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Das casas de boneca à alimentação, como a cozinha virou 'lugar de mulher'

A propaganda da cozinha tipicamente americana vendia as supostas facilidades para as mulheres, retratadas de salto alto e vestido rodado - ArtsyBee/Pixabay
A propaganda da cozinha tipicamente americana vendia as supostas facilidades para as mulheres, retratadas de salto alto e vestido rodado Imagem: ArtsyBee/Pixabay

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

01/10/2020 04h00

Um cômodo limpo, bem organizado, bem equipado de eletrodomésticos, revestido de fórmica, metal e madeira lisa. Pode parecer que sempre foi assim, mas a cozinha como conhecemos hoje é bem diferente daquela da pré-industrialização.

O espaço, que hoje abriga socialização — e em determinados grupos sociais se integra à sala de estar—, já ficou separado da casa. Ainda no século 19, o processamento dos alimentos era feito ali mesmo, abrigando os cheiros e a bagunça dos grãos, animais abatidos, água e fogo antes de as refeições serem servidas à mesa, na sala de jantar. Cozinhar envolvia fazer fogo sem gás nem água encanados. Era trabalho braçal, feito por escravizados aqui no Brasil.

Com a industrialização dos alimentos, dos móveis e dos eletrodomésticos, ela passou a ser mais racional e funcional, e se integrou ao trabalho doméstico das donas de casa. Foi apenas no período entreguerras que a cozinha tomou a cara de modernidade que vemos hoje, e começou a ser vendida como um espaço prático, onde dava para trabalhar até mesmo de vestido rodado e salto alto, como era comum ver nas propagandas da década de 1950.

A história desse cômodo, resumida acima mas contada em detalhes no livro "Cozinha e Indústria em São Paulo", que rendeu à pesquisadora e autora Maria Cecília Naclério Homem o prêmio Jabuti de gastronomia em 2016, perpassa mudanças sociais e culturais profundas no Brasil e no mundo. Mas uma coisa parece permanecer: a cozinha doméstica quase sempre foi, predominantemente, ocupada por mulheres. Quando isso foi decidido?

Cozinha dos anos 1500 retratada pelo pintor flamengo Marten van Cleve - Marten van Cleve/Wikimedia Commons - Marten van Cleve/Wikimedia Commons
Cozinha dos anos 1500 retratada pelo pintor flamengo Marten van Cleve
Imagem: Marten van Cleve/Wikimedia Commons

Casinha de boneca

O design e a funcionalidade desses espaços começaram a ser pensados no fim do século 19, mas ganharam força na década de 1920, inicialmente na Europa — com protagonismo da Alemanha e da Áustria — e pouco depois nos Estados Unidos, relata Silvana Rubino, professora do Departamento de História da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

"A partir de 1910, 1920, a Europa estava discutindo o que fazer com o fim daquela empregada que dormia em casa, a criada que estava à disposição o dia inteiro", diz a professora. "Isso impactou a vida doméstica e houve todo um empenho para fazer com que a casa se tornasse um espaço mais eficiente, mais fácil de cuidar sem aquele séquito de trabalhadores."

Revestimento branco, espaço mais compacto para facilitar os movimentos, gás e água encanados: era tudo novidade. A cozinha com cara de laboratório começa a se desenhar na Europa e ganhar toques de glamour nos Estados Unidos, com cores nas bancadas, estampas nas cortinas e equipamentos mais modernos.

A psicóloga e engenheira norte-americana Lillian Gilbreth, por exemplo, chega a estudar os movimentos corporais para entender a melhor disposição do espaço e aumentar a eficiência, assim como era feito nas linhas de montagem das fábricas. "Foram algumas arquitetas e formadoras sociais que começaram a prestar atenção na cozinha. Talvez pela sua própria experiência de dupla jornada", avalia Rubino.

"O princípio da racionalidade que vigora na cozinha moderna inclui a ideia de simplificação do trabalho referente a preparo, limpeza e conservação dos alimentos no âmbito doméstico, além da diminuição do tempo de serviço. Com a industrialização, as tarefas, ou parte delas, que antes eram desenvolvidas a céu aberto, nos telheiros de fundos de quintal, e mesmo nos interiores da habitação, passaram a ser elaborados fora dos domicílios."

Maria Cecília Naclério Homem - "Cozinha e Indústria em São Paulo"

Para mostrar a novidade às famílias, desenvolve-se nos Estados Unidos a ideia de pequenas maquetes de cozinhas planejadas, conta em artigo o historiador e professor da escola de arquitetura da Universidade do Oregon, nos Estados Unidos, Chad Randl. O objetivo era envolver os proprietários das casas — em meio ao boom do sonho americano e a prosperidade econômica — no design do espaço.

Entre uma casinha de boneca e uma maquete arquitetônica, as pequenas amostras de cozinhas eram compostas por um piso, duas paredes, eletrodomésticos e móveis, levados numa maleta até a casa dos clientes. Quem brincava com a disposição das partes era a mulher, convencida por uma promessa de uma cozinha funcional, fácil de limpar e prática na hora de preparar alimentos. Ao marido, cabia a decisão final.

"Fabricantes, anunciantes e educadores cooptaram o imaginário de casinha de bonecas e usaram-no como uma ponte entre infância e vida adulta, sinalizando a realização dos sonhos da garota e reforçando o papel da dona de casa de quem iniciava a reforma", reflete Randl.

Uma cozinha nova, atrativa e ao gosto da mulher era condizente com o plano de atrair de volta ao lar aquelas que, durante a Segunda Guerra, saíram para trabalhar fora de casa, observa o pesquisador. "Situar as mulheres na cozinha e apresentar a reforma e outras formas de consumo como uma maneira primária de melhorar o trabalho doméstico era parte de um retorno mais amplo ao lar no período pós-guerra", escreve ele. Novos produtos e espaços mais práticos e agradáveis eram algumas das moedas de troca.

Homens chefs, mulheres cozinheiras

A cozinha planejada norte-americana chegou ao Brasil, mas com adaptações culturais. Maria Cecília Naclério Homem ressalta, em seu livro, que os imigrantes europeus também tiveram papel importante nas transformações da casa brasileira — tanto na alimentação quanto no próprio ambiente.

Já Rubino, da Unicamp, lembra ainda que no pós-Segunda Guerra as famílias brasileiras de classe média tinham empregada doméstica, o que atrasou de certa forma essa discussão da praticidade por aqui. "Acho que essa relação de cozinha como lugar de trabalho é um pouco para ressignificar o lugar da mulher dona de casa. Se fosse o lugar só de a empregada trabalhar, ficaria lá de qualquer jeito", afirma a professora.

Com a acentuação das desigualdades na sociedade, ainda é difícil definir o que é a cozinha brasileira por excelência. No entanto, a figura predominante continua sendo a da mulher — seja nas classes com menor poder aquisitivo, seja naquelas com mais dinheiro e com uma empregada doméstica.

"O homem até vem participando mais da cozinha, mas ele não tomou esses espaço. É só o homem profissional que toma a cozinha", observa Rubino. "Homem quando costura é estilista, quando cozinha é chef. Essa hierarquia silenciosa de homens e mulheres permanece quando eles adentram uma profissão tradicionalmente tida como feminina, e essa profissão sobe um degrauzinho", afirma a professora.

A cozinha de restaurante e a cozinha doméstica são outro ponto, portanto, que reflete a separação de gênero. "Quando ser um cozinheiro de restaurante passa a ser profissão, você tem a separação da cozinha doméstica, que seria feita por mulheres, da cozinha profissional, feita por homens", reforça Joana Monteleone, editora e historiadora, autora dos livros "Toda comida tem uma história" e "Sabores Urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo".

Segundo a pesquisadora, essa separação data do fim do século 18, com a criação dos restaurantes e sua popularização na França. Se antes as refeições diferenciadas eram aquelas feitas nas casas da nobreza — e para participar você precisava ser convidado —, a partir dali houve a democratização da escolha. Claro, para quem tinha dinheiro para pagar.

Isso gerou a profissionalização da cozinha, elevando o trabalho de patamar e, portanto, sendo ocupado pelos homens que eram educados para isso. Em casa, todo o trabalho que vai do planejamento à execução das refeições e, depois, a limpeza do espaço, ainda recai mais sobre a mulher, lembra Monteleone. Segundo dados de 2019 do IBGE, mulheres que trabalhavam fora de casa passavam 8,2 horas por semana a mais fazendo tarefas domésticas que homens também ocupados.

Mais cobranças

Pensar que os eletrodomésticos e a racionalização da disposição dos móveis na cozinha trouxeram alguma facilidade às mulheres pode ser uma armadilha, defende Rubino. Já no início do século 20, esse discurso era uma forma de tentar qualificar o trabalho doméstico, mas também carrega problemas.

"A ideia de que tudo isso facilitou a vida da dona de casa, ao mesmo tempo jogou o padrão de expectativas para cima. Alguns estudiosos dizem que a mulher trabalha mais hoje do que quando não tinha o eletrodoméstico. É como o computador, celular, que diziam que viriam para facilitar o trabalho. E agora você está disponível a todo momento", avalia a professora da Unicamp.

E para quem pensa que discutir uma questão "pequena" como a disposição das cozinhas é inútil, a pesquisadora lembra que esse cômodo foi tema de um grande debate no auge da Guerra Fria. Em uma apresentação de uma cozinha norte-americana aos soviéticos, o então vice-presidente dos EUA Richard Nixon e o premier soviético Nikita Khrushchev entraram no que ficou conhecido como "The Kitchen Debate".

"Os dois líderes das maiores potências do mundo não brigaram por causa da cachorrinha Laika ou por causa do Gagarin. Brigaram por causa de uma cozinha", resume ela. "É para a gente não pensar que essas questões do modo de vida, essa microhistória, são apenas caprichos, uma questão de escolha. Elas têm uma dimensão muito maior. Uma cozinha nunca é só uma cozinha."