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Com hit de Anitta, produtor joga 'molho' do pagodão baiano no pop mundial

Rafa Dias e o ÀTTØØXXÁ: "Uma das coisas que a música brasileira faz, sobretudo a baiana, é uma comunicação ancestral com o corpo, não precisa você falar. Bateu um "gravão" ali, comunicou" - Ândrea Possamai/Divulgação
Rafa Dias e o ÀTTØØXXÁ: "Uma das coisas que a música brasileira faz, sobretudo a baiana, é uma comunicação ancestral com o corpo, não precisa você falar. Bateu um 'gravão' ali, comunicou"
Imagem: Ândrea Possamai/Divulgação

Tiago Dias

Do TAB

08/10/2020 04h01

A primeira batida de "Me Gusta" dá a entender que a aposta de Anitta na carreira internacional vai seguir no ritmo do batidão do funk. Mas, logo depois do tamborzão, a levada do pagodão baiano na guitarra entrega que a onda é outra. E esse suingue, conhecido de outros carnavais, está diferente.

Para o produtor Rafa Dias, 30, a música baiana, que encantou artistas como Paul Simon e Michael Jackson, sempre travou diálogos — assim foi com a bossa nova, o mais internacional dos gêneros brasileiros, que nasceu nas mãos do baiano João Gilberto. "Sempre teve a visão de se comunicar com o resto do mundo, mas dos anos 2000 para cá, isso meio que tinha sido freado", observa ele, ao TAB.

A diferença de "Me Gusta" é que essa música cheia de tradição agora está a serviço do pop mundial, da dancinha do TikTok e, por que não, do Hot 100 da Billboard, vitrine mundial onde poucos brasileiros se aventuraram. Na semana de lançamento, "Me Gusta" entrou na lista das músicas mais vendidas nos Estados Unidos em 91º lugar.

Elemento brasileiro no time de produtores gringos de "Me Gusta", Dias é DJ e um dos fundadores do ÀTTØØXXÁ, grupo que vem depurando toda a baianidade para o pop desde 2015, sem abrir mão dos graves e dos grooves. "Temos uma ancestralidade percussiva, e meio que existe um código de conduta com essa tradição que a gente respeita, mas, de certa forma, eu queria decifrá-la, dar uma cara de mundo", explica.

Na cabeça ainda de criança, ele ouvia o som agudo da bacurinha — repininque pequeno, idealizada por Carlinhos Brown e tão marcante no pagodão — com os ouvidos do pop, do rap e da música eletrônica. "A galera aqui é muito fissurada nos elementos percussivos sendo tocados. Mas aquele som que parece de metralhadora, 'tra-tra-tra', é clássico no mundo todo. Eu já ouvia toda essa bateria num beat, e comecei a experimentar timbres e levadas."

Rafa Dias - Edvaldo Raw/Divulgação - Edvaldo Raw/Divulgação
Imagem: Edvaldo Raw/Divulgação

Rafa Dias é de Paulo Afonso, que abriga, além de seus cânions cinematográficos, uma cena musical crescente e produtores musicais. Instigados pela popularização do FL Studio (Fruity Loops Studio), software para produção musical com navegação que lembra um joguinho, jovens hoje têm experimentado batidas do trap, funk e do pagodão baiano na música eletrônica — tudo feito em casa. É de lá as demos que deram origem a "K.O." e "Problema Seu", de Pabllo Vittar. NoizeMan, de 22 anos, é autor da última e observa a influência de Dias. "Não só pra mim, mas para todos que estão fazendo pagodão eletrônico. E é muita galera fazendo. Ele está revolucionando a música baiana e é incrível saber que ele é de Paulo Afonso."

A busca da batida perfeita, ainda em Paulo Afonso, fez Dias viajar o mundo com Os Nelsons, grupo que decodificava o pagodão para as pistas. Já em Salvador, com o ÀTTØØXXÁ, a ideia era refinar essa musicalidade baiana sob o prisma do pop de hoje, mais econômico.

A primeira vez que o grupo conseguiu traduzir aqueles milhões de sons em algo com poucos elementos foi com "Elas Gostam". Regravada por Psirico, a música impregnou o Carnaval de 2018. E era o som que Anitta tinha na cabeça (e nos quadris) quando chegou para os baianos dizendo: "É isso que eu quero, mas tem que soar 'mundo'". O produtor começou na hora a preparar o "molho".

O molho e a lama

Os instrumentos e a complexidade percussiva talvez sejam a chave para entender a potência da música baiana no chão. Essa busca por lá tem nome. "O 'molho' é como a gente chama a parte musical, os instrumentos da faixa aguda", explica Dias.

Quando recebeu a harmonia e a voz de Anitta, à capella, ele optou por ingredientes reduzidos. Pensou na levada de Chibatinha (seu companheiro no ÀTTØØXXÁ) na guitarra e adicionou pequenas doses do xequerê, da bacurinha e da conga. O arrocha, ritmo nascido em Candeias (BA), nos anos 1990, serviu para marcar o tempo e travar um diálogo mais próximo com o reggaetón, com kicks e batidas mais retas.

Feat ilustre na faixa de Anitta, Cardi B fez questão de dizer que só topou gravar porque a música não saía de sua cabeça — e do seu corpo. Afinal, o molho só dá certo se tiver a "lama". "É quando o povo está no suor, no mete dança, tá ligado?"

Em 2019, o DJ e produtor americano Diplo dividiu o trio elétrico com o ÀTTØØXXÁ no Carnaval de Salvador, e sentiu o drama de perto. "Ele estava tocando e estava fervendo, mas aqui é a nossa terra e, com todo o respeito, ele sentiu o baque com a galera pulando. No dia seguinte, ele estava no meu zap querendo fazer alguma coisa. Tomou a pancada no peito do carnaval, e isso mudou o cara", lembra Dias.

Diplo já conhecia o produtor desde o projeto A.MA.SSA, feito com Mahal Pita, e chamou o baiano recentemente para tocar em uma live em seu canal. Uma música feita com o Major Lazer (de Diplo) tem Ludmilla nos vocais e a promessa de lançamento ainda para 2020. "A música está pesada, é pagodão heavy, é a lama", promete.

Na pista

Sob a alcunha de RDD, ele lança ao mesmo tempo o projeto SalCity Sounds. A primeira música "We Go Hard", traz participações de Agent Sasco (colaborador dos norte-americanos Kanye West e Kendrick Lamar) e o rapper Dfideliz, e uma conexão com aquele adolescente de Paulo Afonso.

"Quando comecei a trabalhar com música eletrônica, eu me lembro muito do kuduro, da cumbia eletrônica, tudo se transformando. Hoje, o afrobeat está aí com a Beyoncé. De certa forma, esse mercado lá fora, de tão fechado, se cansou, porque porque tudo é trap. Foram buscar essa válvula de escape na música negra que acontece fora de lá. Com fé em Jah, nós vamos botar a música baiana nessa parada", torce.

Uma vez, antes de se apresentar no México, ele conta que ficou receoso de como os elementos da música baiana seriam recebidos nas pistas. O estranhamento aconteceu, mas durou pouco. "Uma das coisas que a música brasileira faz, sobretudo a baiana, é uma comunicação ancestral com o corpo, não precisa você falar. Se você botar só o groove, os gringos vão se mexer. Bateu um 'gravão' ali, comunicou. Ali, naquele show, eu vi que nem precisava de letras, as pessoas entendiam com o corpo."