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Por que 'Mulheres que correm com os lobos' voltou à lista dos mais vendidos

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Imagem: Unsplash

Heloísa Noronha

Colaboração para o TAB

16/09/2020 04h00

Lançado há quase três décadas, "Mulheres que Correm com os Lobos - Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem" teve enorme repercussão na época.

Nos Estados Unidos, considerado o principal mercado mundial de livros, a obra de estreia da psicanalista norte-americana Clarissa Pinkola Estés permaneceu mais de 145 semanas na lista de mais vendidos do jornal The New York Times. De lá para cá, o interesse e a mística em torno do título publicado em 42 idiomas não arrefeceram. O entusiasmo por "Mulheres que Correm com os Lobos" parece sempre retornar.

A editora Rocco, que relançou uma nova versão em capa dura em setembro de 2018, não fornece números de vendagem. Porém, é possível obter uma dimensão da curiosidade atual pelo long-seller (termo em inglês para os livros que seguem um sucesso anos depois de lançados) no país por outros meios: segundo o site PublishNews, sobre notícias do mercado editorial, "Mulheres que Correm com os Lobos" teve 80 mil exemplares vendidos entre 2018 e 2019. E, desde o início de abril de 2020, o título figura entre os mais vendidos na categoria de não-ficção da lista da revista Veja. Na Amazon, ocupa, há semanas, uma posição de destaque entre os dez mais vendidos — foi um dos dez mais comprados na Book Friday, entre 20 e 23 de agosto.

Por que o interesse

A ascensão da chamada quarta onda do feminismo é outro fator que contribuiu para a produção-chave de Clarissa Pinkola Estés despertar tanto desejo e discussão. Pautas feministas levaram ao ressurgimento dos clubes e grupos de leitura, onde "Mulheres que Correm com os Lobos" sempre costuma dar as caras. A atriz e ativista Emma Watson, que divide os sets de Hollywood com o encargo de embaixadora da ONU Mulheres, recomendou o livro no seu clube de leitura virtual Our Shared Shelf ("Nossa Estante Compartilhada", em tradução livre). Por aqui, as artistas Cleo e Ana Cañas também aconselharam a leitura.

Há ainda outro fator que tem colaborado para a redescoberta da obra: o enaltecimento de um estilo de vida "boas vibrações" e o gosto, em especial nas redes sociais, pelo "sagrado feminino" — leitura que exalta a conexão da mulher consigo mesma, com seu corpo e com a natureza. No Instagram, é comum encontrar hashtags como #laloba e #wildwoman em ensaios fotográficos super produzidos. Também entram nesse caldeirão camisetas com frases de empoderamento, coletores menstruais e calcinhas para deixar o fluxo correr livremente. "Como a gente vive em um sistema capitalista neoliberal, todo e qualquer movimento e teoria pode ser, pelo menos em parte, apropriado pelo mercado. Porém, não se pode deslegitimá-lo apenas pelo ruído que provocam", diz a psicóloga Érika Maracaba, de Fortaleza (CE).

Como leitura feminista, há, contudo, questões em aberto. "Quando a autora desconstrói a estrutura com que a sociedade cerceia as mulheres, através dos arquétipos, ela cria uma alternativa, a da mulher selvagem. Só que essa alternativa volta a essencializar a mulher — algo que o feminismo e os estudos de gênero lutam para derrubar —, e coloca na mulher a responsabilidade pela sua própria emancipação", explica Mariana Rezende, mestre em Estudos sobre as Mulheres pela Universidade Nova de Lisboa.

A especialista cita, por exemplo, "Calibã e a Bruxa", livro da historiadora italiana Silvia Federici, que traça um percurso histórico sobre a submissão feminina e sua relação com a divisão sexual do trabalho, desde a Idade Média até os dias de hoje. "Já existem outras leituras e perspectivas que entendem que o capitalismo e o patriarcado, unidos, é que definem essa opressão. O feminismo marxista e negro, aliás, fez bastante essa análise — bell hooks também é uma das pensadoras dedicadas a entender a luta emancipatória nessa chave. Sim, o autoconhecimento é uma ferramenta muito importante. Muitas pessoas dizem que a leitura de 'Mulheres que correm com os lobos' as fez compreender as coisas. Mas ela pode ser limitante. Trata-se de um livro feminista branco e liberal, que cuida de uma emancipação individual. Se não caminhar com uma compreensão coletiva e sistêmica, fica vazio", explica Rezende.

Outro ponto sensível aos dias atuais: o feminino abordado por Clarissa é (e continua) excludente em relação às mulheres trans? Nos anos 1990, as discussões envolvendo orientação sexual e gênero ainda estavam em processo de incubação. Para Gisele Gomes, psicanalista e professora na RNA Clínica e Escola de Psicanálise, em São Paulo (SP), "Mulheres que Correm com os Lobos" dialoga, sim, com a questão de identidade de gênero. "Quando ela fala do feminino, fala de algo que transcende o universo dos órgãos genitais, corpo e hormônios. O livro fala da busca pelo verdadeiro 'eu' e de liberdade de escolhas, duas buscas comuns a quase todos", pontua. "Clarissa incentiva a valorização da própria história e a libertação de crenças culturais que aprisionam e determinam como o feminino deve agir",endossa a psicanalista Andréa Ladislau.

O long-seller de Clarissa Pinkola - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Na natureza selvagem

Quem são as mulheres abordadas do livro, e por que correm com os lobos? Para responder, é preciso conhecer um pouco sobre a vida da autora e a influência que suas raízes tiveram sobre sua obra. Clarissa Pinkola Estés nasceu em uma pequena vila no estado de Indiana e tem ascendência mexicana. Aprendeu cedo a falar espanhol e, aos quatro anos, foi adotada por um casal de imigrantes húngaros analfabetos. Por conviver com imigrantes e modos de vida diferentes, ao longo da vida Clarissa teve acessos a memórias, lendas e fábulas de outros povos, contados e recontados por parentes e pelos pais adotivos.

Clarissa Pinkola, autora de "Mulheres que correm com os lobos" - Divulgação - Divulgação
Clarissa Pinkola, autora de "Mulheres que correm com os lobos"
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Ao se tornar psicanalista, combinou os símbolos da abordagem terapêutica do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) com narrativas de contos de fadas e mitos. Com estudos concluídos no Colorado e em Zurique, na Suíça, Clarissa fez apresentações em diversas partes do mundo, algumas delas ao lado da ativista negra e poetisa Maya Angelou (1928-2014). Aos 75 anos, Clarissa segue vivendo nos Estados Unidos, integra a diretoria do Centro Maya Angelou de Pesquisa de Saúde das Minorias da Escola de Medicina da Wake Fores University e, embora raramente conceda entrevistas, continua na ativa ministrando cursos e palestras.

O trunfo de "Mulheres que Correm com os Lobos" é a narração. Clarissa Pinkola Estés é uma exímia contadora de histórias. Por meio de contos clássicos como "O Barba-azul", "O Patinho Feio" e "Os Sapatinhos Vermelhos", além de outros menos conhecidos no Brasil como "Vasalisa, a Sabida" e "A Mulher-Esqueleto", a psicanalista traça um paralelo entre símbolos e ensinamentos contidos nessas narrativas e o inconsciente feminino. O fio condutor que inicia e perpassa todas as narrativas é a lenda mexicana de La Loba, uma velha mágica que recolhe ossos e que, com seu canto, consegue remontar o esqueleto de um lobo e lhe dar vida. Ao correr livre e feliz, o lobo se transforma em mulher.

Motivação na pandemia

A biografia de Estés guarda relação estreita com outros momentos de grande ruptura global: como especialista em transtorno de estresse pós-traumático, ela atendeu veteranos das Primeira e Segunda Guerras Mundiais (entre 1914-1918 e 1939-1945, respectivamente), além de ex-combatentes da Guerra do Vietnã (1955-1975) com perdas de membros ou cadeirantes e sobreviventes dos ataques de 11 de setembro de 2001, em Nova York. Faz sentido que seu livro mais conhecido evoque o impulso de vida gerado pela iminência ou o temor da morte.

"Em momentos assim, como na pandemia, é natural que comecemos nossas escavações por dentro de nós. Surgem perguntas como 'o que estou fazendo da minha vida?'", explica a psicóloga junguiana Patricia Cuocolo.

Elisa Leão, psicóloga clínica e palestrante, docente do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em Brasília, lembra que a obra fala sobre como estar vivo é lidar com a morte o tempo todo.

Recentemente, Clarissa Pinkola Estés liberou para divulgação entre as editoras responsáveis pela comercialização de suas obras o texto "Do Not Lose Heart, We Were Made for These Times" (Não Desanime, Fomos Feitos para Esses Tempo), uma "carta de bênção" para tempos de pandemia:

"(...) Por muitas décadas, em todo o mundo, almas como as nossas foram abatidas e deixadas para morrer de muitas maneiras, repetidas vezes. Abatidas por ingenuidade, pela falta de amor, pela percepção tardia de alguma coisa mortal, por não perceber com rapidez suficiente e serem emboscadas e atingidas por vários choques culturais e pessoais radicais. Todos nós temos uma herança e uma história de destruição e, embora não nos lembremos disso especificamente, por necessidade aperfeiçoamos o talento da ressurreição. (...) Eis aqui: você ainda está de pé? A resposta é sim (e aqui não cabe nenhum advérbio que reduza o peso da sua afirmação). Se você ainda estiver de pé, com bandeiras pouco ou muito esfarrapadas, você conseguiu. Você passou na prova. E conseguiu superá-la. Você está apto a navegar."