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Há 8 anos sem solução, barulho na 9 de Julho tortura moradores em São Paulo

Simone Gonçalves, 54, moradora da Avenida 9 de Julho (São Paulo) - André Nery/UOL
Simone Gonçalves, 54, moradora da Avenida 9 de Julho (São Paulo)
Imagem: André Nery/UOL

João Silva

Colaboração para o TAB

28/01/2021 04h00

Eram 23h59 de uma segunda-feira, e a enfermeira Simone Gonçalves, 54 anos, comemorava uma noite de sono em dia de folga do plantão. O vizinho mandou uma foto no grupo de WhatsApp, mostrando dois cones que interditavam a faixa central de um dos lados da avenida 9 de Julho, em São Paulo. "Nossa, graças a Deus, hoje eu durmo. Qual anjo que colocou?", perguntou Gonçalves. "Eu havia visto estes cones, mas do outro lado da 9 de Julho. Alguém mudou para nós. Provavelmente algum vizinho desceu e mudou [de lugar]", respondeu outra pessoa.

À 1h da manhã, a enfermeira escreveu de novo na conversa: "O inferno voltou". Os cones, na verdade, foram colocados por funcionários da prefeitura, enquanto limpavam a rua. Dormir, mesmo, a mulher só conseguiu das 5h às 6h, num rápido cochilo até o marido se levantar para trabalhar.

A noite sem dormir foi mais um episódio do inferno de Gonçalves por causa de um barulho incessante que tira o sono dela há 8 anos. Uma grelha colocada no meio da avenida, para facilitar o escoamento da água da chuva, está solta e desgastada. Cada vez que um carro passa, o som da pancada de ferro ecoa e chega na casa de dezenas de moradores do trecho à altura do número 590.

É uma batedeira repetitiva, multiplicada por milhares de veículos — incluindo ônibus e caminhões — que passam diariamente pelo movimentado corredor viário, ligação do Centro da cidade a bairros da zona oeste. Inaugurada como símbolo de modernidade, em 1941, a 9 de Julho atravessa importantes cartões-postais da capital paulista, desde o subsolo do Masp (Museu de Arte de São Paulo), a vizinhança da Escola de Samba Vai-Vai até desembocar no vale do Anhangabaú.

O que em cima é cimento, embaixo é água: sob a avenida passa o rio Saracura, que em chuvas fortes "reaparece" no asfalto, pelos bueiros, alagando tudo e travando o trânsito.

Simone Gonçalves, moradora da 9 de julho - André Nery/UOL - André Nery/UOL
Descansar tem sido um desafio permantente para Simone Gonçalves e os vizinhos
Imagem: André Nery/UOL

Sem sossego

Mineira de Governador Valadares, Simone Gonçalves mora em São Paulo há 26 anos. Mudou-se para a 9 de Julho há 25, onde vive com o marido, um filho e uma sobrinha, num apartamento, no quinto andar.

O pesadelo da vida dela começou depois que a tal grelha foi colocada como reforço de outra que já havia ali, para escoar a água. "Em 2008, colocaram essa segunda. Há 8 anos, essa 'nova' começou a se soltar. E só piorou. A gente já disse à prefeitura que o barulho incomoda, mas eles mandam soldar e, quando passa um carro por cima, volta tudo de novo. Tem que trocar a grade, fazer uma nova, colocar um tipo de borracha — um engenheiro que veio aqui já explicou isso", diz ela ao TAB.

O único paliativo, recentemente, tem vindo da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), quando coloca, à noite, cones para impedir que veículos passem por cima do ferro — o que garante a noite de sono do pessoal. Mas é casual, contam.

A quantidade de protocolos de reclamação que Gonçalves coleciona prova o tempo que o problema persiste. A princípio, ela achava que era um incômodo individual, mas, aos poucos, descobriu que era um caos para a vizinhança. "Em 2014, um casal de vizinhos começou a fazer pedido de conserto à prefeitura. Os dois morreram, com problema de saúde. Aí a síndica começou a questionar também. Mas ela fazia tratamento de câncer, e, nesse meio tempo, faleceu. Seu Sebastião, zelador, que morava no térreo, era a mesma história. Ele também brigava na prefeitura, mas morreu com um problema cardíaco", lembra. "Se você for ligar uma coisa à outra, faz sentido. Se você tem problemas de saúde, precisa ter descanso e um bom sono."

Desde novembro, Simone Gonçalves passou a tomar remédios para dormir e calmantes, receitados por um psiquiatra. O diagnóstico que recebeu é de crise de ansiedade. "Tentei de tudo pra dormir, até reza. Eu oro demais, peço a Deus que me dê paz na hora de dormir. Mas com esse barulho você nem consegue fazer um mantra", desabafa.

Do quarto da enfermeira, é como se estivesse na rua — dá para ouvir perfeitamente a grade bater. Um "bah, bah" que incomoda à noite e atrapalha durante o dia, principalmente agora, na pandemia, quando a permanência em casa ficou mais frequente. "Meu filho está em home office, e já não aguenta mais as pancadas. Ele coloca fone e música para ouvir, mas se desconcentra, perde a paciência", conta Simone.

Vender o apartamento que comprou já foi uma possibilidade pensada, diz ela, mas o imóvel está desvalorizado. "Já tem apartamento vazio, sem conseguir alugar."

A grelha responsável pelo barulho permanente na Avenida 9 de Julho, em São Paulo - Andre Nery/UOL - Andre Nery/UOL
A grelha responsável pelo barulho permanente na Avenida 9 de Julho, em São Paulo
Imagem: Andre Nery/UOL

Cidade frustra quem vive nela

"Bom dia, pessoal, eu acredito muito em ação direta e sei que se a gente parasse a avenida teria muita visibilidade, porém eu temo pela repressão (não policial, mas jurídica)..." Essa nova mensagem chegou no WhatsApp às 7h54 de um domingo. Foi Camila Farão, 31 anos, quem enviou para os outros moradores atormentados com o barulho na avenida.

Depois de inúmeras reclamações à CET e ao 156, a central de atendimento ao cidadão da capital, os vizinhos estão decididos a fazer um protesto, mas precisam reunir mais pessoas. Uma alternativa para isso foi criar no Facebook o grupo "9 de Julho - Grade da Tortura dos Moradores da Bela Vista - SP", aberto na semana passada.

Um som mesmo baixo mas incessante, explicam médicos, causa estresse em quem fica exposto a ele por um longo período frequentemente. Mexe com os hormônios e pode levar a problemas cardiovasculares. Já barulhos intensos ainda aumentam as chances de perda da audição.

Camila Farão conhece os riscos da poluição sonora. Ela é metroviária e, por isso, trabalha com proteção auricular. "No metrô, há muito ruído e barulho, do trem, das pessoas falando. É um trabalho que requer muito cuidado, já estou exposta ao estresse do meu ouvido durante 40 horas semanais, no mínimo. Aí, quando chego na minha casa, que é meu direito de descaso, sou impedida disso", conta ao TAB.

No sofá do apartamento, enquanto tenta descansar, ela continua usando fone de ouvido. O ventilador de teto ligado e a janela fechada completam a "técnica" que desenvolveu para abafar a pancadaria vinda lá de fora.

O "bate estaca por segundo", como a metroviária se refere às batidas da grelha, tirou a alegria que tinha por ter realizado o sonho da casa própria. Em 2019, a mãe dela descobriu que estava com câncer e iniciou o tratamento, mas a doença já estava em um estado avançado, sem chance de reversão. Camila Farão correu para mostrar que era uma filha independente financeiramente. "Desde os 20 anos, eu pagava aluguel. Decidi comprar um apartamento. Investi meu FGTS, comprei com [apoio do programa de financiamento] 'Minha Casa, Minha Vida', e optei por morar no centro. Quis fazer esse grande feito para minha mãe ver", conta. "Ela morreu em fevereiro do ano passado."

A frustração de Farão é visível enquanto ela reclama do problema. Até na hora do almoço, no trabalho, a moça escuta o barulho. "Fica na minha cabeça. Esse barulho parece que virou a minha punição por uma má escolha, por não ter 'adivinhado' que ele existia aqui", conta. "Quando estou voltando para casa, já me dá uma tristeza."

A metroviária Camila Farão - Andre Nery/UOL - Andre Nery/UOL
A metroviária Camila Farão também é afetada pelo ruído contínuo em seu apartamento
Imagem: Andre Nery/UOL

A saída para resolver o problema da avenida é "a insurreição urbana", afirma a metroviária, impaciente. "Essa cidade não respeita suas vidas, só respeita o automóvel. A gente tava até agora tentando fazer a coisa certa, mas está sendo tratado como barata. Enquanto isso, o prefeito aumenta em 45% o próprio salário, faz reforma no vale do Anhangabaú, que fica a 500 metros daqui", reclama. "Só a força da população para fazer mudar. Se depender de protocolo, prefeitura e judicialização (que depende de grana), dificilmente a gente vai conseguir."

Por volta das oito da manhã, quatro vezes por semana, quando volta para casa depois de uma madrugada de trabalho, basta colocar os pés no viaduto da rua Major Quedinho, que cruza a 9 de Julho, a metroviária já sabe que o inferno vai começar: de longe, a primeira batida que escuta, é a da grade.

Cinco dias

Em menos de uma semana de criado, o grupo do Facebook dos moradores reúne um acervo de vídeos e fotos suficientes para mostrar os problemas que eles vivem há quase uma década. A página — explicou outro vizinho, pelo WhatsApp — é para que mais gente agregue as informações "sobre o 'tormento' comum a todos" e divulgue petições, protocolos e abaixo-assinados. "Para novamente chamar atenção dos governantes e da imprensa, para esse ABSURDO que é esse ESTRONDO dessa GRADE", escreveu o homem.

Se a movimentação na rede social chegou aos ouvidos da prefeitura, não se sabe. Mas na quinta-feira, à tarde, Simone Gonçalves trouxe esperança para os demais. "Falei com o promotor de justiça do Meio Ambiente, contei tudo pra ele. Chorei, disse que não aguentava mais, que ia me jogar da janela", disse ela, em áudio. Do outro lado da linha, o representante da promotoria anotou as queixas, disse que foi até a própria avenida checar e prometeu um encaminhamento. "Ele disse que vai dar um prazo de 5 dias para resolver o problema", emendou a enfermeira, ainda com voz de choro.

"Em nome de Jesus, essa VITÓRIA É NOSSA? EU CREIO", digitou, em seguida. Oito anos de espera parecem ter calejado a enfermeira. Apesar da fé, ela está ansiosa pela resposta da prefeitura -- e vai ter de esperar um pouco mais, porque, procurada pelo TAB na semana passada, a Siurb (Secretaria Municipal de Serviços e Obras) respondeu na última terça-feira (26) que só se posiciona à imprensa depois que responder oficialmente ao promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital, provavelmente na próxima semana. Enquanto isso, Simone Gonçalves segue enviando queixas ao canal de atendimento aos paulistanos: "Vou infernizar", contou no grupo, dias depois.