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O mergulho de Fer Ligabue, documentarista que nadou com tubarões no Índico

Fernanda Ligabue em seu primeiro mergulho no oceano Índico - Laurel Chor/Greenpeace
Fernanda Ligabue em seu primeiro mergulho no oceano Índico
Imagem: Laurel Chor/Greenpeace

Breno Castro Alves

Colaboração para o TAB

02/05/2021 04h00

O toque de despertar soou pontualmente às 07h30 naquele 16 de abril, acordando os tripulantes que ainda dormiam no Arctic Sunrise, um dos três navios do Greenpeace que continuamente cruzam o mundo em campanhas da ONG. A documentarista Fernanda Ligabue, 34, que também se chama Fer, soube que aquele dia seria diferente assim que abriu a porta de metal de sua cabine e alguém lhe informou: encontraram as armadilhas de pesca que procuravam — e ela mergulharia para filmar tudo.

O Greenpeace defende um tratado global para criar reservas em pelo menos 30% dos oceanos até 2030. O Arctic Sunrise está no oceano Índico com dupla missão: primeiro, trazer atenção para Saya de Malha, o maior banco submarino do mundo — topo de uma montanha submersa rica em biodiversidade e, garante a ONG, capaz de armazenar o dobro de carbono do que a mesma área de floresta tropical. E, segunda missão, denunciar os pesqueiros industriais e a infinidade de armadilhas extrativistas com que destroem o bioma.

Foi uma destas armadilhas que encontraram naquele 16 de abril, após quatro dias de vigília, e que fez a adrenalina de Fer correr antes de chegar ao refeitório. O café da manhã foi difícil, ela tinha certeza de que mergulharia com tubarões e mais um temor difuso: e se os donos da armadilha retornassem? Mais ainda, seria seu primeiro mergulho naquele lado do planeta, e também o primeiro com aquela tripulação. Muito para pensar.

Fernanda Ligabue no Arctic Sunrise - Laurel Chor/Greenpeace - Laurel Chor/Greenpeace
Fernanda Ligabue no Arctic Sunrise
Imagem: Laurel Chor/Greenpeace

Vida de girino

Fer começou a viagem como girino, ou seja, um daqueles tripulantes calouros que jamais cruzaram a linha do Equador — mesmo trabalhando com o Greenpeace desde 2013. Ela nasceu em Vargem Grande do Sul, município de 40 mil habitantes na divisa de SP com MG, interior do estado, acrescente portanto o sotaque caipira quando pensar em seu nome.

No refeitório, há um mapa da tripulação colado na parede de metal onde os rostos de todos os girinos estão destacados por círculos vermelhos. Além das paredes, o chão, o teto e a mesa também são de metal.

A embarcação é um quebra-gelo holândes de 1975. Nasceu com o nome flamengo Polarbjorn, Urso Polar, e 20 anos depois, foi comprada pelo Greenpeace e rebatizada Arctic Sunrise, inglês para Alvorada Ártica. Carrega 27 tripulantes de 22 países, pesa 949 toneladas e mede quase 50 metros de comprimento.

É um navio veterano, com cicatrizes. Em 2013, estava no Ártico, protestando contra a exploração do petróleo abaixo daquelas águas geladas. Seria mais um dia em sua carreira ativista, exceto pelo helicóptero russo que desembarcou metralhadoras no convés. Os soldados prenderam a tripulação por dois meses enquanto o barco amargou nove meses no porto de Murmansk, norte da Rússia.

Anos depois, o Tribunal Internacional de Viena, na Áustria, julgou culpado o governo da Rússia, que foi condenado a pagar mais de 5,4 milhões de euros.

É deste barco que Fernanda se afastou, seus joelhos batendo para lá e para cá dentro de uma lancha rápida e inflável que se aproximava da armadilha. Vestia roupa de neoprene, carregava nadadeira, snorkel e a guia branca e azul de Iemanjá, que sempre leva no bolso ou no pescoço. Além disso, estreava sua nova câmera submarina. Ela e cinco colegas se acercaram do dispositivo de agregação de peixe, ou fad, na sigla em inglês.

Tripulação transporta um tubarão no oceano Índico - Laurel Chor/Greenpeace - Laurel Chor/Greenpeace
Tripulação transporta um tubarão no oceano Índico
Imagem: Laurel Chor/Greenpeace

Em bom português, trata-se de malandragem, um aparelho simples de plástico, metal e lona que faz sombra e oferece algum abrigo à vida marinha. Pequenos animais e vegetais se protegem no local, o que atrai peixes pequenos que, por sua vez, atraem peixes mais valorizados, como o atum.

Então é hora do grande navio retornar para pescar todos, identificar os peixes que possuem valor de mercado e sumariamente descartar os demais, provocando a enorme mortandade da captura colateral, ou bycatch. A prática exerce enorme pressão nas espécies maiores, que, se extintas, levarão ao colapso do bioma. Aquele fad foi recolhido e destruído pelo Arctic Sunrise, mas dezenas de milhares ainda cobrem o Índico.

Águas profundas

Fer registrou tubarões e uma infinidade colorida que não cabe em nenhum relato, peixes girando ao redor da armadilha como mariposas atraídas pela lâmpada. Até este momento, seguia embasbacada pela transparência da água e filmou um tubarão a 20 metros de profundidade — o que seria dificílimo em toda a costa brasileira. Chegada a hora de trabalhar, três mergulhadores seguiram para a água: a cinegrafista Fer, a fotógrafa Laurel Chor e Frank Hewetson, chefe de ação da campanha.

O veterano Frank fez a segurança da dupla de comunicação. Ele foi um dos que ficou dois meses presos na Rússia, no já mencionado episódio de 2013. Pulou primeiro, carregava uma vareta para afastar qualquer tubarão mais curioso — o que não foi necessário.

A documentarista mergulhou em um cenário de sonho, que descreve com expressões superlativas como "mergulhar em pedra cristalina" ou "é magia mesmo". Acrescente sua miopia à experiência. Fer nasceu com 6 graus de desvio. Ela, que trabalha com imagem, se formou mergulhadora nas turvas águas de Recife, quase cega de miopia. Estreou neste dia seu primeiro snorkel de grau.

Pela primeira vez, viu tudo. Chorou um pouco, seu sal misturado com o mar.

Aí, neste mergulho, sentiu a realização que se contrapôs à tristeza dos últimos dias. A mulher que chorava filmando tubarões e tartarugas estava, quarenta horas antes, no alto do ninho do corvo, o ponto de observação mais alto do barco, transbordando ausência.

Cumpria a tarefa da vigília, onde uma dupla utiliza enormes binóculos para procurar as armadilhas no oceano. Dois turnos de uma hora por dia, "no meio do Índico a gente se sente muito miúda, no meio do azul e nada acontece além de você. Não dá pra capturar a imensidão safira nem com imagens", relata a documentarista.

"No ninho do corvo, bateu a distância de sair do meu país nesse momento horroroso, sabendo que ninguém da minha família foi vacinada".

Céu de brigadeiro

Fer superou a ausência da família com laços novos, e aí apareceu Laurel, 31, a colega mergulhadora experiente que lhe deu apoio durante todo o processo. A fotógrafa de Hong Kong divide com Fer a apertada sala de mídia. "Ela foi muito parceira", garante.

Se identificou na força da amiga e, a partir daí, conseguiu encontrar seu espaço no mundo predominantemente masculino das embarcações. Por exemplo, os girinos deixam de ser girinos ao cruzar o Equador pela primeira vez — quando são convidados a realizar um desenho e pagar cinco moedas em homenagem a Netuno, o deus dos mares da mitologia romana.

O desenho de Fer foi sobre Iemanjá.

Fernanda Ligabue (dir.) e Rita Issa (esq.) jogam dardos a bordo do Arctic Sunrise - Laurel Chor/Greenpeace - Laurel Chor/Greenpeace
Fernanda Ligabue (dir.) e Rita Issa (esq.) jogam dardos a bordo do Arctic Sunrise
Imagem: Laurel Chor/Greenpeace

"Ninguém me falou que no Equador as ondas acabam. Mas elas param e o mar fica liso. Parece cremoso. Águas de veludo."

Depois do expediente, a equipe se reúne no heliponto, que é amplo e plano, uma raridade em barcos. Salão abaixo do céu. Dia desses Banu Priya, a voluntária indiana, fez 29 anos, então cada um tocou música de seu país. Fer colocou funk e tentou ensinar alguns colegas a irem até o chão. Enquanto dançava, se deu conta de que gosta muito da nossa cultura: "Acho que a gente arrasa. Fico mostrando foto do Carnaval, das festas na rua, a galera não tem como entender o que eu acho maravilhoso, então quero levar todo mundo ano que vem para entender a liberdade dos blocos de Carnaval".

Após a festa, a maior parte dos tripulantes voltou para suas cabines. Fer se deitou no chão, vista desobstruída para a enormidade de uma dupla via láctea, pois o mar, cristalino e sedoso, refletia tudo. Estrelas abaixo e acima. A reportagem do TAB lhe pede uma imagem da cena, talvez uma foto de longa exposição, ideal para ambientes com baixa luminosidade, ou algo que possa expressar a enormidade dessas noites estreladas no oceano. "Impossível, amor. O barco balança sem parar. Não tem como tirar foto. É uma dessas coisas que se captura com o corpo, não com a câmera", conclui a documentarista.