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Linguagem neutra: proposta de inclusão esbarra em questões linguísticas

dpa/picture alliance/Getty Images
Imagem: dpa/picture alliance/Getty Images

Marie Declercq

Do TAB

07/10/2020 04h01

Em setembro, Rosa Laura, ativista da causa trans, não binária, gravou um vídeo em seu Instagram explicando como utilizar a linguagem neutra no dia a dia. O vídeo rapidamente viralizou, tanto pelo didatismo de Rosa Laura quanto pela revolta de usuários das redes sociais que consideraram a proposta um capricho do ativismo trans.

Em Portugal, o tema também está quente: o Ministério da Defesa, em 18 de setembro, produziu uma diretiva que recomenda o uso de linguagem neutra e inclusiva em certidões e registros civis. Em vez de "nascido em", usar "data de nascimento"; em vez de "os políticos", usar "a classe política".

A linguagem neutra, ou linguagem não binária, não é obrigação imposta por nenhum movimento da causa LGBTQI+, mas uma discussão que propõe uma modificação na língua portuguesa para incluir pessoas trans não binárias, intersexo e as que não se identificam com os gêneros feminino e masculino. A ideia é criar um gênero neutro para ser usado ao se referir a coletivos ou a alguém que não se encaixa no binarismo.

Para além do universo preto-no-branco das redes sociais, essa discussão vem crescendo nos últimos anos entre acadêmicos de linguística e estudos de gênero. Uma crítica comum é a dificuldade em implementar esse sistema na língua portuguesa e seus efeitos na aprendizagem e alfabetização. Afinal, por que a linguagem neutra é considerada tão importante, e qual seria o problema em adaptar a língua portuguesa para incluir uma parcela inviabilizada da população?

Não é capricho

A proposta de criação de um gênero neutro na língua portuguesa e de mudanças na forma com que nos comunicamos nem sempre é aceita, e costuma ser vista como "capricho".

Para Monique Amaral de Freitas, doutoranda em Linguística pela USP (Universidade de São Paulo), apresentadora do podcast "Linguística Vulgar" e colunista no blog "Cientistas Feministas", o debate está longe de ser irrelevante.

"Há dois problemas com esse tipo de afirmação. O primeiro é que ela pressupõe que a língua seria apenas um reflexo da sociedade, o que, a esse altura, no campo das ciências da linguagem, já sabemos que não é verdade. A relação entre língua e sociedade não é de mão única. As coisas que dizemos são, por elas mesmas, ações no mundo, elas têm consequências. O segundo problema é que refletir sobre a linguagem não nos impede de agir a respeito de outras questões", explica.

A implementação da linguagem neutra seria uma forma de inclusão de grupos marginalizados, acredita Jonas Maria, de São Paulo, criador de conteúdo LGBTQI+ e graduado em Letras.

"Não é uma simples mudança gramatical, mas uma mudança de perspectiva", afirma. "Quando falamos em linguagem neutra, estamos falando sobre gênero, relações de poder. Sobre tornar visível uma parcela da sociedade que é sempre posta à margem, que são as pessoas transgêneras", disse Maria ao TAB.

O masculino genérico

A discussão sobre um gênero neutro na linguagem deriva do uso do gênero gramatical masculino para denotar homens e mulheres ("'todos' nessa sala de aula precisam entregar o trabalho") e do feminino específico ("[Clarice Lispector] é incluída pela crítica especializada entre os principais autores brasileiros do século 20").

Na gramática, o uso do masculino genérico é visto como "gênero não marcado", ou seja, usá-lo não dá a entender que todos os sujeitos sejam homens ou mulheres — ele é inespecífico. Por ser algo cotidiano, é difícil pensar nas implicações políticas de empregar o masculino genérico, mas o tema foi amplamente discutido por especialistas como uma forma de marcar a hierarquização de gêneros na sociedade, priorizando o homem e invisibilizando mulheres. O masculino genérico é chamado, inclusive, de "falso neutro".

Entretanto, essa abordagem não é unânime no campo da Linguística. Para muitos estudiosos, a atribuição sexista ao masculino genérico ignora as origens latinas da língua portuguesa.

No latim havia três designações: feminina, masculina e neutra. As formas neutras de adjetivos e substantivos no latim acabaram sendo absorvidas ora por palavras de gênero masculino. A única marcação de gênero no português é o feminino. O neutro estaria, portanto, junto ao masculino.

Vivian Cintra, professora de língua portuguesa, coordenadora pedagógica e mestre em Linguística pela USP (Universidade de São Paulo), lembra que a língua também é influenciada pela cultura e pela época em que vivemos. O uso ou a negação do masculino genérico pode ser político, sempre dependendo do contexto e do objetivo do interlocutor.

"Em uma sociedade patriarcal, fazer questão de utilizar o feminino para dar visibilidade, discursivamente, a mulheres, configura uma forma de resistência para elas. Talvez, para as pessoas que têm a preocupação de usar formas mais neutras para se expressar, manter-se empregando o masculino genérico seja uma postura de aceitação da dominação masculina na nossa sociedade ou da lógica binária segundo a qual homens só podem se expressar no masculino, e mulheres, no feminino", explica Cintra.

'Você é mi namorade'

As primeiras propostas foram trocar "o" e "a", que em português são vogais-morfemas que definem o gênero das palavras, para "x" ou "@". Por exemplo: "você é linda" ficaria "você é lindx" ou "você é lind@".

No entanto, esses sistemas foram contestados por serem exclusivamente escritos e também atrapalharem a leitura de pessoas com dislexia. Atualmente, o uso do "x" perdura em algumas iniciativas de inclusão de LGTBQIs, mas o que parece ser mais adaptável é usar a vogal "e" no final de palavras como adjetivos. Ficando assim: "Você é meu namorado" para "Você é mi namorade".

Sempre que a proposta da linguagem neutra reaparece nas redes sociais, também ressurgem alguns argumentos contra essa implementação. O argumento de Cintra, entretanto, destaca que já existem outros termos e adaptações que também não seriam necessariamente inclusivos.

"Quando nos comunicamos pela internet, é comum usarmos abreviações como 'pq', 'vc', 'tbm', 'rsrsrs' entre outras, que tampouco são decifradas por softwares de leitura de tela para cegos, nem são ensinados nas escolas. Imagino que poucos adolescentes encontrem dificuldade para dominar o 'texting'. Mas isso não costuma gerar tanta polêmica quanto linguagens não binárias. Talvez a solução de leitura desses softwares precise considerar não apenas as linguagens não binárias, como diversas outras manifestações linguísticas que hoje ainda não são contempladas", explica Cintra.

Questões linguísticas

O Brasil não é o único país onde a linguagem neutra é discutida. Alguns setores acadêmicos, instituições de ensino e ativistas dos EUA já consideram usar pronome neutro para se referir a todos, em vez de recorrer à demarcação de gênero binário.

Especialistas avaliam que a modificação gramatical em línguas latinas pode ser muito mais complexa e custosa do que no inglês ou no alemão, onde já está em uso o gênero neutro, porque a língua em si já oferece essa opção.

"Esse tipo de inovação é mais fácil de ocorrer no inglês, em que, com exceção daquelas palavras herdadas do latim, como 'actor' (ator) e 'actress' (atriz), a flexão de gênero não altera os substantivos e adjetivos. No caso do português, essa transformação não depende apenas da alteração de um pronome, porque a flexão de gênero afeta todo o sintagma nominal. Assim, a flexão de gênero é demarcada pela vogal temática (a/o) (como em "pesquisadoras brasileiras") e/ou por meio do artigo (a/o) (como em "a intérprete")", explica Amaral sobre a adaptação.

Mesmo com os desafios morfológicos, a linguista afirma que não é impossível pensar em proposições mais inclusivas. E isso não necessariamente significa que há uma tentativa de "destruição" do português. "A história de uma língua sempre conta muito sobre a história de seus falantes, de modo que as coisas que falamos hoje em dia não brotaram da terra ou vieram prontas, mas dependem de nossa história como humanidade. (...) Nesse sentido, as propostas já existentes seriam primeiros passos nesse movimento, e não uma forma final a ser imposta a todos os falantes", afirma.

No caso do Brasil, a proposta de linguagem neutra exige, além de vontade política dentro da área da educação e da sociedade em geral, uma soma de forças de diversos setores da sociedade para assim desenvolver um sistema que possa ser aprendido por brasileiros já alfabetizados e pelos que estão em processo de alfabetização.

"A resistência que ocorre, seja dentro ou fora da universidade, geracional ou não, não diz respeito à viabilidade dessa mudança, pois não existe nenhum empecilho estrutural nos sistemas que estão sendo propostos. O sistema "elu/delu" é só uma sugestão, mas poderia ser qualquer outro. Essa mudança é possível linguisticamente, em todos os sentidos, mas a discussão se dá por conta do grupo social que está propondo e do que está sendo discutido", opina Jonas Maria.