi instalado um tribunal fixo no Brasil, mas sacerdotes conhecidos como padres visitadores foram enviados para cá em missões inquisitórias. E, ao longo desse tempo, uma rede de representantes credenciados pela Igreja, capilarizada nas principais cidades e vilas, foi organizada para dedurar, receber denúncias, avaliar os casos e, depois de uma triagem, remetê-los a Lisboa.

"Ao contrário do que ocorreu na América espanhola, onde houve tribunais em Lima, na Cidade do México e em Cartagena, a Inquisição portuguesa não abriu um tribunal no Brasil. Por quê? Porque grande parte dos mais importantes e poderosos senhores de engenho, em um tempo em que o açúcar era o carro-chefe da economia, eram cristãos-novos", explica ao TAB o antropólogo e historiador Luiz Mott, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de, entre outros, "Bahia: Inquisição e sociedade".

Cristãos-novos eram os judeus recém-convertidos ao catolicismo. "O judaísmo foi proibido em Portugal em 1496. Três meses depois, em 1497, os que não saíram do país foram batizados à força. Mas muitos continuavam praticando o judaísmo secretamente, dentro de casa, na privacidade do lar, fingindo serem bons cristãos e frequentando missas", contextualiza ao TAB o historiador Angelo de Assis, professor da UFV (Universidade Federal de Viçosa) e pesquisador da cátedra de estudos sefarditas da Universidade de Lisboa.

"Se a inquisição tivesse instalado um tribunal aqui, eles [os senhores de engenho] seriam as principais vítimas. Para evitar a bancarrota da economia colonial, o Santo Ofício resolveu apenas nomear comissários e familiares por aqui", conclui Mott.

'Bedéis' cristãos

O funcionamento dessa estrutura dos chamados comissários e familiares do Santo Ofício foi esmiuçado pelo historiador Aldair Carlos Rodrigues, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), no livro "Igreja e Inquisição no Brasil: Agentes, Carreiras e Mecanismos de Promoção Social".

Em entrevista ao TAB, ele explica que a Inquisição contou com três pilares para conseguir controlar o território brasileiro. A cooperação de dioceses e paróquias garantiu infraestrutura institucional e recursos humanos, os missionários — sobretudo jesuítas — que se embrenhavam nos sertões facilitaram a penetração nos confins mais distantes, e a anuência da nata da sociedade da época possibilitou a efetividade — nas palavras de Rodrigues, "o apoio das elites e setores intermediários que se habilitaram para serem agentes e representantes do tribunal, mesmo não sendo eclesiásticos".

Ou seja: havia uma rede de bedéis leigos, não religiosos, autorizados pela Igreja a encaminhar para julgamento e punição todos aqueles que não andassem conforme o catecismo. Eram os chamados familiares do Santo Ofício. Milicianos católicos? Quase isso. "Não no sentido de miliciano de hoje, porque era um aparato de vigilância oficial e público", enfatiza Rodrigues. "Hoje, milícia tem conotação associada à ilegalidade."

De acordo com levantamento publicado em 1994 pelo catedrático da Universidade de Coimbra José Veiga Torres, 3.114 civis foram denominados familiares do Santo Ofício em território brasileiro entre os anos de 1570 e 1820. "Para se tornar agente leigo da Inquisição era necessário enviar uma petição ao tribunal e fazer um depósito para custear as despesas com as demoradas investigações judiciais e extrajudiciais sobre a pureza de sangue de seus ascendentes. Ou seja: o candidato não poderia descender de judeus, mouros, africanos escravizados ou pessoas recentemente convertidas ao catolicismo. Aqueles grupos pertenciam, na mentalidade da época, às chamadas 'raças infectas'. A percepção da diferença étnico racial tinha uma carga religiosa muito forte", explica Rodrigues.

"Além disso, era importante saber ler e escrever, ter posses e ser reputado como pessoa de elevada posição social. A Inquisição não queria ter sua imagem associada a pessoas estigmatizadas. Deste modo, os postos inquisitoriais se tornaram bastante atrativos justamente por adotarem critérios excludentes. É como se o prestígio dos cargos estivessem diretamente relacionados à capacidade que a Inquisição tinha de discriminar e interferir no status das pessoas", complementa o historiador. "Ser rejeitado por ter o sangue considerado impuro, por exemplo, era uma desonra e um grande escândalo — e deixava a pessoa numa posição social vulnerável. A nobreza portuguesa, oficialmente, era 'pura de sangue'. A sociedade em geral, e pessoas que aspiravam ser parte da elite, em particular, buscavam copiar esses ideais."

Depois desse longo processo, o então membro da Inquisição recebia uma patente e um insígnia. "Passava a gozar de uma série de privilégios, tais como isenções fiscais, porte de armas ofensivas, foro privilegiados", conta Rodrigues.

Esta estrutura é uma das raízes de nossa histórica desigualdade social. "Boa parte das famílias que constituíam as elites e que dominavam os cargos do poder militar, as câmaras municipais e as irmandades de prestígio. Os chamados homens de bem procuravam habilitar membros de sua parentela na Inquisição e na Igreja", diz o historiador. E para aqueles que não tinham a tal "pureza de sangue", tinha o jeitinho — havia quem burlasse o sistema com subornos e depoimentos falsos.

No total, os comissários — ou seja, os padres que atuavam como representantes do Santo Ofício por aqui — foram 198. E eles também integravam as altas classes sociais. "Eram filhos das elites locais, formados em Direito Canônico por Coimbra, que ocupavam postos importantes no topo da hierarquia da Igreja", pontua Rodrigues.

"Só iremos compreender a abrangência dos impactos nefastos da presença da Inquisição no Brasil quando passarmos a considerar o clima de vigilância e repressão instaurado nas relações sociais e, principalmente, o legado que a Inquisição deixou na mentalidade colonial ao perpetuar a ideologia da pureza de sangue", ressalta o pesquisador. "Quando consideramos que a maioria da população era composta por africanos e seus descendentes, podemos imaginar o efeito dos estatutos de pureza de sangue na formação de um ideário de posição social e prestígio associado a ser branco e cristão-velho. O aparato inquisitorial teve papel importante na formação da elite brasileira até o século 18, oferecendo privilégios e honra. O poder colonial era traduzido como ser branco e católico."

Visitas oficiais

De acordo com levantamento realizado pela historiadora Anita Novinsky, livre-docente da USP (Universidade de São Paulo) e autora de diversos livros sobre a inquisição no Brasil, o Santo Ofício investigou um total de 1076 pessoas no país. Vinte e nove foram condenados à fogueira.

"Provavelmente, há outros processos e documentos que ainda não foram identificados", acredita Assis. "Dos que foram condenados à fogueira, alguns já estavam mortos quando o processo foi concluído. Outros, foragidos, foram queimados em estátua, ou seja, faziam-se bonecos e estes eram queimados representando a morte dessas pessoas."

Como o tribunal não estava instalado no país, os réus eram encaminhados para Portugal. Houve três momentos, contudo, em que o Santo Ofício designou padres visitadores para inspecionarem a colônia — e aqui julgarem casos. Entre 1591 e 1595; de 1618 a 1620; e de 1763 a 1769. Quando o padre inquisidor se instalava, primeiro havia um período de 30 dias em que as pessoas poderiam voluntariamente se declarar culpadas dos "crimes". A estes, era prometida misericórdia nas punições.

Uma história emblemática é a da portuguesa Ana Rodrigues, uma senhora de mais de 80 anos que morava com a família no Recôncavo baiano. Cristã-nova, ela continuava praticando o judaísmo e sabia que seria denunciada por muita gente. Então, decidiu se confessar ao inquisidor. "Este mandou que ela ficasse presa em casa, proibida de sair da cidade, até que fosse mandada para Portugal para julgamento.

"Lá, ela acabou no cárcere. O processo durou mais de 10 anos", conta Assis. "No final, ela foi considerada culpada e a sentença determinou que fosse desenterrada, porque não era digna de permanecer sepultada ao lado de cristãos. Seus ossos deveriam ser queimados. Ou seja: muitas vezes a Inquisição não acabava na vida da pessoa — envolvia a honra moral de toda a família."