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Ford desaparece no Brasil e vira sucata, cinema pornô e shopping popular

Placa é encoberta por vegetação em terreno da Ford em Taubaté, interior de São Paulo  - Avener Prado/UOL
Placa é encoberta por vegetação em terreno da Ford em Taubaté, interior de São Paulo
Imagem: Avener Prado/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB

22/01/2021 04h01

O operador de máquina Márcio Gleyser estaciona seu Honda Civic cinza bem na frente do portão da fábrica, tira as cervejas, pega as caixas de pizza e liga o som alto. A voz de Renato Russo sai do porta-malas, enquanto o truco entre os colegas de serviço rola solto em uma tarde de segunda-feira, calorenta e tediosa, em Taubaté (SP). "Quem me dera ao menos uma vez/Explicar o que ninguém consegue entender/Que o que aconteceu ainda está por vir/E o futuro não é mais como era antigamente."

É o fim da Ford no Brasil. Os operários estão em vigília dia e noite para que não entre nem saia nenhum carregamento desde que a multinacional norte-americana anunciou o fechamento de suas indústrias no país. Essa reunião contrasta com outra, distante no tempo: em 24 de abril de 1919, uma terça-feira, a assembleia da diretoria da Ford Motor Company se reuniu em Highland Park, Michigan (EUA), e decidiu abrir uma filial em São Paulo.

Era o início da indústria automobilística no país. Um casarão de dois andares na rua Florêncio de Abreu, no centro da cidade, foi palco da primeira linha de montagem. As peças vinham encaixotadas dos Estados Unidos, e o calhambeque Ford T era todo encaixado como um espetáculo para os pedestres.

A fachada com dois grifos sobreviveu às constantes mutações paulistanas e abriga agora lojas do Shopping 25 de Março, mercado de produtos "made in China" no centro paulistano.

Por uma triste ironia, na frente do local que inaugurou a fabricação do transporte a motor no país passam diariamente dezenas de carregadores e catadores, puxando suas carroças e mostrando que a tração humana segue tão brasileira quanto há 102 anos. O país que sonhou no século 20 se industrializar acordou um século depois ainda rural, primário e importador de bens, preso em sua mentalidade colonial.

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O operador de máquina Márcio Gleyser estaciona seu Honda diante do portão da Ford em Taubaté (SP)
Imagem: Avener Prado/UOL

Os operários na porta da fundição e fábrica de motores e câmbio de Taubaté são a cara da incerteza. Cabisbaixos e sentados em cadeiras de praia sobre o asfalto do estacionamento, uns falam que o lugar vai virar um condomínio, outros ouviram falar que uma empresa chinesa, possivelmente a Chery, podia se instalar no complexo, criado há 52 anos como uma réplica de uma planta da marca em Ohio (EUA).

"Enquanto o salário tá caindo na conta, dá para curtir, né, parça? Mas é foda. Pensava em me aposentar aqui. De repente, a vida deu uma reviravolta. Foi um choque: eu estava de LR [licença remunerada] quando recebi mensagem de uns camaradas no WhatsApp que a Ford fechou. Corri pra cá", resume Gleyser, 31 — nove desses anos trabalhados ali.

Solteiro e sem filhos, ele já planeja alugar a casa que comprou no bairro vizinho e se mudar para São Tomé das Letras (MG), sua cidade natal. "Vou pegar a indenização e o fundo de garantia e abrir uma pousada por lá."

Já outros demissionários estamparam suas angústias com caneta sobre os uniformes azuis pendurados no alambrado que cerca o terreno. "Esposa Fabiana - 41 anos - tratando câncer", "Beatriz - 5 anos", "Laura - 2 anos', "Isaac - 3 meses e 25 dias", "Não acabe com os sonhos de tantas famílias" eram algumas das inscrições que acompanhavam o logo da Ford nas camisas, já puídas, manchadas de graxa e salpicadas de tinta.

Desemprego e desindustrialização

O protesto formou um varal celeste no arame farpado, mas o suor naquelas roupas parece que nunca vai secar, mesmo sob os 33°C de um dia de verão interiorano. "Meu pai trabalhou nas empilhadeiras daqui até aposentar e conseguiu um emprego pra mim. Hoje, ele está muito apreensivo porque seu filho vai ter um destino diferente", conta Luiz Rogério Alves, 45 de idade e 26 anos cuidando da manutenção de tornos e robôs.

A manifestação atraiu fotos da mídia e aplausos dos motoristas passando na avenida. Mas também chamou a atenção do desempregado Edmílson Ribeiro, que recolhia os uniformes de eletricista, mais escuros e feitos com tecido anti-chamas. "Sou gesseiro, mas estou sem trabalho há um ano e meio. Peão de obra adora essas roupas, posso tirar uns trocos com elas", disse, enquanto levava seu furto para o carro. Ele bateu boca com um ex-funcionário e acelerou. Cada camisa vale mais de R$ 100.

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Uniformes da Ford, com inscrições de protesto, são pendurados no alambrado que cerca a fábrica fechada em Taubaté (SP)
Imagem: Avener Prado/UOL

Apesar de altamente especializados, os trabalhadores dali devem ter dificuldade para se recolocar em um mercado com recorde histórico de desemprego (mais de 14%) e menor nível de industrialização desde 1946, quando se começou a calcular o Produto Interno Bruto — em 2020, apenas 11,2% do PIB veio da indústria de transformação.

Só nos últimos cinco anos, o Brasil perdeu 36,6 mil estabelecimentos industriais, o que dá uma média de 17 fechamentos por dia, segundo levantamento da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo).

O setor automotivo serviu de ícone do crescimento industrial nacional nas décadas de 1950, 1960 e 1970, com a chegada de muitas marcas estrangeiras como Volkswagen, GM e Fiat. A partir dos anos 1990, começou a desindustrialização à brasileira, com a abertura das importações e supervalorização da moeda nacional (Plano Real), o que reduziu a competitividade local. De 2002 a 2014, houve um leve crescimento, mas a recessão, a partir de 2015, retomou o processo. Multinacionais como Sony, Roche e Mercedes-Benz anunciaram o término de atividades no país.

Sucata no ABC

Antes de fechar em 2021 os portões das plantas de Taubaté, Camaçari (BA) e Horizonte (CE), a Ford tinha acabado em 2019 com a emblemática unidade de São Bernardo do Campo (SP).

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Estrutura da Ford em São Bernardo do Campo, onde a marca encerrou suas operações no ano de 2019
Imagem: Avener Prado/UOL

Por lá, no lugar das cegonheiras transportando veículos novos, saem caminhões de sucata, levando a antiga estrutura produtiva, agora toda picotada. As máquinas, incluindo robôs, estão sendo retiradas e revendidas.

Montes de folhas ocupam as vagas do estacionamento, anteriormente disputadas por chefes, funcionários, clientes e fornecedores da corporação. As portarias estão fechadas por cadeados enferrujados. O mato crescendo nas rachaduras do asfalto lembra outra aventura da empresa engolida pela mata: a tentativa de produzir borracha para pneus em Fordlândia, no meio do Pará, entre 1927 e 1945.

Ainda em pé, uma placa com normas de proteção avisa: "a segurança começa por você". Se não fosse o barulho de demolição que vem lá de dentro, o cenário se assemelharia às regiões interditadas após um desastre nuclear. A catástrofe ali, porém, é econômica.

Ford no Brasil

É só o nome da rua

Passados dois anos, a marca Ford vai se apagando do ABC. No distrito industrial de São Bernardo, não há mais ex-funcionários nos prédios vizinhos para observar da janela o logo no alto da caixa d'água, com a pintura tão desbotada quanto a de Taubaté.

A Construtora São José, especializada em empreendimentos de luxo, comprou o terreno e planeja montar ali galpões de logística à beira da rodovia Anchieta. Essa mesma empresa já havia comprado a fábrica da Ford no Ipiranga, que fechou na virada do século após cinco décadas de produção de carros, caminhões, tratores e chassis de ônibus.

Lá, a construtora ergueu o Shopping Plaza Mooca em 2011. O pátio de carros deu lugar à praça de alimentação, onde estão outras marcas norte-americanas (Taco Bell, KFC, Burger King, McDonald's etc). Locais de produção vão se transformando em templos de consumo — primeiro na versão presencial dos shopping centers, depois no modo online, com centros de distribuição de produtos diretamente para as residências dos compradores.

A única lembrança do antigo dono nessa fronteira entre os bairros da Mooca, Vila Prudente e Ipiranga é a avenida Henry Ford, nome do fundador da montadora e grande disseminador mundial da linha de montagem na produção em massa, que depois ganhou o nome de "fordismo". Essa lógica de divisão extrema de tarefas, especialização e padronização foi ficando ultrapassada a partir dos anos 1970 com o surgimento do "toyotismo", sistema de produção japonês, primeiramente aplicado na Toyota, que enfatiza a cultura organizacional da empresa, o trabalho em equipe e a diversificação.

A 23 quilômetros dali se localiza a rua Henry Ford, no município de Osasco, onde por 50 anos funcionou a fundição de peças para os veículos da marca. Os fornos deram lugar a depósitos de uma transportadora. Logo ao lado, está o "campo da Ford", onde os operários batiam uma bola após o expediente. O terrão foi substituído pela grama sintética. Apesar de agora ser público, continua a ser conhecido pelo nome da era industrial.

Patinação e pornô

Um ano após o desembarque no Brasil, a Ford já mudava de endereço, porque o crescimento da produção exigia mais espaço. Em 1920, sua linha de montagem foi transferida para a Praça da República, mais especificamente para o Skating Palace, um amplo local de patinação para "senhoritas e rapazes de excelentíssimas famílias".

A passagem da montadora por ali foi curta, e a produção anual de 4.000 veículos demandava nova mudança, desta vez para uma sede própria, no bairro do Bom Retiro. Após a saída da Ford, se instalou ali o Cine República, que funcionou até 1978 — sua última sessão exibiu o filme "Guerra nas Estrelas", de George Lucas.

Uma parte do terreno foi desapropriada para a construção da estação República do metrô, outra virou estacionamento, e o restante foi dividido em duas salas de cinema pornô — uma para o público gay, outra para os héteros. Hoje, no local há dois empreendimentos de edifícios espelhados, bem ao gosto vigente.

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Catador e carro disputam espaço na rua diante do prédio que foi a primeira sede própria da Ford no Brasil
Imagem: Avener Prado/UOL

Com projeto do engenheiro norte-americano B.R. Brown, o mesmo que desenhou a fábrica original em Highland Park (EUA), o galpão de tijolinho à vista e grandes vidraças da rua Solon, no Bom Retiro, foi a primeira sede própria da Ford no Brasil, em 1921. Lá produziu-se o tradicional Ford Bigode. Até que, em 1953, a produção migrou para o Ipiranga.

Atualmente, o prédio histórico está sem ocupação. Sua fachada está toda pichada e chamuscada. Alguns catadores utilizam a calçada para "queimar fio" e revender os metais no interior da fiação. As altas labaredas e a fumaça densa sobem e carbonizam as paredes.

O local foi até 2012 sede de uma indústria têxtil. No ano seguinte, entrou em um decreto do governo estadual de desapropriação para construção de casas populares, projeto que não foi para frente, acusado de fomentar a especulação imobiliária.

Luta, oração e choro

Três urubus pousam, dão pulinhos e voam sobre o outdoor com o logo da Ford que demarca seu território em Taubaté. Poderia ser um presságio, mas houve outros, mais reais. "A coisa vinha vindo. Era redução de jornada, dispensa de funcionário, investimento prometido que não vinha. A gente sabia que não estava legal, mas não a ponto de fechar. Achava que ia enxugar ainda mais, mas lá para 2022 ou 2023, não agora", analisa Cristiano Santos, metade de seus 49 anos dentro da Ford, como manutencista eletrônico.

Até dezembro, sua jornada diária começava às 6h45 e ia até às 16h. Agora, faz seis horas semanais de vigília nas portarias para que só entrem caminhões com alimentos e máscaras para os poucos operários de limpeza e segurança que ainda estão trabalhando. Até fechar a negociação com os patrões, eles não saem dali.

"A gente só começa a chorar quando sai o caixão. Até lá temos muita luta. É como um jogo de xadrez, nenhum movimento pode ser impensado", diz o sindicalista José João de Souza, que participou das greves dos metalúrgicos do ABC nos anos 1980.

Após o protesto com as camisas no alambrado, foram planejadas manifestações em frente às concessionárias em todo o país e depois uma carreata até o santuário de Aparecida e uma missa drive-thru. Tudo na esperança de a fábrica voltar a produzir.

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Funcionários fazem vigília na portaria da Ford em Taubaté, onde a marca encerrou suas operações no início de 2021
Imagem: Avener Prado/UOL

Quando não está tocando Legião Urbana ou Barões da Pisadinha nas vigílias das portarias, dá para escutar os passarinhos na calmaria do entorno, como se Taubaté voltasse aos tempos de Monteiro Lobato e seu Sítio do Picapau Amarelo.

"Nossa, o movimento diminuiu bastante, menino. De sexta, eles faziam café da manhã coletivo e compravam toda nossa produção. Na semana passada, não vendemos nada nesse dia." Assim a gerente Claudia Rodrigues, da padaria Pão Divino, sintetiza o impacto sentido nos bairros Portal da Mantiqueira e Esplanada Independência, que cresceram nos últimos cinco anos graças a uma mudança viária na cidade e à proximidade com a fábrica.

Já o corretor de imóveis José Severo não sabe dimensionar o efeito em seu setor econômico. "Pode ser bom ou ruim. Eles podem pegar o dinheiro da rescisão e investir em apartamentos para alugar ou querer vender suas casas e irem para outras cidades."

O cotidiano de turnos, uniformes e entra-e-sai pelos portões foi embora. Por seu lado, a empresa prefere usar o eufemismo "reestruturação" para se referir ao fim de sua produção no país. Um dado revelador é que a Ford continua fabricando na vizinha Argentina. Foi justamente da filial em Buenos Aires, fundada em 1913, que vieram os 25 mil dólares iniciais para a criação da empresa no Brasil em 1919. Não é de hoje que o dinheiro viaja muito mais rápido do que as pessoas que têm que correr atrás dele.