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O que foi a Revolta da Vacina, e quais suas semelhanças com o mundo de 2020

Charge contra Oswaldo Cruz - Reprodução
Charge contra Oswaldo Cruz Imagem: Reprodução

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

22/08/2020 04h01

A luta contra uma epidemia, uma sociedade em plena reforma de costumes, guerra entre informação verdadeira e fake news, negacionistas em polvorosa e até rumores de golpe de Estado. Parece 2020, mas é 1904. A Revolta da Vacina, motim popular ocorrido no Rio de Janeiro, guarda evidentes semelhanças com o mundo de hoje. Mas não vale repetir o chavão de que a história sempre se repete: o evento teve causas, efeitos, dimensão e localização diferentes dos que ocorrem atualmente.

De acordo com o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014), em seu livro "A Revolta da Vacina: Mentes Insanas em Corpos Rebeldes", a varíola deixou 3,5 mil mortos no Rio de Janeiro em 1904. Um ano antes, o médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) havia se tornado diretor-geral de Saúde Pública da cidade com a missão de combater essa e outras duas epidemias que assolavam o povo carioca: a febre amarela e a peste bubônica.

Foi um auê. "Para combater a febre amarela, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti [o mesmo da dengue], os agentes entravam nas casas e percorriam os bairros naquele fumacê. No caso da peste bubônica, eles entravam nas casas para caçar ratos. Essas invasões, de acordo com relatos, foram deixando o povo um tanto incomodado", explica ao TAB o historiador João Manuel Casquinha Malaia Santos, professor da Universidade Federal de Santa Maria (RS).

Cena do filme "Sonhos Tropicais", de André Sturm, que aborda a Revolta da Vacina de 1904 - Divulgação - Divulgação
Cena do filme "Sonhos Tropicais", de André Sturm, que aborda a Revolta da Vacina de 1904
Imagem: Divulgação

"Quando vem a vacina, o bicho pega, mesmo", completa. O motim, até hoje considerado o maior já ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, deixou 30 mortos e centenas de feridos em novembro de 1904. Cerca de mil revoltosos foram detidos.

Como andava o clima no Rio? Havia intenso descontentamento popular. A então capital do Brasil havia crescido como nunca — de 500 mil habitantes, no fim do Império, para 700 mil, no início do século 20. Quando assumiu a presidência em 1902, Francisco Rodrigues Alves (1848-1919) colocou como prioridade reorganizar a cidade. Mas não foi um processo tranquilo: acabou se tornando uma gentrificação forçada e institucionalizada. Calcula-se que mais de 14 mil pessoas foram expulsas de suas casas sem ter para onde ir — entendeu por que até hoje os morros por ali são cheios de favelas? "Intensificou-se a política de demolição de quarteirões inteiros, em especial os cortiços, que eram as moradias mais populares. Mais de 600 foram destruídos para dar passagem às novas avenidas, em especial a ampla e inovadora Avenida Central (atual Avenida Rio Branco). A reforma urbana, inspirada na que foi realizada em Paris em meados do século 19 por Napoleão 3º, recebeu o apelido de 'bota-abaixo'", diz trecho de artigo publicado pelo Arquivo Nacional.

Doenças. Tantos problemas urbanísticos em uma época de precário saneamento básico fizeram do Rio um celeiro de epidemias. No porto, ouvia-se a nada honrosa história de que o local era "túmulo de estrangeiros", tantos eram os navios que ancoravam e viam suas tripulações adoecidas. Com currículo internacional (havia trabalhado no renomado Instituto Pasteur, da França), Oswaldo Cruz foi chamado para tentar resolver o problema. A receita do sanitarista foi fumacê contra o mosquito da febre amarela, matança de ratos para vencer a peste bubônica e a vacina para a varíola.

Negacionismo. A população ficou contrariada com aqueles agentes que entravam nas casas atrás de ratos e mosquitos. Já a novidade da vacina assustou: alguns questionavam sua eficácia. Havia boatos que faziam crer que ela seria utilizada para dizimar as camadas mais pobres. Para piorar, havia uma celeuma política. "Dois oposicionistas a Rodrigues Alves, o deputado Barbosa Lima e o senador Lauro Sodré, começaram uma campanha de desinformação, advogando a liberdade individual frente à obrigatoriedade da vacina", esclarece Malaia Santos. "Enquanto Oswaldo Cruz explicava o que era a vacina, Barbosa e Sodré discursavam que a vacina servia para introduzir uma doença dentro do corpo das pessoas, que 'eles querem te matar', que se tratava de um projeto de assassinato em massa da população. Esse tipo de discurso foi pegando."

Moralidade. Ao TAB, a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, doutora em História das Ciências da Saúde, afirma que havia um cenário de "crise econômica, questões culturais relacionadas à moralidade, medo de desenvolver a doença e do próprio procedimento em si, e contrariedade com o autoritarismo da campanha". Jornais de oposição ao governo passaram a divulgar charges e crônicas dizendo que os agentes de saúde abusavam das moças na hora de vaciná-las. Nesse meio-tempo, espalhou-se a história de Leocádia Cypriana, conhecida como Preta Cypriana. "Ela morreu e o médico legista colocou como causa uma septicemia consecutiva à vacina", lembra o historiador Malaia Santos. Pronto: novo argumento contra os anti-vacina de 1904.

A revolta em si. Em 9 de novembro de 1904, o jornal A Notícia publicou o projeto de lei que tornaria a vacinação obrigatória. As agitações populares começaram a se tornar mais ruidosas. Entre 13 e 16, o Rio se tornou cenário de guerrilha. Casas foram apedrejadas, bondes foram tombados. Houve fios de iluminação pública cortados, barricadas e agressões. Políticos oposicionistas começaram a articular um golpe de Estado para depor o governo de Rodrigues Alves — mas a ideia não foi bem-sucedida. O movimento só foi contido a partir do dia 16, quando foi declarado estado de sítio e a obrigatoriedade da vacina foi suspensa.

Bonde virado por revoltosos durante a Revolta da Vacina - Wikicommons/Domínio Público - Wikicommons/Domínio Público
Bonde virado por revoltosos durante a Revolta da Vacina
Imagem: Wikicommons/Domínio Público

Semelhanças e diferenças com 2020. Enquanto protestos anti-máscaras ocorrem pelo mundo e pessoas alegam, muitas vezes desrespeitosamente, um suposto direito de não utilizá-las, fica a questão: estamos no limiar de uma nova revolta do tipo? "Não creio", diz Cruz de Souza. "A natureza dos protestos de hoje é política e a tendência pode crescer, na medida que esses grupos e esse tipo de ideologia antivax vão crescendo no mundo", comenta Malaia Santos. A comparação com 1904 esbarra em uma diferença fundamental: quem está do lado da ciência e quem está se esforçando para desacreditá-la. "O discurso anti-ciência dos contrários à vacinação era feito por uma oposição ao governo, ou seja, quem estava de fora do governo tentava reverberar determinadas notícias falsas. Hoje é o contrário: há governos fazendo o discurso anti-ciência e disseminando notícias falsas", critica. "E hoje há elementos de comunicação muito poderosos, as redes sociais, uma máquina para disseminar isso."

E quando a vacina contra Covid-19 chegar? Especialistas acham que não viveremos uma nova Revolta da Vacina. "Uma pesquisa do Datafolha mostra que 89% da população quer se vacinar", lembra Cruz de Souza. "Duvido que haja uma escala [de pessoas anti-vacina] agora como a que se viu em 1904, com população saindo às ruas e quebrando as coisas. Pelo Datafolha, são os mesmos 9% que acreditam em Terra plana e em um plano comunista para tomar o mundo. Antes da pandemia já havia grupos que não deixavam seus filhos se vacinarem?", minimiza Malaia Santos. "A grande maioria das pessoas está louca para tomar a vacina. Estamos um pouquinho mais conscientes hoje sobre o que ela representa."