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Por que o Censo 2021 virou uma briga tão importante entre os três poderes?

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Imagem: Reprodução

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

30/04/2021 04h00

Afinal: vai ter Censo este ano ou não vai? A maior pesquisa do país está em meio a debate entre os três poderes, depois de ser cancelada por não receber uma fatia suficiente dos recursos do Orçamento. Defendendo a importância dos dados, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou que o governo dê um jeito de realocar recursos e encontre uma forma de fazer o Censo acontecer ainda em 2021.

Tem quem se pergunte por que a pesquisa aparentemente custa tão caro, e se não seria possível fazê-la online — ou mesmo usar os dados de levantamentos como a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Spoiler: só o Censo (feito presencialmente) consegue reunir os dados necessários para a implementação de diversas políticas públicas. Entenda por quê.

O que aconteceu com a verba do Censo? Em 22 de abril, último dia do prazo, o governo federal sancionou a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021. No texto aprovado pelo Congresso, diversas áreas sofreram cortes em detrimento da manutenção de R$ 18,5 bilhões destinados a emendas parlamentares. Um dos cortes que mais chamaram atenção foi o destinado ao Censo 2021. A pesquisa perdeu 96% da verba prevista, inicialmente de R$ 2 bilhões, mas que ficou em R$ 53 milhões no texto sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro — que vetou cortes em outras áreas antes de assinar a LOA. O texto inicial do Congresso já previa uma redução para R$ 71 milhões, o que foi suficiente para o pedido de demissão da então presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra. Gabriela Lotta, professora do curso de Administração Pública da FGV EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), afirma que o custo de não fazer o Censo acaba sendo maior do que o de realizá-lo. "Se a gente for colocar na caneta, o Censo não é caro. Dividindo o valor pelos mais de 200 milhões de habitantes e por dez anos, é um valor ínfimo por habitante por ano. O que é mais importante é que ele é uma pesquisa que nos ajuda a fazer uma alocação melhor e mais eficiente de recursos, economizando com outros gastos."

Qual a justificativa do corte? O ministro da Economia, Paulo Guedes, culpou o Congresso pela redução da verba, realocada para emendas parlamentares. No entanto, especialistas apontam que essa não é a primeira vez que a pesquisa sai perdendo durante o governo Bolsonaro. Em 2019, foram cortadas oito das 36 perguntas que até então faziam parte do questionário, sob justificativa de corte de verbas, naquela época de de R$ 3,1 bilhões para R$ 2,3 bilhões. Veio a pandemia em 2020 e a pesquisa, realizada presencialmente por recenseadores em todo o país, precisou ser adiada para 2021 — agora sem orçamento. "Nosso Censo está sob ameaça, primeiro orçamentária, mas também uma ameaça técnica", defende Lotta. "Nosso questionário começou a ser alterado sem discussões técnicas com a sociedade em 2019, hoje é muito menor e deixou de cumprir aspectos essenciais de uma pesquisa censitária." Saíram, por exemplo, perguntas sobre renda alocada para pagamento de aluguel, posse de celular e emigração internacional.

Quer dizer que há motivação política? O governo federal reforça que os cortes são meramente orçamentários, mas é seguidamente acusado de mudar as perguntas — ou preferir não realizar a pesquisa — por interesse político. Nos Estados Unidos, o mesmo ocorreu em 2020, quando o então conselheiro de Donald Trump, Steve Bannon, influenciou a inclusão de uma pergunta sobre a cidadania dos respondentes no censo americano. "Eu trabalho com políticas públicas desde 2007 na USP, e a gente nunca viu acontecer isso. Passamos pela crise de 2008, inúmeros problemas no país, e nada como está acontecendo agora", afirma Cristiane Kerches da Silva Leite, professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. "Eles estão matando um pressuposto, vilipendiando a reputação de uma instituição que é respeitada pelo mundo inteiro [o IBGE], e estão comprometendo o futuro do país todo", completa.

Por que o Censo é tão importante assim? Ele é a única pesquisa que cobre todos os domicílios brasileiros e dá um retrato detalhado da vida da população — desde quantidade e características dos habitantes até o tipo de casa em que vivem, acesso a coleta de lixo e energia elétrica. Os dados, recolhidos desde 1872 em 11 pesquisas, servem para basear políticas públicas, decidir sobre a distribuição de recursos federais para estados e municípios, ajudar na tomada de decisões do setor privado, propor novas leis, entre outros. "Para podermos pensar num Programa Nacional de Imunização, na distribuição de vacinas, temos que saber quantas pessoas temos de cada perfil etário e em cada localidade. Depois, precisamos saber quantas pessoas moram em cada território para pensar em que Unidade Básica de Saúde nós vamos distribuir qual quantidade de insumo", exemplifica Lotta, da FGV. Podemos analisar um município aleatoriamente, como Votuporanga, no noroeste de São Paulo. Em 2010, a população era de 89,7 mil habitantes, segundo o Censo. O IBGE projetava que a cidade cresceria para aproximadamente 95 mil até 2020, mas o prefeito já esperava um crescimento para mais de 100 mil até o ano passado, e o fluxo migratório das grandes cidades para o interior durante a pandemia pode ter aumentado ainda mais o número de habitantes. Pode ter acontecido, como pode não ter acontecido. Sem o novo Censo, não é possível cravar, e o município poderia receber uma quantidade de vacinas superior à necessidade real, caso a população tenha encolhido. "Alguém que formula política pública hoje está olhando num espelho retrovisor totalmente borrado, míope. Em 2021 a gente já mudou muito desde 2010", diz Leite, da USP. E, além de planejar ações presentes, as professoras reforçam que a pesquisa ajuda a entender quais políticas passadas deram certo ou não.

O que tanto muda em dez anos? Gabriela Lotta explica que o Brasil é um país que está passando por grandes transformações nas últimas décadas. Ela destaca as mudanças nos fluxos migratórios, na pirâmide etária do país e no acesso à informação como algumas das mudanças mais claras, mas que não poderão ser medidas sem o Censo. Há países que realizam a pesquisa com intervalos maiores, mas que, segundo Lotta, já estão estáveis há algum tempo ou têm mecanismos mais abrangentes de manter os dados atualizados. Não que esses dados parciais substituam uma pesquisa de maior abrangência, mas ajudam a ajustar um pouco o foco, destaca ela. "Como nós não temos o que chamamos de sistema nacional de estatística unificado operando, os indicadores que são coletados em esfera municipal e estadual acabam não tendo uma base integrada. Fica todo mundo sedento pelo Censo", afirma a professora da FGV. Muitas das mudanças no cenário atual vêm dos acontecimentos dos últimos anos, como o impeachment de Dilma Rousseff e a própria pandemia, destaca Leite, da USP. Na carta de demissão da presidência do IBGE, Susana Guerra escreveu: "A importância do Censo é reafirmada pelo próprio contexto de pandemia, que coloca ao país uma ampla gama de profundos desafios. O Censo é crítico nesse processo, uma vez que só ele será capaz de revelar, com precisão, essa realidade, subsidiando assim a tomada de decisões e a formulação de políticas públicas."

Não dá para economizar fazendo a pesquisa por telefone ou online? A proposta do Censo é exatamente coletar dados de todos os brasileiros, inclusive — e talvez com importância ainda maior — daqueles que não têm acesso a um telefone ou à internet. "Como a gente vai saber quantos analfabetos tem no Brasil se eles não vão entrar no site para preencher o formulário porque eles simplesmente não sabem ler? A gente vai chegar à conclusão de que não existem analfabetos no Brasil porque a nossa pesquisa não chegou a essas pessoas", exemplifica Lotta. Além disso, é comprovado por diversos estudos que pesquisas realizadas presencialmente geram resultados mais precisos do que aquelas que têm um meio intermediário, como o telefone. Por isso não é possível comparar, por exemplo, a intenção de voto em determinados candidatos registrada por uma pesquisa telefônica com os números de outra, presencial. Lotta ajuda a entender essa discrepância com um exemplo: "Uma coisa é você ter um recenseador na casa da pessoa perguntando qual é o material da sua casa. Embora a resposta seja autodeclarada, você tem ali um filtro que a pessoa se coloca, sabendo que tem alguém olhando."

Em resumo, o que acontece se precisarmos esperar mais um ano pelo Censo? Em poucas palavras, o país fica preso ao passado e gastando dinheiro quase às cegas, definem as professoras. "A não-realização e Censo é uma coisa tão grave quanto problemas relacionados à emissão de moeda ou à cobrança de impostos. Interfere em atividades fundamentais da sociedade contemporânea, e atinge toda a população. É de uma irresponsabilidade humanitária, eu diria, um governo não colocar a realização de um Censo periódico como algo prioritário", defende Leite.