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Imitando seus youtubers favoritos, crianças ganham 'sotaques' inusitados

O  carioca Enzo, 8 - Ricardo Borges/UOL
O carioca Enzo, 8 Imagem: Ricardo Borges/UOL

Helena Aragão

Colaboração para o TAB, do Rio

16/05/2021 04h00

As gêmeas Isadora e Giovana têm 7 anos e vivem no interior do Rio de Janeiro, na cidade de Paraíba do Sul. Como muitas crianças do país, passaram a ver mais canais de YouTube desde que a pandemia limitou o contato físico com amigos de sua idade. Apesar de ficarem muito tempo juntas, elas fazem seus percursos virtuais próprios -- cada uma com seu tablet. Em determinado momento, Renata e Daniel Vogas, os pais das meninas, perceberam algo diferente no modo como elas falavam.

"Enquanto uma delas começou a usar expressões nordestinas, a outra falava uns bordões com pegada mais mineira" conta Daniel, achando graça da situação. "Mas elas nem têm consciência disso. E vai variando de acordo com o que estão vendo mais." O casal, que tem duas filhas mais velhas, de 17 e 23 anos, não se surpreende. Renata observa: "A Helena, de 17, teve a fase de falar 'oxe', 'meu', sempre por causa da internet, e depois passou. Limitamos o acesso a poucas horas por dia, então não me preocupo, sei que é uma fase".

A influência dos youtubers na linguagem das crianças não é exatamente uma novidade. Canais de gamers do interior de São Paulo, por exemplo, já são capazes de fazer meninos de diferentes partes do Brasil adotarem expressões como "mano do céu" há alguns anos. Da mesma forma, fenômenos como Luccas Neto espalham gírias cariocas pelo país -- seu irmão Felipe Neto, aliás, agradeceu dia desses aos fãs portugueses, que têm incorporado palavras "brasileiras" à rotina graças a ele. Mas pais e especialistas são unânimes em apontar a pandemia como um divisor de águas.

Não é incomum o estranhamento vir de familiares como avós e primos. Uma rápida busca no Twitter sobre crianças e youtubers nos leva a diversas mensagens nesse sentido, como "Socorro, meu sobrinho está falando com sotaque carioca de tanto ver YouTube!"

As gêmeas Isadora e Giovana, de 7 anos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
As gêmeas Isadora e Giovana, de 7 anos
Imagem: Arquivo pessoal

Sotaque?

Peraí, não é bem isso. Na realidade, não é o sotaque que muda, explica a fonoaudióloga Luciane Sagrette.

"O que vemos são as crianças incorporando mais gírias e dialetos de outras regiões, e não o sotaque, que é uma construção mais refinada. Dificilmente a criança vai 'pegar' sotaque só vendo um vídeo, porque ele se forma a partir da interação com outras pessoas", explica Luciane, observando ainda que o sotaque costuma ser consolidado até os 7 anos, mais ou menos.

A fonoaudióloga carioca é, ela própria, uma youtuber, à frente de um canal com dicas sobre oratória e 143 mil inscritos. "Não sei se inspiro alguém a falar chiado como eu", brinca ela, que atende adultos e crianças. Mas, voltando a falar sério, Luciane faz uma ponderação positiva. Se até poucos anos atrás o sotaque "sudestino" imperava como influência para todas as regiões do país por conta das novelas e telejornais, a variedade de youtubers amplia o espectro.

"Acho essa ampliação cultural da linguagem interessante, a criança percebe de alguma forma que o Brasil é enorme e tem expressões diferentes. Nesse sentido, acho um cenário mais democrático", observa a especialista. No consultório, ela percebe que aumentou o volume de perguntas dos pais sobre o modo de falar dos filhos fãs de youtubers, "mais por curiosidade do que por preocupação".

"Quando me perguntam se é problemático para o desenvolvimento de linguagem, respondo que o excesso de exposição a youtubers pode gerar uma série de problemas, mas acho que a fala é o menor deles", diz Luciane, deixando uma sugestão: "Se incomoda os pais, a sugestão é aumentar o tempo de interação do filho com crianças da sua região, mesmo que seja por videochamada".

Para o psicólogo Cristiano Nabuco, o problema é que o uso do "carioquês" ou "paulistanês" pode ser só a pontinha do iceberg. "Para além de ser engraçadinho observar a incorporação do modo de falar de outras regiões, é importante lembrar que o sotaque é uma marca de identidade. Na infância a personalidade está se formando, e isso pode ser um problema se a criança adota uma forma de falar em busca de valorização social, por achar que precisa seguir determinados protocolos para ser aceita", observa Cristiano, que é colunista no UOL e coordenador do grupo Dependência de Internet, com especialistas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP para tratar pacientes viciados na web.

'Imitação acompanha admiração'

Hoje com mais de 34 milhões de inscritos no seu canal e 6,2 milhões no TikTok, Luccas Neto lembra bem de ter sido uma criança que imitava o que ouvia na televisão. Para ele, tanto na época quanto hoje, a imitação costuma ter a ver com a admiração.

"Eu acabava reproduzindo expressões e bordões dos meus personagens preferidos da TV. Acho que é um processo natural, de fã mesmo, de se ver naquele personagem que admira", opina Luccas.

Desde que abandonou abordagens polêmicas que pipocavam no começo de sua carreira e readequou o conteúdo que oferece para crianças, com o apoio de uma equipe de psicólogos e pedagogos, Luccas viu a interação com os pais aumentar. Em geral, em tom de agradecimento.

"Quando a expressão (imitada pela criança) não é ofensiva, não vai machucar ninguém, acho que é até divertido, pois gera identificação inclusive com os outros fãs."

O youtuber Luccas Neto, 29  - TodaTeen - TodaTeen
O youtuber Luccas Neto, 29
Imagem: TodaTeen

E quando o vocabulário passa a sofrer más influências? O escritor soteropolitano Ricardo Cury sentiu isso na pele um tempo atrás, quando percebeu que seu filho Mateus, 11, começou a usar xingamentos. "Quando ele ficou mais desenvolto, notei que seguia uns gamers que xingavam muito. Esses a gente bloqueou. Até porque os xingamentos eram desnecessários, como se xingar fosse uma transgressão", lembra Ricardo, que agora vê a filha Maria, de 5 anos, usar expressões paulistas como "da hora" no dia a dia.

Para evitar surpresas como xingamentos e outras palavras que não deveriam entrar no vocabulário infantil, a esteticista carioca Ilana Oliveira optou por deixar os filhos acessarem YouTube e TikTok via celular. Assim, por meio de um aplicativo, ela consegue acompanhar diretamente do seu aparelho o que Enzo, 8, e Anali, 5, estão acessando nos deles.

"Hoje em dia, o Enzo sabe que tipo de coisa pode ver -- e quando muda vem avisar, até porque já entendeu que vou saber de qualquer maneira", conta Ilana. "A Anali me preocupa mais, porque o YouTube é um mundo, vai te levando para outros vídeos. Noutro dia, quando vi, ela estava ouvindo um funk que tem palavrão."

Os irmaos cariocas Enzo, 8, e Anali, 5 - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Os irmaos cariocas Enzo, 8, e Anali, 5
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Público invisível

A identificação com outras crianças foi o que fez a oceanógrafa Flavia Porto dar o braço a torcer e deixar sua filha Laura, 8, passar a acompanhar youtubers durante a pandemia. "Percebi que ela estava ficando muito por fora das conversas. Se não tivesse aberto, isso poderia acabar afetando a relação dela com os amigos", conta a mãe.

De alguns meses para cá, Flavia notou mudanças expressivas na filha. "Claro que essa imersão excessiva nas redes não é o mundo ideal. Mas vejo coisas positivas nesse processo, dentro de toda a loucura que estamos vivendo". A principal delas, diz Flavia, é "um salto impressionante" na comunicação de Laura. "Ela conversa bem com gente de qualquer idade, se desenvolveu muito nesse sentido", conta.

A mãe percebe também diferença na impostação da voz, na pontuação e até na postura, mais ereta, como se estivesse se apresentando. "Ela me diz: 'peraí, mamãe, que estou falando com o pessoal'. Parece que ela está se colocando dentro de um tutorial, uma espécie de tutorial mental para um público invisível."

Flavia consegue celebrar o lado bom da história, mas não deixa de estar por perto. Como a filha está na fase de seguir youtubers de maquiagem, preocupa-se, por exemplo, com a pressão estética. "Não quero que ela perca a autenticidade, sempre digo que pode assistir e se inspirar, mas não a ponto de querer ser igual à youtuber", pondera ela. "Temos que estar sempre atentos, não proibir, mas acompanhar e conversar."

A carioca Laura, 8, adora vídeos de maquiagem - Ricardo Borges/ UOL - Ricardo Borges/ UOL
A carioca Laura, 8, adora vídeos de maquiagem
Imagem: Ricardo Borges/ UOL

Personalidade eletrônica

O engajamento parental é mesmo o elemento fundamental, afirma o psicólogo Cristiano Nabuco. "Se seu filho fosse na casa de um amiguinho, você ia querer saber quem é ele, quem são os pais, certo? Esse tipo de acompanhamento tem que acontecer no que a criança acessa também."

Ele lembra que a forma de comunicação gerada pela internet causa um fenômeno específico de desinibição. "Desenvolvemos uma personalidade eletrônica. À frente de uma tela, seu cérebro não conta com a reação do interlocutor por completo, não tem o elemento de conversa vendo o corpo todo do outro. Por isso, muitas vezes as pessoas são mais agressivas na internet, como se o limite social ficasse mais opaco."

O consultório de Cristiano está cheio de pessoas entre 25 e 30 anos que passaram muito tempo da infância e da adolescência dedicados aos jogos eletrônicos. "Muitas vezes são jovens que não toleram a frustração, têm dificuldade de se relacionar com pessoas na vida real. Acho que os pais precisam estar atentos a isso: a capacidade de lidar com a realidade vai sendo esculpida no dia a dia."