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Livro explica como engenharia genética pode trapacear ou ajudar humanidade

Getty Images
Imagem: Getty Images

Lidia Zuin

Colaboração para o TAB

04/10/2020 04h00

Recentemente publicado pela Faro Editorial, o livro "Hackeando Darwin" foi escrito por Jamie Metzl, especialista americano em tecnologia, saúde futurista e geopolítica. Depois de trabalhar no Conselho de Segurança Nacional dos EUA, o PhD em História Asiática pela Oxford e doutor em direito pela Harvard decidiu se debruçar à pesquisa de um emergente ramo científico: a engenharia genética.

Sua dedicação gerou frutos que ultrapassaram o livro de mais de trezentas páginas — lhe rendeu uma vaga no comitê da ONU para desenvolvimento de padrões globais, governança e supervisão da edição do genoma humano. Afinal, como alerta Metzl em seu livro e em palestras, esse tipo de regulamentação e questionamento precisa ser feito o quanto antes, uma vez que movimentos já estão sendo feitos e gerando controvérsias, como foi o caso das gêmeas chinesas que tiveram seu genoma editado.

Didática, mas também um tanto alongada, a narrativa que Metzl tece em "Hackeando Darwin" passa por momentos de entusiasmo e especulação. Há, de fato, um capítulo especial no qual o autor se dedica às questões éticas em torno da engenharia genética, porém a dúvida que fica é se uma pessoa leiga realmente conseguirá chegar até essa parte crucial antes de desistir ao longo da explicação do processos de cruzamento genético de Mendel.

Retorno da eugenia?

Como um fã e também autor de ficção científica, Metzl chegou a publicar o romance "Eternal Sonata" em 2016, no qual reflete sobre a busca pela extensão da vida. Em "Hackeando Darwin", ele também cita exemplos ficcionais como o filme "Gattaca" (1997), no qual podemos vislumbrar uma sociedade futura em que todos são geneticamente melhorados para exercer determinada atividade. Caso contrário, são relegados a postos de trabalho e classes sociais "inferiores".

Essa discussão, no entanto, já havia aparecido em 1932 quando Aldous Huxley publicou o seminal romance "Admirável Mundo Novo". O curioso é que o escritor britânico tinha um irmão chamado Julian que, além de ter sido o primeiro diretor da UNESCO, também era um biólogo e forte entusiasta da eugenia. Em entrevista para o TAB, Metzl comenta que, como filho de refugiados do nazismo, ele tem plena consciência dos perigos que uma suposta "ciência" genética pode causar, assim como visto na obra de Huxley.

"É bem fácil desenvolver cenários realistas para como essas tecnologias podem ser usadas de forma a destruir democracias, nossas sociedades e nossa humanidade", argumenta o escritor, que, apesar disso, acredita que não devemos permitir que o medo nos paralise: "Se nosso processo de raciocínio para aqui, nós estaremos cometendo um grave desserviço a nós mesmos, a nossos filhos e às futuras gerações."

De acordo com Metzl, "as mesmas tecnologias que podem ser mal utilizadas também têm o potencial de fazer milagres que nos beneficiarão tremendamente." Para ele, "toda vez que uma criança morre devido a um distúrbio genético grave, isso é um crime contra a humanidade". Então, se podemos usar a engenharia genética e outras tecnologias para proteger essas crianças, "nós devemos ao menos considerar essa possibilidade."

O livro "Hackeando Darwin"  - Divulgação - Divulgação
O livro "Hackeando Darwin"
Imagem: Divulgação

A pergunta é onde, não quando

Uma das abordagens trazidas por Metzl que pode deixar o leitor confuso está relacionado ao entusiasmo com que o autor descreve a visão de um futuro no qual o sexo se desvincula do objetivo reprodutivo — enquanto a fertilização in vitro e a seleção de embriões se normalizam, de modo que pais poderão customizar seus filhos como em uma partida de "The Sims".

Devido à sua experiência na área de segurança e relações exteriores, Metzl leva em consideração como determinadas práticas podem ser regulamentadas ou proibidas em determinados países, mas, em outros, podem ser liberadas. Então, o que pode soar como ficção, na verdade, já é real — conforme o autor explica a presente ocorrência do "turismo da fertilidade", o que inclui tanto jurisdições em que não há proibição de acesso ao genoma do embrião antes da implantação quanto locais em que o aborto é legalizado.

Para Metzl, esse tipo de modalidade turística só irá aumentar no futuro ou, na realidade, as pessoas nem precisarão se mover fisicamente para fazer tais procedimentos. "Futuros pais podem enviar óvulos congelados ou mesmo embriões em fase inicial por correio para uma clínica de fertilização em outro país, onde o embrião poderá ser criado e, então, editado à maneira que desejarem. Esse embrião poderia ser implantado em uma barriga de aluguel em uma terceira jurisdição ou, ainda, um dia, em um útero artificial. É fácil de ver como as coisas ficam cada vez mais complicadas rapidamente", explica ao TAB.

Enquanto procedimentos semelhantes já acontecem com plantas e animais, esse tipo de abordagem em pacientes humanos gera uma outra problematização em torno de como regulamentar tais práticas — e se elas, afinal, são éticas. Metzl é bastante prático ao discutir essa parte em seu livro, propondo inclusive estratégias que permitam o uso delimitado dessas soluções. "Na minha visão pessoal, o Reino Unido é provavelmente o país com a melhor regulamentação do mundo em termos de embriologia e fertilidade, o que pode ser um modelo para todos. Mesmo com essa abordagem, ainda temos que fazer uma combinação de diferentes jurisdições com diferentes regras e padrões", argumenta o pesquisador.

Sexo pós-reprodutivo: uma questão de gênero

Uma interessante questão no livro "Hackeando Darwin" é que há alguns momentos fictícios e didáticos, em que uma mulher vai até uma clínica de fertilização do futuro e faz escolhas envolvendo seus próximos filhos. Metzl, de fato, trata de direitos reprodutivos em seu livro, inclusive discorrendo mais ao fim da obra sobre o tema do aborto e a maneira com a qual diferentes países e religiões o enfrentam.

Um dado surpreendente levantado pelo autor é que homens têm uma janela reprodutiva muito maior do que as mulheres — tanto em termos de longevidade quanto de quantidade. Um homem produz, em média, cerca de 525 bilhões de espermatozóides ao longo de sua vida, enquanto uma mulher possui 300 mil óvulos durante a puberdade e somente 300 a 400 destes serão ovulados durante seu período fértil.

A matemática é óbvia, mas a sociedade, não: há muito mais opções de métodos contraceptivos às mulheres do que aos homens, desde anticoncepcionais orais até implantáveis, injetáveis e adesivos — sendo que todos eles acompanham possíveis efeitos colaterais como trombose, gravidez ectópica, além das variações de humor e libido. Só mais recentemente começaram a testar um anticoncepcional masculino.

Sobre isso, Metzl reforça sua defesa à liberdade reprodutiva feminina, mas suas ponderações levam em consideração a diversidade de perspectivas de acordo com cada crença e tradição — e foi por isso mesmo que o autor foi convidado para escrever um artigo sobre o tema para o Vaticano.

O pesquisador Jamie Metzl  - Esther Horvath - Esther Horvath
O pesquisador Jamie Metzl
Imagem: Esther Horvath

Futuro à prova de golpes

Outra questão levantada por Metzl diz respeito à privacidade e ao valor que nossos dados genéticos possuem. Se, hoje, já vemos nossos dados pessoais e publicações em redes sociais sendo monetizados por terceiros, também há um outro lado na economia digital que monetiza nosso DNA sequenciado, vendendo essa informação à indústria farmacêutica, por exemplo. A longo prazo, seguradoras mal-intencionadas podem se utilizar desses mesmo dados para extorquir clientes que tenham predisposição a determinadas doenças.

O pesquisador afirma que é justamente por isso que precisamos de uma regulamentação que proteja as pessoas de desdobramentos catastróficos — para que vítimas não precisem se defender sozinhas, mas sejam amparadas pela própria legislação.

Quando todos tiverem seu DNA sequenciado e nós entendermos mais sobre nossa genética, iremos perceber que todo mundo sempre estará portando algum tipo de doença. Todos temos grandes forças escondidas, mas também vulnerabilidades desconhecidas. Fará mais sentido lidar com esses riscos de forma coletiva. Por isso, na minha visão, é melhor que a maioria das sociedades adotem um sistema de saúde nacional de pagamento único. Assim, todos podem estar protegidos.

Jamie Metzl

No momento em que nos deparamos com negacionismo científico e um retrocesso ainda maior do que a pós-verdade, será que faz sentido ter expectativas tão otimistas no que diz respeito à democratização da saúde?

Metzl diz que é entristecedor ver pais se negando a vacinar seus filhos; contudo, o escritor não acha que a culpa é só dos negacionistas, uma vez que nossa tecnologia avança de maneira tão rápida que, muitas vezes, parece mágica mesmo — e isso pode assustar as pessoas. "Precisamos trabalhar para que nossos sistemas educacionais sejam tão fortes quanto eles podem ser. Também precisamos fazer com que pessoas comuns tenham uma voz na hora de decidir como essas [novas] tecnologias serão usadas", opina.

O autor lembra de como, nos anos 1970, os cientistas acharam que os benefícios dos alimentos transgênicos eram tão óbvios que nem precisaria de uma campanha de comunicação e educação da sociedade. Só que a consequência foi contrária: a falta de informação fez com que grupos e movimentos anti-GMOs surgissem. Para ele, a divulgação científica deve andar de mãos dadas com o desenvolvimento tecnológico, de modo que esse tipo de reflexão não fique confinado aos comitês de ética — mas chegue às escolas e às comunidades que, afinal, são os sujeitos a serem afetados por essas mudanças.