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Minecraft hospeda biblioteca para denunciar perseguição a jornalistas

Biblioteca sem censura do Minecraft - Reprodução/ Minecraft
Biblioteca sem censura do Minecraft Imagem: Reprodução/ Minecraft

Iraci Falavina

Colaboração para o TAB

23/01/2021 04h00

Uma biblioteca construída dentro do Minecraft, um dos jogos online mais populares do mundo, foi o recurso que a organização francesa Reporters Without Borders — que busca defender a liberdade de imprensa — encontrou para dar voz a jornalistas censurados, exilados ou mortos. Da primeira vez que adentrei a biblioteca, eu destruí "a verdade".

O local em que cometi essa atrocidade era emoldurado por duas placas cor de musgo, com uma letra "i" amarela no meio. Ao passar pela porta da sala e ver incontáveis blocos amarelos flutuando, é inevitável que sua atenção se prenda. Talvez você nem mesmo note um livro no corredor de entrada e, assim como eu, comece a destruir os blocos flutuantes, que emitem um som similar a vidro se quebrando. Ao finalmente perceber o púlpito branco e dourado que serve de apoio a um livro aberto, uma mensagem lhe passará instruções diretas: "Por favor, dirija-se ao canto direito dessa sala e encontre um livro sobre o Repórteres Sem Fronteiras. Os blocos flutuantes irão revelar sua mensagem quando você ficar atrás do livro".

Na sequência, deve-se subir uma escada de madeira marrom, a qual, em sua parte superior, também possui um palanque e um livro, que repousa aberto. Ao se posicionar para ler o volume, você verá em sua frente os blocos amarelos formando a palavra "truth", "verdade" em inglês. Ao entrar na sala, eu, inocentemente, destruí a verdade. Blocos formando a palavra "truth", essa coisa frágil, disposta aleatoriamente, formada por diversas pequenas partes que, por si só, parecem não ter sentido. A palavra está exposta no jogo, suscetível a qualquer um que entre na sala, não preste atenção e comece a pulverizá-la, encantando-se com o som de vidro se partindo selando o ato que acabou de acontecer.

Biblioteca sem censura do Minecraft - Reprodução/ Minecraft - Reprodução/ Minecraft
Sala da verdade no Minecraft
Imagem: Reprodução/ Minecraft

Jogo da verdade

As verdades de diferentes países se encontram no Minecraft. A Reporters Without Borders, a agência de publicidade Doyle Dane Bernbach (DDB) e o estúdio de design especializado em Minecraft, BlockWorks, são os responsáveis pelo projeto conjunto da "Uncensored Library" (Biblioteca sem Censura, em tradução livre), que abriga textos que ocasionaram em mortes, prisões, exílios e censura, com autores vindos de cinco países diferentes.

A biblioteca faz parte de um servidor próprio da equipe dentro do Minecraft, uma espécie de "sala online" na qual as pessoas que baixarem o arquivo podem entrar — e que não pode ser deletada facilmente. Você pode se perguntar: "por que escolheram justamente o Minecraft para hospedar esse projeto, já que talvez outras plataformas fossem mais simples de serem acessadas?". Além de ser um dos títulos mais populares do mundo, o jogo é um Open Source, ou de Fonte Aberta, e qualquer pessoa pode publicar suas criações, mas apenas o administrador do servidor pode excluí-las.

Isso quer dizer que você pode criar uma mansão para jogar com seus amigos e ter o controle e a tranquilidade de que nem mesmo o desenvolvedor do jogo poderá acabar com sua diversão. Caso ainda não esteja claro, é como se a Mojang Game Studios, a criadora do Minecraft, oferecesse um "terreno" para que os jogadores possam construir "casas" em cima. O "terreno", nesta analogia, representa o jogo base e as "casas" são os servidores.

A questão é que, nessa hipótese, a Mojang não tem força para destruir as casas — apenas os criadores delas podem fazer isso. E aí está a brecha perfeita para que textos que foram censurados em seus países de origem possam ser lidos sem problemas com a lei ou sem o risco de serem deletados. Sirena Martinelli, diretora de arte da DDB, explica que, por mais de 250 horas, 24 pessoas emprestaram suas mãos e encaixaram cada um dos mais de 12,5 milhões de blocos que formam o mapa.

Arquitetura da denúncia

Ao norte do salão principal da Uncensored Library, em frente à sala da verdade, está o cômodo dedicado à Arábia Saudita. No centro, uma cela preta — com grades de ferro que vão do chão até quase o teto — guarda verdades que custaram uma vida. O trabalho de Jamal Khashoggi, jornalista saudita esquartejado em 2018, repousa ali dentro.

Jaula Arábia Saudita no Minecraft - Reprodução/ Minecraft - Reprodução/ Minecraft
Jaula Arábia Saudita no Minecraft
Imagem: Reprodução/ Minecraft

Khashoggi se exilou nos Estados Unidos em 2017, fugindo de um possível assassinato ou outro tipo de retaliação ao seu trabalho. Ele denunciou isso em sua primeira coluna no The Washington Post, "A Arábia Saudita nem sempre foi tão repressiva. Agora está insuportável", em tradução livre, publicada em 18 de setembro de 2017. Em 28 de setembro de 2018, o jornalista teve que se dirigir ao consulado saudita em Istambul, na Turquia, a terra natal de sua noiva.

Para concretizarem o casamento, ele precisava de uma declaração de divórcio, emitida por seu país de origem. Não foi possível obter o documento naquele dia e Khashoggi teria que retornar ao consulado — o que fez em 2 de outubro do mesmo ano. E foi assassinado.

Em 15 de novembro de 2018, a emissora árabe Al Jazeera publicou uma notícia em que o promotor público adjunto da Arábia Saudita, Shalaan Al-Shalaan, explicava o crime. Na primeira visita, houve ao menos quatro telefonemas entre o Consulado em Istambul e Riad, capital da Arábia Saudita. A emissora ainda revelou que a causa oficial da morte de Jamal Khashoggi está listada como overdose de drogas.

De acordo com Al-Shalaan, o jornalista recebeu uma injeção letal e então teve o corpo desmembrado e entregue ao "colaborador local". Outro homem vestiu as roupas de Khashoggi e caminhou para fora do prédio, a fim de ser registrado pelas câmeras. As câmeras do interior do consulado permaneceram desligadas durante o assassinato. Dentro do jogo, na sala construída em sua homenagem, três textos de Khashoggi estão ao redor de uma placa em que está escrito "English".

Ao pressionar um botão cinza, um disco preto salta. Quando se coloca o disco na caixa de som, é possível escutar uma voz grave que recita os textos do jornalista em sua língua original.Também é possível visualizar a foto de Khashoggi embaixo da logo e do lema do The Washington Post, "A democracia morre na escuridão".

A crise é global

No total, são seis salas com textos censurados em seus países: cinco dedicadas a Arábia Saudita, Egito, Rússia, Vietnã e México e uma sala especial que explica o trabalho da Reporters Without Borders. Esta última é a sala da "verdade", hall principal da Biblioteca.

Ali, incontáveis pilastras beges sustentam o teto e se apoiam sobre uma redoma de vidro que possui um mapa-múndi. Ao se colocar no centro do hall e encarar o piso, nas direções nordeste e sudoeste, letras brancas e amarelas revelam a mensagem principal da Biblioteca: #TruthFindsAWay (A verdade encontra um caminho). Ao olhar para cima, três círculos formados pelas bandeiras de todos os 180 países catalogados pela Organização das Nações Unidas (ONU) enfeitam o cômodo e seguem, um acima do outro, o caminho para o teto. Na direção noroeste, no segundo círculo, está a bandeira do Brasil.

Piso do hall principal no Minecraft - Reprodução/ Minecraft - Reprodução/ Minecraft
Piso do hall principal no Minecraft
Imagem: Reprodução/ Minecraft

Embora não possua uma sala exclusiva, o Brasil possui seu espaço no hall principal da biblioteca. No livro atrás da bandeira verde e amarela, está o seu Índice Mundial de Liberdade de Imprensa: 107º lugar de 180. Neste volume, a organização detalha os ataques à imprensa, intensificados após a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018.

O Índice Mundial de Liberdade Imprensa, elaborado pela própria Reporters Without Borders, registrou que o país caiu uma posição em relação a 2019, quando se encontrava na 106º posição.

Imprensa brasileira

O relatório "Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil", desenvolvido pela FENAJ, revela que em 2019 o número de violências contra profissionais totalizou 208 casos, 73 a mais do que em 2018. Além de 54,81% dos casos registrados terem sido de descredibilização da imprensa, 12,02% das ocorrências representaram agressões físicas e impedimentos ao exercício profissional.

Um caso que se tornou emblemático foi o do repórter fotográfico Dida Sampaio e do motorista Marcos Pereira, ambos do jornal O Estado de S. Paulo. Em 3 de maio de 2020, no dia Mundial da Liberdade de Imprensa, quando os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro realizavam um ato contra o Supremo Tribunal Federal e contra o Congresso, os jornalistas cobriam o evento. Um grupo de apoiadores começou a ofender verbalmente os profissionais e os cercou.

O fotógrafo foi derrubado duas vezes e levou chutes nas costas e um soco no estômago. Além deles, repórteres da Folha de S. Paulo e do Poder 360 também foram agredidos. A Polícia Militar estava presente no evento, mas apenas apartou as agressões quando os jornalistas foram expulsos do local pelos manifestantes.

Sobre o tratamento oferecido aos jornalistas atualmente, o relatório Mapa de Influenciadores, elaborado pela empresa BR+ Comunicação devido a um contrato vinculado ao Ministério da Economia, elenca de forma ameaçadora jornalistas e influenciadores digitais em geral, e os classifica como "detratores", "favoráveis" e "neutros informativos". O Mapa também revela números de telefone, endereços de e-mail, além de perfil, histórico profissional, "posicionamento e assuntos sensíveis relacionados" e "recomendações de ação de relacionamento e de distribuição de informação personalizada".

As recomendações de ação pedem, por exemplo, monitoramento preventivo das publicações e "envio de esclarecimentos para eventuais equívocos que ele publicar". No dia 4 de dezembro, três dias após a lista ser revelada, o Ministério da Economia anunciou o encerramento do vínculo com a agência BR+ Comunicação, antecipando o término da colaboração em 27 dias.

Em conversa com o TAB, a diretora de arte Sirena Martinelli chama atenção para o fato de que os ataques à liberdade de imprensa não são exclusivos de um ou outro país do mundo. Ela destaca que a falta de liberdade de imprensa é um tópico que não é relevante somente para países distantes do cotidiano Ocidental. É um problema global, ao qual as pessoas devem prestar atenção em seus próprios países.

Sirena Martinelli, diretora de arte - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sirena Martinelli, diretora de arte
Imagem: Arquivo pessoal

"Eu gosto bastante de fazer login no servidor e ver as pessoas comentando no chat, por exemplo, pessoas dos EUA questionando: 'quando eu estava na escola, sempre me disseram que meu país era um país livre, então por que ele está em 15º na lista?' Foi bom abrir os olhos das pessoas". Em seu quarto com formas coloridas que contrastam com seu cabelo escuro e o moletom cinza que veste, Martinelli descreve como esse projeto foi repleto de paixão e como gosta de ver a repercussão do trabalho, procurando vídeo no YouTube e transmissões ao vivo na Twitch, divertindo-se com as reações surpresas.

Para se ter ideia, em 4 de novembro de 2020, o mapa da Uncensored Library havia alcançado mais de 170.000 downloads. De acordo com a diretora de arte, ao somar o tempo que todos os usuários passaram visitando a biblioteca, tem-se mais de quinze anos. Despedindo-se, ela declara que fica muito feliz em ver que as pessoas se interessam pela Biblioteca e que pessoas jovens buscam conhecer e até mesmo escrever a respeito, já que esse foi o principal objetivo do trabalho. "Todas as minhas noites sem dormir valeram a pena."