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'O Líder em Movimento', do BK, traz psicodelia na guerra contra o racismo

O rapper Abebe Bikila, o BK, lança "Líder em Movimento" - Divulgação
O rapper Abebe Bikila, o BK, lança 'Líder em Movimento' Imagem: Divulgação

Matias Maxx

Colaboração para o TAB, do Rio

07/09/2020 04h01

"BK foi meu nome de rua, porque ninguém sabia falar meu nome, tá ligado?", explica o rapper Abebe Bikila, 30, que assina "O Líder em Movimento". Esta é a primeira vez que BK assina um álbum (o terceiro de sua carreira) com seu nome de batismo -- uma homenagem ao maratonista etíope que foi o primeiro negro africano a ganhar medalha de ouro numa Olimpíada, correndo descalço. "BK é um personagem que eu criei ali na minha adolescência e foi indo, mas hoje em dia eu sou muito mais Abebe que BK. Porque é isso, estou evoluindo, estou crescendo como pessoa, amadurecendo, não tenho mais 23 anos, mas eu vou continuar BK pra sempre. É saber equilibrar os dois."

Diferente do predecessor "Gigantes" (2018), álbum com faixas mais independentes, "O Líder em Movimento" é musicalmente mais uniforme. Suas letras contam a história e as lutas de um líder negro inspirado em Martin Luther King, Malcolm X, Marielle Franco e Tupac Shakur, além da própria vivência de mundo e imaginação de Bikila. "É claro que você pode ouvir e curtir as músicas separadas, mas na montagem do álbum ele faz mais sentido assim, nessa ordem, os beats se encaixam uma na outra, tipo um Megazord mesmo."

"Movimento", a primeira canção, cita vários pretos assassinados por inspirar e libertar as pessoas. A temática racial sempre foi presente na obra de BK, mas, diferentemente da primeira geração de rappers brasileiros que tiveram de ser bem didáticos na hora de passar a mensagem, BK já teve a chance de narrar como é duro ser negro no Brasil de uma forma mais poética, metafórica e subjetiva. No ano em que o slogan "Vidas Negras Importam" ganhou as manchetes do mundo, "O Líder em Movimento" chega ao equilíbrio perfeito de poesia e papo reto.

"A bomba estourou agora, mas esse momento já tá vindo de 500 anos pra cá. De alguma forma a gente já sabia que ia acontecer essa explosão. Eu faço música de preto pra preto, isso é um fato. Não preciso ficar o tempo todo falando 'é isso', 'é isso', mas acho que chegou o momento em que eu precisava ser mais explícito e interessante, tocar numa tecla que o rap já fala há muitos anos, e a gente tem que saber falar isso sem ser chato", explica o compositor.

Coisa de berço

A posição nas trincheiras dessa guerra vem de longe: a mãe de BK é professora e milita no movimento negro desde jovem. "Esse pouco de lucidez que eu tive do mundo como homem negro é porque eu tive e tenho uma base em casa. Tive a sorte de nascer neste lugar. Meu nome já é uma forma de resgate: sou Abebe Bikila e meu irmão é o Caleb."

O rapper sente a responsa de seguir promovendo esse resgate, usar o crescimento da cena rap de hoje como ferramenta para atrair seu próprio povo para conhecer sua história. "A gente tem força suficiente para compartilhar. É o que o [Mano] Brown [do Racionais Mcs] fala: 'voltar pra base'. Também não se pode achar o suprassumo da consciência negra, tem que saber de que forma a gente tem que comunicar isso, tá ligado?"

"Lá nos EUA a violência policial fez o esporte parar. Aqui nunca parou. O racismo fez isso no Brasil. O mano jogador de futebol não tem a consciência, o racismo fez o preto querer ser branco, a negra querer ser branca. O mano que é negro e acabou ficando rico, se ele não se encontrar, ele vai continuar sendo abafado pelo racismo, e vai acabar passando isso adiante, tentando negar suas origens, fazer o seu filho fugir disso, até 'clarear' a família toda."

Além da militância, Abebe também foi agraciado por muita música, cresceu ouvindo Djavan, MPB e jazz dentro de casa. Mais tarde, por volta dos 15 anos, a pista lhe apresentou o rap e o funk. Morou em Jacarepaguá, frequentava o Baile da Cidade de Deus e tentou ser MC de funk, "porque era mais minha realidade e talvez a realidade do Rio de Janeiro, na época". Até hoje ele escuta e flerta com o batidão carioca, e garante que MC Cidinho está no seu Top 5 de todos os tempos. Foi nos rolés da Lapa carioca que ele encontrou a paixão que veio se tornar sua profissão e consagrá-lo.

Capa de 'O Líder em Movimento', novo disco de Abebe Bikila (o BK) - Divulgação - Divulgação
Capa de 'O Líder em Movimento', novo disco de Abebe Bikila (o BK)
Imagem: Divulgação

Som engajado

O novo álbum tem oito faixas produzidas por Jonas Profeta, seu parceiro desde "Castelo & Ruínas", além de Nansy Silvz e a dupla Deekapz, com uma faixa cada.

Sua sonoridade foge dos beats duros de trap que dominam a cena nacional e estiveram presentes em seus trabalhos anteriores. "O Líder em Movimento" é orgânico, dissonante e hipnótico. "Visão" traz um discurso de Abdias do Nascimento (1914-2011), que faz o paralelo brasileiro com a luta pelos direitos civis nos EUA. Esse clima sessentista é turbinado por samplers de "Minha Gente", de Erasmo Carlos, em "Pessoas", só para citar um dos mais descarados. Em outras faixas os samplers se diluem com scratches, instrumentos e backing vocals de Polly Marinho, Ainá Garcia e CHS, parte da família estendida de Abebe. Tudo em casa.

"Porcentos 2" tem um dos refrões mais fortes do disco: "Dinheiro pra nós não é luxo. Dinheiro pra nós é proteção." Longe de querer ser um coach ou a Nath Finanças do rap, o artista destila sugestões e opiniões sobre como lidar com o dinheiro e fazê-lo circular dentro de sua comunidade.

"Cordão de ouro é maneiro, e cara, a gente não vai poder ter o cordão? Todo mundo quer ter, mas a questão não é só ele, é ter o melhor acesso à saúde, à cultura. O mundo é caro hoje em dia, então a gente quer ter as melhores coisas também. O dinheiro, querendo ou não, é uma forma de a gente se proteger. Se o mano tiver a grana dele e quiser ostentar, é problema do mano -- branco é a vida toda ostentando, carro etc... Os caras, com vários quadros de arte caros na parede, não estão ostentando, não?"

Apesar de o rap ser hoje em dia um dos estilos musicais mais tocado no mundo -- o maior nos EUA --, continua sendo música de resistência, pois vive batalhando contra as tentativas de apagamento e embranquecimento, da mesma forma que aconteceu com o rock, o axé e tantos outros.

"Se você vir a história da humanidade, talvez o rap seja o primeiro estilo a resistir, sendo música de negão, mesmo, e vai continuar a ser. Se não existisse internet, era capaz de virem falar que o Pelé era branco, que o Tupac era branco; isso aconteceu na história do mundo. De pegarem nossas coisas, sugarem tanto nossas coisas para que a gente não tivesse mais força pra criar. A gente tenta não deixar, não entregar isso."

O rapper carioca BK - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
O rapper carioca BK
Imagem: Instagram/Reprodução

'Fecho com o preto trabalhador sempre'

Para Abebe Bikila, o homem branco deve buscar sua própria maneira de se libertar do racismo, da mesma maneira que o homem negro deve encontrar seu caminho para não ser machista ou homofóbico. "Quando a gente tem atitudes machistas, homofóbicas e tal, a gente sabe o que tem que fazer pra não fazer mais, a gente sabe que tá errado e não deve agir mais de tal forma."

Sobre a ascensão do bolsonarismo, do negacionismo e do obscurantismo, o rapper acredita que se deu num momento em que a esquerda falhou. "O Mano Brown disse: 'tem que conversar com a base', então, no momento em que se perdeu essa base, filho, é guerra! O inimigo sempre vai estar ali, o inimigo não dorme. Na hora que você cochilar, vai tomar. Agora é o momento de surgir outros tipos de pensamentos. Fecho com o trabalhador, o preto e a favela sempre."

Apesar da guerra de narrativas que se tornou a política brasileira, e seus resultadosem mortes por balas e Covid-19, Bikila é otimista, e acredita que novos líderes estão para surgir e fazerem as coisas melhorarem. "O Rio de Janeiro sempre mostra que já era, a gente daqui tem a sensação sempre de que 'já era, não tem mais jeito', mas acredito que vai se tornar um lugar melhor. Não uma cidade maravilhosa, mas uma cidade boa. Se for uma cidade legal, ok, já tá bom (risos)."