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Por que as armas de fogo e o desejo de praticar tiro estão em alta no mundo

Protesto pró-armas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress
Protesto pró-armas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Henrique Santiago

Colaboração para o TAB

24/10/2020 03h01

Sete em cada dez brasileiros são contra a liberação do porte de armas de fogo, revelou o Ibope em pesquisa feita em 2019. A discussão voltou a ganhar força no Brasil com a chegada de Jair Bolsonaro ao Executivo. O presidente é favorável à flexibilização do Estatuto do Desarmamento, e afirmou, na reunião ministerial de 22 de abril: "Eu quero o povo armado. O povo armado jamais será escravizado".

A ideia em si não se restringe ao Brasil. Trata-se de um fenômeno que ocorre em diferentes países, com a ascensão de líderes de extrema direita que têm discurso ancorado no armamento da sociedade civil como forma de autodefesa. Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, é apenas um deles.

Em 2017, havia mais de um bilhão de armas de fogo no mundo: 857 milhões estavam sob a posse de cidadãos comuns, revelou um estudo da Small Arms Survey. Em 2006, eram 650 milhões nas mãos de civis. Nos EUA, líder mundial em produção bélica, a pandemia de Covid-19 e os protestos antirracistas após a morte do afro-americano George Floyd impulsionaram o comércio de armas. Somente no primeiro semestre de 2020, mais de 19 milhões de armas foram vendidas, aponta um relatório do instituto Brookings.

É preciso voltar no tempo para entender as motivações e argumentos que ganham cada vez mais força, e o que move o desejo de parte da população por armas e munições.

Por que as armas estão em alta no mundo? Não há como separar o contexto político global do aumento da procura por armas de fogo. É nisso que acredita o antropólogo Luiz Eduardo Soares, que destaca a ascensão de governos de ultradireita e neofascistas. Ao TAB, ele diz que lideranças como Donald Trump, dos EUA, Viktor Órban, da Hungria, e Andrzej Duda, da Polônia, instauraram como projeto político a facilitação (e valorização) do acesso a armas. "É mais do que apenas pedir maior ou menor acesso a armas. É um pacote, digamos assim, de valores, crenças e comportamentos que têm como característica a definição de inimigos, cuja identidade vai sendo construída. O afeto predominante é o ódio e é mais ou menos 'natural' que as armas se convertam em instrumento simbólico, como uma ferramenta, um elemento útil", assinala Soares.

E por que se armar? Porque o Estado não protege o cidadão, e há quem lucre com o medo. Na concepção de Soares, a estratégia de qualquer governo em dar à população a sensação de segurança ao comprar uma arma de fogo é, na verdade, uma confissão de que o próprio Estado falhou em promover segurança pública. Os EUA têm mais armas que habitantes: 393 milhões contra 328 milhões, afirma o Small Arms Survey. "Essa falência [do Estado] cria um vazio e esse vazio é ocupado pelo medo e por discursos demagógicos. A resposta de distribuição de armas é a mais destrutiva que se pode imaginar", acredita. E o medo encontra aliados: programas sensacionalistas de televisão expõem a criminalidade e, por sua vez, questionam a ineficiência do próprio Estado. Ou, nas palavras do antropólogo, jogam mais gasolina no incêndio. "Na medida em que esses programas manipulam sentimentos genuínos, temos um desastre, porque não se tem um debate sobre a questão. O que se tem é a prevalência de soluções 'mágicas' e fantasiosas, um punitivismo sem qualquer reflexão. O medo vende à beça."

O ex-deputado Roberto Jefferson participa do protesto pró-armas na Esplanada dos Ministérios - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress
O ex-deputado Roberto Jefferson participa do protesto pró-armas na Esplanada dos Ministérios
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

O que está por trás disso? A cientista política e pesquisadora da Universidade Livre de Berlim, Kristina Hinz, aponta uma inter-relação intrínseca entre um modelo de masculinidade, ainda que não hegemônico, e a cultura das armas. Nos Estados Unidos, seis em cada dez compradores de armas são do sexo masculino, informa uma pesquisa de 2017 do Pew Research Institute. A mesma organização detalhou que quase metade (48%) dos homens brancos estadunidenses tem uma arma. "A guerra, o combate de inimigos e o controle de território são elementos centrais de uma masculinidade mais tradicional, e parte fundamental dessa masculinidade bélica são as armas", afirma a cientista política. A conexão chega à ficção: o próprio cinema brasileiro apresenta heróis e anti-heróis que fazem uso de armamento pesado, sejam eles agentes do Estado ou menores de idade em situação de vulnerabilidade.

O Brasil é muito armado? O país é o principal importador de armas da América do Sul, respondendo por 31% do total da produção na região em 2019, aponta o Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo (Sipri). Essa importância pode cair, depois que a fabricante alemã Heckler & Koch anunciou que não irá mais exportar armas para cá. Os motivos, segundo a empresa, foram o clima político tenso instaurado na última eleição presidencial e a violência policial. Segundo Hinz, essa decisão veio tarde. "A guerra às drogas não começou no governo Bolsonaro, e os casos de violência cometidos por policiais e militares são amplamente documentados, há décadas." Em 2018, 41.179 pessoas foram assassinadas por armas de fogo no Brasil, uma taxa de 19,8 por 100 mil habitantes, de acordo com o Atlas da Violência.

Mas as pessoas não têm direito de se armar? É impossível falar sobre armas no Brasil sem voltar ao referendo de 2005, quando 64% da população votou pela continuidade das vendas de armas de fogo. A diretora de Programas do Instituto Igarapé, Melina Risso, recorda que o lado vitorioso fez uma campanha financiada pela indústria armamentista com base no direito de liberdade individual. "O que houve foi uma importação do discurso norte-americano, mas não faz sentido no ordenamento jurídico brasileiro. Nos Estados Unidos a posse de arma é um direito, no Brasil é uma concessão do Estado, assim como no resto do mundo. Lá em 2005 a campanha era pelo direito de se defender; em nenhum momento a nossa legislação permite essa concessão. Temos direito à segurança e à vida", afirma. Segundo ela, a argumentação da época ajudou a construir esse fascínio.

Rifle semiautomático fotografado em loja de armas nos Estados Unidos - George Frey/Getty Images - George Frey/Getty Images
Rifle semiautomático fotografado em loja de armas nos Estados Unidos
Imagem: George Frey/Getty Images

O discurso pró-armas é um só? É comum ouvir que o uso de armas de fogo deve ser feito de uma forma mais violenta, mas não são todos os grupos que validam essa fala, alerta a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, ainda que ela discorde que revólveres ou metralhadoras sejam instrumentos de recreação. "Tem gente que quer ter arma para defesa pessoal em casa e para a prática de esporte. Os mais militantes estão fazendo lobby no Congresso, é a base eleitoral do Jair Bolsonaro que se posiciona de forma mais agressiva com quem discorda. E tem gente que quer praticar tiro, se beneficia das flexibilizações", opina. O número de registros de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) está em alta no país: 477.159 até junho de 2020, aumento de 20% em relação ao ano anterior, segundo a organização.

Mais armas legais, mais mercado ilegal? Ao longo de 2019, a Polícia Federal liberou um total de 54.386 de registros de armas para defesa, aumento de 98% em relação a 2018. No primeiro semestre de 2020, a PF comunicou a venda de quase 74 mil armas de fogo. Carolina Ricardo vê essa escalada com preocupação, uma vez que portarias que aprimoravam o rastreamento desses itens foram revogadas pelo atual governo, o que pode aumentar as chances de desvios para o mercado ilegal. Hoje, o brasileiro gasta no mínimo R$ 3,7 mil para ter uma arma em casa, informa a fabricante Taurus.